Na foto acima, está o montinho de lixo que achei na saída da feira orgânica do Parque da Água Branca (zona oeste de São Paulo). Minha intenção não é denunciar uma suposta falha na conduta dos feirantes – imagino que a coleta seja feita nos conformes. Quero chamar sua atenção para a caixa de papelão que aparece no alto da imagem.
Nela, está escrito “BioSüdtirol”. Südtirol (“Tirol do Sul” , em alemão) é o nome de uma região da Itália setentrional, fronteiriça com a Áustria. Uma zona alpina, de cumes nevados e vales verdejantes, com vaquinhas malhadas e pessoas rosadas, bilíngues e encasacadas. Em italiano, o lugar se chama Alto Adige. É de lá que vêm as maçãs verdes vendidas na feira orgânica. De uma paisagem que reproduz o desenho de uma embalagem de chocolate – ou vice-versa.
Absolutamente nada a ver com a zorra tropical da Água Branca, em que bermudas, regatas, chinelos e vestidinhos floridos vestem (mal e mal) a clientela ávida por belos vegetais orgânicos nos sábados de verão. Pessoas que, preocupadas com a preservação ambiental, trazem sacolas de lona para guardar as compras. Melhor dizendo, ecobags. Ecobags com a marca da rede americana Whole Foods– a Caaba da alimentação orgânica. Ecológico e chique.
Se o trajeto fosse todo em linha reta, as maçãs da BioSüdtirol viajariam 9.722 quilômetros para chegar de Lana, na Itália, a São Paulo. Alguém realmente crê que faz uma escolha ambientalmente correta ao comprá-las no Parque da Água Branca?
O mercado de orgânicos está cheio de incongruências desse tipo. Bananas embaladas individualmente. Ovos de “galinhas felizes” em estojos de plástico. Kiwis da Nova Zelândia.
É um exercício de autoengano comprar esses alimentos sob o pretexto de preservar a natureza. Seria muito mais honesto admitir que a aquisição de orgânicos se encaixa em outra categoria de consumo: o mercado de luxo.
As comidas orgânicas pertencem ao mesmo grupo que as trufas, a flor de sal, o caviar, o foie gras, o jamón ibérico, os pistilos de açafrão. São parentes do pão de fermentação natural, do queijo artesanal de leite cru, dos embutidos artesanais – outra subcategoria dos artigos de luxo que vem disfarçada de consumo consciente.
Essa identidade se manifesta no preço, na produção e no perfil do consumidor.
Vejamos: orgânicos são muito caros. Podem custar o dobro, o triplo ou outro múltiplo do valor do mesmo item produzido pelo método convencional. Mas espere aí – a produção orgânica é realmente mais cara. Beleza, argumento aceito. Examinemos então a produção.
Alimentos orgânicos são mais caros porque são produzidos em pequena escala, com maior cuidado, em operações que exigem mais mão-de-obra e de baixo rendimento. Perceba que essa descrição se aplica a qualquer item de luxo – de um par de Louboutins ao motor de uma Ferrari.
Quando falamos em “baixo rendimento”, nos referimos a duas coisas concomitantes: a baixa produtividade e o alto descarte. Numa horta orgânica e no atelier da Louis Vuitton, a produtividade é baixa porque se dedica mais trabalho a cada bolsa e a cada berinjela. E o descarte é alto porque a perfeição é a nota de corte. Retalhos de couro com pequenos defeitos e abobrinhas atacadas por passarinhos viram produto de segunda linha, ração animal e adubo. Seu valor, entretanto, está embutido no preço. Porque existe quem pague.
Falando em quem paga, examinemos agora o consumidor de orgânicos. Eu, por exemplo, que frequento a feira da Água Branca todos os finais de semana.
O comprador de orgânicos é um indivíduo urbano de classe alta ou média-alta, que não se importa em pagar mais por um produto de maior qualidade. O valor da grife – no caso, a certificação orgânica – e o desejo de participar de um clube seleto também influenciam a decisão de compra. O mesmo vale para as cervejas artesanais e para o tomahawk de gado wagyu do churrasqueiro machão.
Orgânico é exclusividade. É participar de um grupo de pessoas tão espertas quanto você, com quem você pode conversar na mesma sintonia. É mais uma bolha social do século 21.
Isto não é piada. O alimento orgânico não tem como salvar o mundo, devido a todas as características intrínsecas descritas acima – o alto preço e a baixa produtividade, principalmente.
Você pode achar que protege sua família dos defensivos químicos. Justo. Eu também penso assim, mas falta-me embasamento técnico para discutir a questão com propriedade. Eu compro orgânicos porque sei, por experiência (ou por sugestão), que eles são mais gostosos. Mas nem toda a comida que eu compro é orgânica. Isso me levaria à bancarrota. Não seria uma atitude sensata.
A consciência de que os orgânicos não são a salvação do planeta leva a decisões de compra melhores – como, por exemplo, evitar as maçãs italianas. Mas, tudo bem, eu entendo: acreditar na utopia bucólica da elite intelectual urbana é muito mais divertido e confortável.
quinta-feira, 8 de março de 2018
Atenção às mulheres, OESP
Zeina Latif *, O Estado de S.Paulo
08 Março 2018 | 05h00
A desigualdade de gêneros é uma realidade. Mas seria injusto afirmar que o tema é negligenciado por formuladores de políticas públicas, gestores nos vários setores ou acadêmicos.
Existem muitos trabalhos acadêmicos sobre o tema, mas ainda há muita controvérsia sobre o peso relativo das diversas causas da desigualdade de gênero.
Uma área em que a diferença entre homens e mulheres é bem documentada é nas políticas de auxílio às famílias de baixa renda. São muitos os exemplos de que transferir os recursos para as mulheres, e não para os homens, aumenta a efetividade da política pública.
Na política habitacional, a experiência pioneira no Estado de São Paulo foi na gestão Mario Covas (1995-2001), que passou direcionar as moradias para as mulheres, em função da menor propensão a abandonar o lar.
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No Minha Casa Minha Vida, 89% dos contratos são firmados pelas mulheres. No Bolsa Família, 93%. A avaliação é que o empoderamento feminino produz um melhor uso dos recursos transferidos.
Alguns críticos apontam que esses programas podem acabar reforçando a responsabilidade das mulheres nas tarefas tradicionais de cuidar dos filhos e da casa. É importante ponderar, no entanto, que o objetivo desses programas não é promover a igualdade de gênero, mas sim a igualdade de renda. Outras políticas devem focar a igualdade de gênero, sendo que envolver as mulheres nas políticas acima aumenta a capacidade de atingir os objetivos almejados.
Tanto é assim que o modelo brasileiro do Bolsa Família foi adotado em outros países com bons resultados.
A pesquisa acadêmica internacional provê evidências de que as mulheres fazem melhor uso dos recursos dos programas de transferências de renda, garantindo maior e melhor alimentação para a família (como na República da Macedônia) e maior poupança e investimento produtivo de mulheres em áreas rurais (como na Zâmbia).
Há também evidências, ainda que menos contundentes, de que o poder de decisão das mulheres é ampliado (Bolsa Família e Progresa/Oportunidades no México).
Na literatura econômica internacional, as pesquisas sobre a desigualdade de salários entre homens e mulheres têm avançado. Há várias evidências de que a maternidade impacta negativamente a produtividade e o rendimento das mulheres. Identifica-se também um menor engajamento e ambição das mulheres.
Não é esperado que as firmas remunerem igualmente seus funcionários nesses casos, pois isso afetaria a sua competitividade. Além disso, tentativas de evitar a queda da remuneração poderão ser contraproducentes ao desestimular o empenho dos demais funcionários (as).
Não deve surpreender a queda da taxa de fertilidade nos diversos países, que tem resultado no envelhecimento da população. Por isso mesmo, alguns países começam a adotar políticas públicas para incentivar a maternidade.
Já a suposta menor ambição profissional das mulheres merece reflexão. Aqui a questão cultural e de educação das meninas ganha peso. Aquilo que parece ser menor ambição pode ser, na realidade, a falta de referências (“role models”) que ajudem as jovens a serem mais competitivas. As pesquisas indicam que mães que trabalham aumentam a chance de a filha de ter sucesso profissional.
Mulheres têm diferentes interesses, habilidades e, muitas vezes, sentem dificuldades para mostrar sua competência. Os departamentos de recursos humanos precisam ser mais sensíveis a essas diferenças na seleção de funcionários e nas promoções.
As evidências não são conclusivas, mas há indicações que a diversidade de gênero ajuda melhorar a performance das empresas. Vale a pena estimular a participação feminina.
Finalmente, vale citar que as mulheres, que já são a maioria no ensino médio e no ensino superior (57% em 2015), também são mais numerosas nas urnas. Foram 6,2 milhões a mais em relação ao número de homens votando em 2014. Além disso, como ensina Fatima Pacheco Jordão, as mulheres são mais criteriosas no voto do que os homens.
Melhor prestar atenção nas demandas das eleitoras. Em um ano eleitoral, é melhor prestar atenção nas demandas das eleitoras.
* ECONOMISTA-CHEFE DA XP INVESTIMENTOS
O futuro da desigualdade: foco nos jovens de hoje, OESP
Relatório traz um alerta sobre nossa baixa produtividade, a qual limita o crescimento econômico e afeta nossa capacidade redistributiva
Sérgio Firpo*, O Estado de S.Paulo
07 Março 2018 | 21h17
Sabe-se se que o Brasil é um país profunda e historicamente desigual. A despeito da recente queda da desigualdade de renda que se iniciou nos anos 1990 e que foi abortada a partir de 2015, continuamos a ser um dos dez países com a maior desigualdade de renda no mundo. Melhorar a distribuição de renda no Brasil no longo prazo, requer dar oportunidades mais igualitárias aos nossos jovens. Mas o recente relatório do Banco Mundial intitulado “Competência e Emprego: Uma Agenda para a Juventude” nos revela que talvez não estejamos caminhando nessa direção.
O relatório traz um alerta sobre nossa baixa produtividade, a qual limita o crescimento econômico e afeta nossa capacidade redistributiva. Elevamos em mais de 50% a escolaridade média da população nos últimos 30 anos. Seria de se esperar que trabalhadores com mais anos de estudo fossem mais produtivos em seus postos de trabalho.
Mas ganhos agregados de produtividade do trabalho não ocorreram nesse período. Para esse potencial “puzzle” há diversas explicações, como a baixa qualidade da educação básica, a ponto de os anos de escolaridade a mais não se refletirem em ganhos de aprendizado dos alunos e a falta de competição no mercado de produtos, que permite a empresas pequenas contratar trabalhadores de baixa produtividade e ainda conseguir manter suas operações. Não há, assim, nem a geração de competências e habilidades que serão úteis no mercado de trabalho, nem a demanda pelas empresas por tais habilidades.
Claro que há grande heterogeneidade entre os jovens na aquisição das competências e habilidades valorizadas no mundo do trabalho. Há também enormes diferenças entre empregadores no que se refere à demanda por essas habilidades. Ocorre que o mercado acaba alocando jovens com menos competências técnicas, cognitivas e socioemocionais em postos de trabalho informais, onde a rotatividade é maior e a contínua acumulação de habilidades desnecessária ou desincentivada. Isso perpetua desigualdade, pois esses jovens terão uma aderência precária ao mercado formal de trabalho, permanecendo longos períodos inativos ou desempregados e com capacidade limitada de escapar da vulnerabilidade social no futuro.
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A saída da armadilha que o País parece ter armado para si próprio, de baixo crescimento e alta desigualdade, depende da adoção de políticas públicas específicas. É imperativa a adoção de iniciativas que criem oportunidades para todos os jovens desenvolverem suas habilidades e de políticas que incentivem empresas a estimular o crescimento da produtividade de seus trabalhadores.
Precisamos mudar o foco das políticas públicas. O centro das políticas tem de estar em nossos jovens, ainda que, por restrições orçamentárias, tenhamos de reduzir os gastos, sobretudo previdenciários, com os mais velhos. A não ser que não nos importemos em ser listados de forma duradoura como top 10 nos rankings de desigualdade econômica.
* PROFESSOR DE ECONOMIA DO INSPER
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