quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A corrupção deles, por Carlos Melo (extasiante)


‘Petralhas, ‘tucanalhas’... É o roto que censura o rasgado e vitupera a si próprio. Desde quando é virtude denunciar nos outros o vício que dissimulamos em nós?

09 de novembro de 2013 | 16h 05

Carlos Melo*
Este parágrafo será longo. Para não ser injusto com o judas da vez, é bom lembrar que recordar é mesmo viver e, no caso, morrer de raiva. Há maracutaias para todos os gostos; uma sopa de letrinhas com todo um alfabeto de legendas. Nem só de fiscais inexplicavelmente milionários, na transição entre PSD e PT, se escreverá a crônica política do nosso tempo. A verdade é que escândalos não faltam, a começar, é claro, pelo célebre mensalão petista. Mas seria desonesto omitir o caso do cartel no metrô e na CPTM, em São Paulo, que envolve os tucanos e constrange até o intrépido Ministério Público, MP. A recente produção de esterco bateu recordes, pois há outros mensalões, em Minas (PSDB) e em Brasília (DEM); há Carlinhos Cachoeira e o impetuoso Demóstenes Torres (DEM); há Paulo Maluf (PP), artista veterano - um clássico -, agora oficialmente lavrado ficha suja; há as relações obscuras entre Sérgio Cabral (PMDB) e a Construtora Delta; há a soberba euforia de Eike Batista e sua OGX; há Rosemary Noronha e as ligações perigosas que oculta (PT); há o vertiginoso enriquecimento de Hussain Aref Saab e as aprovações de empreendimentos imobiliários em SP (PSD). Mais distante no tempo, houve anões, lalaus, precatórios, fitas... Difícil mencionar todos. Há tantos!
Máfia do ISS. Ronilson Rodrigues é apontado como chefe do esquema - REPRODUÇÃO
REPRODUÇÃO
Máfia do ISS. Ronilson Rodrigues é apontado como chefe do esquema
Casos não faltam. Não se trata de prejulgar; todos poderão se defender. Oxalá sejam inocentes! Cientistas políticos hoje respondem a processos por mencionar casos que estão nas manchetes; então, todo cuidado é pouco. Mas aquele que se dedicar a caçar exemplos no Google ficará abarrotado de trabalho. Para quem, em 1984, acalentou sonhos de democracia, o resultado da pesquisa é mesmo um pesadelo: será que aquilo deu mesmo só nisso? Claro que não. Mas o sentimento de frustração é evidente. O rio está poluído e mesmo quem defende as águas da política como atividade nobre - que precisa ser recuperada pela cidadania, etc. e tal - fica sem palavras. Dizer que não é bem assim? Não é mesmo bem assim, mas diante dos fatos, faltam argumentos.
Quando do mensalão - eis ele novamente - falava-se "no maior caso de corrupção de todos os tempos", R$ 50 milhões. Dinheiro pra chuchu. Deu em livros; falta fazer uma minissérie. Mas, agora, parece que a gatunagem esticou ou foi o cidadão que encolheu. Nos casos da Alstom e dos agentes municipais, as cifras giram em torno de meio bilhão de reais em cada um. MEIO BILHÃO! Mesmo que resulte ao patriarca uns tempos no sistema prisional, é butim para tratar toda a descendência como nababos. Dentro de certos parâmetros morais, uma reclusão, se houver, muitíssimo bem remunerada.
Claro, o problema não pode ser tratado apenas pela magnitude de valores: desviou mais ou desviou menos. Ladrão que rouba menos não é mais honesto por isso - talvez, menos ousado ou incompetente no seu mister. Todavia, nem é isso o que mais impressiona; desperta maior inquietação a democratização da pilhagem, que abraça quase todas as correntes políticas com poder no controle de máquinas administrativas.
Não se pode afirmar que partidos estejam diretamente envolvidos; que objetivamente tenham se beneficiado. Mais uma vez, cuidemos da moderação. Todavia, a conhecida dinâmica do financiamento de campanhas e da sustentação da atividade de agentes políticos torna a hipótese bastante plausível. Não seria de estranhar. Mas, obviamente, envolvidos ou não, todos os partidos são atingidos simplesmente porque é a atividade política a mais prejudicada. No mínimo, se dirá: "Atire a primeira pedra quem não guarda um trambolho desses escondido no armário". Temos um problema de grandes dimensões - moral, financeira, política, humana; trata-se da construção de um futuro doente. Há um tumor do qual não se enxerga as chances de extirpação ou isolamento. O mal-estar não cessa; assombra-nos o temor da metástase.
A percepção de que a corrupção esteja generalizada traz efeitos muito mais perversos que a corrupção em si. Além de minar a crença na atividade política, subjetivamente parece liberar todos a delinquir. Um ciclo vicioso floresce: se as autoridades fazem, por que o cidadão não o faria? Liderar é dar exemplo. É errado pensar assim. Mas que dizer de uma sociedade em que ser chamado de otário é pior que ser apontado como ladrão? Do processo emerge a barbárie: black blocs botam pra quebrar, o PCC se aproveita, comandos vermelhos e milícias se expandem. Já não mais se sabe o que é protesto, o que é oportunismo; o que é simples esquerdismo. De algum modo, a canalhice se expande e se justifica no discurso que exige endurecimento e repressão. Refunda-se o estado de natureza: o homem lobo do homem rasga a dentadas o contrato social; policiais atiram a esmo, crianças morrem nas ruas. O diabo refaz seu redemoinho no asfalto das marginais. O necessário equilíbrio político entre as forças se dá do pior modo: meu adversário não mais me obriga a ser honesto, antes me permite ser igualmente bandido.
Governo e oposição parecem se encontrar na armadilha que a dinâmica competitiva sem freios e imperativos morais armou. O que era para ser simples doença parece evoluir para a epidemia que se alastra por partidos, poderes e unidades da federação. Os números são exorbitantes; mas a exorbitância maior é a irresponsabilidade. A verticalização de São Paulo, saiba-se lá com que métodos e critérios se fez - ou antes, agora se sabe -, vai tornando a cidade disfuncional; a vida obtusa de uma existência estúpida entre excesso de automóveis e de arranha-céus, com ausência de esgoto, sol e ar. Metrôs atrasam, trens empacam; a saúde espalha doença; a segurança desperta violência; a educação embrutece.
Preferem, porém, os partidos apontar o dedo para os adversários, num Fla-Flu moderno sem a nostalgia do futebol romântico. O jogo se degenera em grossa pancadaria; morteiros são atirados da arquibancada num congraçamento de imbecis em que os dois lados têm razão sem ter razão alguma. Vai-se às ruas e às urnas denunciar nos adversários as misérias e a morbidez que há dentro de si. A guerra de advérbios e adjetivos sem substância se estabelece: "petralhas", "tucanalhas"; "mensalão", "privataria"... Os opostos não se anulam; antes, potencializam-se. De tudo transparece o cinismo e o farisaísmo; o roto que censura o rasgado e vitupera a si próprio, num sistema em farrapos. Desde quando é virtude denunciar, no outro, o vício que se dissimula? Mais do que crimes, comete-se o erro político ao negligenciar o futuro em que isso tudo pode dar. A responsabilidade exige um basta. Mas o fundo do poço é falso.
* CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER

Tráfico leva cada vez mais jovens à internação


Juízes do interior paulista são os que mais optam por tirar os infratores das ruas

10 de novembro de 2013 | 2h 02

Bruno Paes Manso - O Estado de S.Paulo
Na cela da Cadeia Feminina de Franca, no interior paulista, faltam colchões e energia elétrica. Há ratazanas e baratas. Não é permitido banho de sol nem existe atendimento médico, segundo vistorias recentes. Para lá foram mandados crianças e adolescentes acusados de vender drogas. Franca está entre os municípios que mais internam jovens envolvidos com o tráfico e o uso da cadeia feminina ocorre por causa da superlotação da Fundação Casa.
"As condições são insalubres. Vamos entrar com uma ação para obter uma liminar que retire todos de lá imediatamente", diz o defensor da Infância e Juventude da cidade, Luciano Dal Sasso Masson. Na semana passada, conseguiu fechar a cela da cadeia. Outras duas foram abertas, em melhores condições.
A superlotação de unidades do interior, que ocorre apesar do processo de ampliação e de descentralização das unidades da Fundação Casa, é uma das consequências do crescimento do tráfico. Atualmente, metade dos 9.026 jovens internados por tráfico mora em cidades do interior do Estado - proporção bem mais elevada do que às da capital (26%), Grande São Paulo (15%) e litoral (5%), áreas tradicionalmente vinculadas ao comércio de drogas. Há 8,7 mil vagas nas unidades da Fundação Casa no Estado.
A presidente da Fundação, Berenice Giannella, explica que, além do aumento do tráfico de drogas, os juízes do interior são mais rigorosos e costumam internar mesmo aqueles flagrados vendendo droga pela primeira vez. "O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é claro em estabelecer que a internação por tráfico, quando não envolve violência, só deve ocorrer quando o ato infracional for reiterado", diz. Apesar do crescimento da internação, ela afirma que a Fundação tem vagas 24 horas, como determina a Justiça.
A diferença na atitude do Judiciário pode ser vista na comparação entre roubo e tráfico nas diferentes regiões. No interior, dois em cada três jovens (66%) são internados por tráfico. Na capital, a proporção cai para dois em cada dez (20%). No litoral e na Grande São Paulo, a internação por tráfico também é menor que a de roubo.
Opiniões. Para o promotor da Infância e da Juventude de Franca, Augusto Soares de Arruda Neto, a postura mais dura tem sido mantida pelo MPE e pelo Judiciário há pelo menos 14 anos, período em que ele está no cargo. Ele diz acreditar que a internação de primários se justifica. Arruda Neto já ouviu em escuta autorizada pela Justiça dois traficantes conversando. Eles disseram que não iriam colocar crianças traficando em Franca por causa dessa postura rígida.
Já o coordenador da Pastoral do Menor de Franca, o padre Ovídio José Alves de Andrade, não acredita na internação em massa. Para ele, a solução seria aumentar o investimento nas medidas em meio aberto, que recebem bem menos dinheiro atualmente do que a Fundação Casa. "Enquanto quem trabalha no trabalho de prevenção, com ação social, recebe R$ 74 por jovem, na Fundação Casa o orçamento é de R$ 7 mil", diz.

‘Denúncias vão elevar índices de estupro’, diz ministra Eleonora Menicucci


Ministra usa ônibus e até barcos para atender vítimas pelo País

10 de novembro de 2013 | 2h 06

Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo
"É vergonhoso", disparou Dilma Rousseff dias atrás, ao comentar publicamente o novo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Referia-se ao seguinte vexame estatístico: o número de estupros no País, em 2012, foi 18,7% maior do que em 2011, superando o número de homicídios dolosos. Mas a reação da presidente, na avaliação de uma de suas ministras mais próximas, a socióloga Eleonora Menicucci de Oliveira, tem mais de indignação do que surpresa. Nesta entrevista exclusiva ao Estado, a titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres fala da obsessão de Dilma com o enfrentamento desse crime e garante: ambas, presidente e ministra, sabiam que o índice viria maior. "Porque as mulheres estão com mais coragem para denunciar. E, além disso, contam com um serviço de atendimento mais organizado e eficaz", resume.
Ex-presa política e feminista atuante desde os anos 1970, a mineira Eleonora Menicucci tem usado todo o seu arsenal de negociação para implementar o programa governamental Mulher, Viver Sem Violência, articulando parcerias com ministérios, governos estaduais e municipais, tribunais, defensorias públicas, delegacias e movimentos sociais. Admite que está em plena "cruzada nacional" pela adesão formal dos Estados ao programa, valendo-se sempre do apoio da presidente, de quem é amiga de longa data. Um apoio providencial: em agosto deste ano, Dilma sancionou, na íntegra, a Lei 12.845, que determina o atendimento integral à mulher vítima de violência, em toda a rede pública de saúde. Incluída a anticoncepção de emergência.
Com a força moral da Lei Maria da Penha e as bênçãos do Planalto, pode-se dizer que a "ministra das mulheres" anda animada com a dotação de R$ 305 milhões para o programa (volume inédito no campo das políticas oficiais de gênero). Além de dinheiro, ganhou servidores para tocar as diferentes iniciativas da pasta. E assim Eleonora Menicucci promete atacar em múltiplas frentes: com novo serviço telefônico para denúncia das violações, centros de fronteira, ônibus e até barcos, promete combater a violência contra a mulher, sob todas as formas e em todas as frentes.
Afinal, o anuário pegou a senhora e o governo de surpresa?  
Não fui pega de surpresa. O governo, também não. Sabíamos que, com o uso crescente do Ligue 180, aumentariam as denúncias. O número que surge agora é até subnotificado, por refletir apenas as mulheres que denunciaram os abusos, que procuraram postos de saúde e serviços especializados. Deve haver um número ainda maior, alcançando aqueles estupros que acontecem dentro de casa, com crianças sobretudo. Estupros de pai, padrasto, namorado da mãe, tio, vizinho, enfim, todo esse leque de agressores que se esconde na família ou no entorno dela. Agora, o dado não nos surpreende, porém é alarmante. É lamentável que a sociedade brasileira, em pleno século 21, ainda se defronte com a barbaridade que é a violência contra as mulheres, com a barbaridade que é o estupro.
Quando o Ligue 180 começou a funcionar? Tem sido uma boa estratégia?
Começou a funcionar em 2005. E tem sido uma estratégia fundamental. Tanto que a novidade, hoje, é que o Mulher, Viver sem Violência fará com que o Ligue 180 se transforme em Disque 180, até dezembro próximo. O serviço crescerá, ganhará mais resolução. No Ligue é possível informar às mulheres onde elas devem procurar atendimento. Já o Disque fará o link com os serviços. A mulher desliga o telefone tendo já falado com a delegacia, o posto, o hospital, isso em todo o território. Não existirá o risco de a vítima ficar na mão ou de o serviço perdê-la de vista. O compromisso do governo é atuar com tolerância zero em relação à violência contra a mulher e à impunidade dos agressores, estejam eles no ambiente doméstico ou não. O lugar deles é na cadeia.
Como tem sido operar com tolerância zero em campo tão minado, ministra?  
Esse caminho começou com o presidente Lula, em 2003. Começou com o pacto dos Estados e municípios para o enfrentamento do problema. O pacto permitiu à Secretaria de Políticas para as Mulheres, em ação coordenada com ministérios, descentralizar recursos para o fortalecimento da rede de serviços - delegacias, defensorias, juizados especializados, postos de saúde, hospitais de referência. Quatro anos depois de firmado o pacto, todos os Estados aderiram (ao que se sabe, menos Pernambuco). Nesse ínterim, aprovamos a Lei Maria da Penha, que é uma das mais importantes do mundo, e quem diz isso é a ONU, além de eu achar também. Depois veio o governo da presidente Dilma, trazendo outros avanços por meio do Mulher, Viver Sem Violência. Dou um exemplo: uma das seis ações básicas do programa é a construção da Casa da Mulher Brasileira em todas as capitais, daí a cruzada que venho fazendo pelo Brasil - esta semana vou a Maceió, depois Recife, Natal...
O projeto dessas casas tem sido bem acolhido nos Estados?  
Sim, porque estabelecemos parcerias. Os terrenos são da União, que também arca com os dois primeiros anos de custeio da casa, infraestrutura, mobiliário, transporte, internet... Já o governo estadual, ao assinar o termo de adesão, compromete-se com a parte legal, por exemplo, o juiz da Vara, a delegada. E daí o município entra com a assistência social, incluindo psicólogos, educadores, especialistas em trabalho e renda... Serão 26 casas pelo País, 11 delas inauguradas até junho de 2014. Fora isso, abriremos centros nas áreas de fronteira, justamente para enfrentar o tráfico de mulheres e crianças para a exploração sexual. Centros em Brasileia (AC), Corumbá (MS), Santa do Livramento e Jaguarão (RS), Ponta Porã (MT), Tabatinga (AM). E vamos melhorar os já existentes, na fronteira tripartite (em Foz do Iguaçu), Pacaraima (entre Venezuela e Roraima) e Oiapoque (divisa com a Guiana Francesa). Serão investidos R$ 500 mil em cada um desses centros.
Por que tanto foco nas fronteiras?
Porque temos dados concretos da situação, com base em informações que chegam pelo 180 e pelos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores. O número de casos de violência contra mulheres dobrou nessas áreas nos últimos dois anos. Em 2012, desbaratamos duas quadrilhas de tráfico e exploração sexual, uma em Salamanca e Ibiza, na Espanha, e outra no Brasil, traficando mulheres e crianças do Sul para o Norte. É algo gravíssimo. Decidimos usar ônibus especiais do programa para atender mulheres no campo e na floresta, dois para cada Estado brasileiro. E, em 2014, serão sete barcos para atuar nas áreas ribeirinhas, nos Estados do Norte. Não tenha dúvida de que todas essas ações, somadas, vão estimular a notificação dessa violência que antes ficava confinada dentro de casa.
Ou seja, os índices devem ainda crescer por mais algum tempo?  
Sim, mas o lado bom dessa história é que as mulheres estão conseguindo romper o silêncio. Nosso objetivo é fazer com que as notificações sejam cada vez mais consistentes, as mulheres, cada vez mais determinadas e a sociedade, cada vez mais consciente. É importante destacar o envolvimento dos diferentes setores nessa cruzada nacional: os Tribunais de Justiça, o Ministério Público, que sempre me acompanha nas visitas que faço aos Estados, as Defensorias Públicas, as delegacias, os IMLs (Instituto Médico-Legal) e os hospitais de referência, atuando de forma humanizada. Enfim, a Lei 12.845, que a presidente sancionou sem vetos em 1.º de agosto, garante exatamente isso: o atendimento integral à vítima.
Como a senhora explica essa persistência do crime de estupro no Brasil, um país que tem feito distribuição de renda, com impactos na vida dos mais pobres?  
Não há uma relação direta. Claro, a distribuição de renda tem papel estruturante, tanto que a mulher, ao conquistar alguma autonomia econômica, ganha autoconfiança, perde medo. Vemos isso pelas titulares do Bolsa Família. Porém, o estupro ainda é decorrência da casa grande e senzala. Do patriarcado. E digo isso com a experiência de quem estuda há anos essa problemática. Fora isso, a diminuição da desigualdade social ainda não se fez, na mesma medida, em relação à desigualdade de gênero. A mulher ainda é vista como propriedade do homem. E mesmo que tenhamos julgamentos exemplares de agressores, como o Bruno, o Mizael, aquele estupro coletivo em Queimadas, na Paraíba, ainda persiste a visão patriarcal. Vamos nos aprofundar nessa reflexão, já estamos analisando as denúncias do 180, como elas chegam, quais as narrativas das vítimas, qual é a etnografia de vida dessas mulheres.
Quando uma mulher finalmente chega a denunciar o estupro, na maioria dos casos ela terá sido vítima recorrente dessa violência?  
Coordenei em São Paulo uma casa de atendimento mantida pela Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, onde sou professora. Com base nessa experiência e agora com o que vejo do problema, como ministra, entendo que há dois tipos de estupro: o que acontece dentro de casa, por agressor conhecido, portanto, um crime raramente notificado, e o que acontece na rua, por agressor desconhecido, geralmente acompanhado de muita violência física, além do abuso sexual e da humilhação. Esse crime em geral acontece no horário em que a mulher sai para trabalhar, de manhã, entre a casa e o ponto de ônibus, ou na volta do trabalho, à noite. Por isso é tão importante uma cidade iluminada e com boa mobilidade urbana. Tenho dito aos prefeitos com os quais me encontro: a grande vítima de uma cidade escura é a mulher.
Pelos dados do Anuário, os Estados com índices mais altos de estupro são Roraima, Rondônia e Santa Catarina. E o Estado com o menor índice é a Paraíba, onde o célebre forró canta a braveza da "mulher macho, sim senhor". Isso faz algum sentido para a senhora?  
Não dá para dizer que é assim porque as paraibanas são mais bravas (ri). O que dá para dizer é que Estados com os mais altos índices são justamente aqueles que não têm secretarias de políticas para as mulheres. Roraima, aliás, acabou de criar a sua, estive lá na semana passada. Já a Paraíba tem duas secretarias fortes, uma estadual, outra municipal. Quando as administrações, em nível municipal, estadual ou federal, estruturam suas políticas de gênero, contando com recursos humanos e financeiros, os efeitos se fazem sentir. Pense que uma mulher estuprada precisa cruzar pelo menos três portas ao reagir: a primeira pode ser o 180. Outra é o pronto-socorro. Se ele não tem enfermeiros e médicos treinados para atender, fica ruim. Hoje já temos 87 hospitais públicos preparados para prestar esse atendimento. E a terceira porta é a delegacia. Veja como é um longo caminho.
Os hospitais estão fazendo a anticoncepção de emergência?  
A sanção da presidente foi para isso. O hospital que não quiser fazer o atendimento, alegando objeção de consciência do médico, é obrigado a encaminhar a vítima para outro centro. Assim opera um Estado laico, que toma para si a responsabilidade.
E a impunidade do agressor?  
A meu ver, é o lado mais complicado. Temos uma articulação com o Ministério da Justiça, os tribunais, as secretarias de Segurança Pública, delegacias, em todos os Estados. Mas a punição só existe se houver a denúncia. Até porque, sem a denúncia, não há crime. Por isso, o ministro José Eduardo (Cardozo, da Justiça) e eu temos chamado a atenção das mulheres, e da população em geral, para a importância de denunciar. Em termos de faixa etária, o estupro pega todas as idades, de uma criança até uma idosa, como pude constatar quando atendi em São Paulo uma senhora de 70 anos, vítima dessa barbaridade. O estupro é uma experiência devastadora da identidade feminina.