quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Para o alto e para o caos


10 de novembro de 2013 | 2h 10

Celso Ming - O Estado de S.Paulo
Uma cidade viva é feita de esquinas, pontos de encontro e gente nas ruas. A definição da escritora norte-americana Jane Jacob, no livro Morte e Vida de Grandes Cidades (1961), é ignorada nas metrópoles brasileiras, que seguem erguendo edifícios cada vez mais altos, isolados por muros de concreto e espaços infindáveis para garagens.
A verticalização foi há anos recomendada por urbanistas e empresários da construção civil como melhor forma de aproveitamento da infraestrutura de redes de água, esgoto, energia elétrica, cabos telefônicos e sistema viário. No entanto, as cidades estão sendo tão dramaticamente asfixiadas por congestionamentos, que está mais do que na hora de reexaminar esse conceito. Mesmo municípios de pouco mais de 300 mil habitantes começam a acusar engarrafamentos até na saída da garagem de condomínios.
Se for aprovado o novo Plano Diretor Estratégico, São Paulo se verticalizará ainda mais. A proposta do prefeito Fernando Haddad permite aumento da área construída de até quatro vezes a área do terreno, no entorno de linhas de trens e de corredores de ônibus, coeficiente de aproveitamento adotado apenas em zonas especiais, como na Avenida Paulista.
Como foram criados 220 km de faixas exclusivas para ônibus apenas nos primeiros 10 meses da gestão Haddad, a aprovação desse Plano produzirá enorme impacto urbanístico, provavelmente ainda não levado em conta.
Marly Namur, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) recomenda cautela: "Os espaços vazios se esgotaram, mas não dá para adensar toda São Paulo. O sistema viário não suporta. É preciso combinar lei de ocupação do solo e plano de transportes". No entendimento da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), a melhor ocupação ao longo de grandes avenidas induzirá o emprego e reduzirá a necessidade de deslocamento da população.
Essa estratégia não garante bons resultados. Como argumenta Pedro Moreira, vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o ideal é morar perto do emprego, mas a escolha é rara. Trabalha-se onde há emprego. O sujeito mora em Itapecerica e vai ganhar o pão no Ipiranga. Seis meses depois, não tem saída senão trabalhar na Vila Leopoldina.
A SMDU ainda defende o incentivo a construções de uso misto, nas quais o andar térreo de edifícios residenciais é aberto para uso comercial. Isso pode trazer problemas novos: "Prédios isolados com muros e vários andares de garagem são um equívoco, uma negação da cidade", adverte Valter Luís Caldana Jr., da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie. É possível adensar sem verticalizar, diz ele, por meio da alteração dos recuos das laterais e dos fundos do terreno, como em Barcelona e Paris: "Tudo depende de pensar a cidade junto com a rua, calçadas largas e arborizadas, e ocupação do andar térreo como fator de oxigenação do sistema".
No entanto, desde os tempos de Colônia, a ocupação das áreas urbanas no Brasil tem sido marcada por improvisos e enorme irracionalidade.
(Colaborou Danielle Villela)

Fumei e traguei


10 de novembro de 2013 | 2h 16

Stephen Marche* - O Estado de S.Paulo
TORONTO - Ainda recentemente, uma imagem bastante acurada de Toronto circulou no Twitter. Uma das catracas do Metrô quebrou e nenhum guarda estava por perto, de maneira que os passageiros deixaram seus bilhetes e trocados ao lado dela, formando uma pequena pilha. Vivo numa cidade que respeita absurdamente a lei e os regulamentos. Mas há uma exceção: o prefeito. Ele fuma crack. E confessou o fato na terça-feira. Duas vezes.
Primeira pedra. Ford culpou o 'estupor de embriaguez' em que se encontrava - Mark Blinch/Reuters
Mark Blinch/Reuters
Primeira pedra. Ford culpou o 'estupor de embriaguez' em que se encontrava
Os velhos clichês sobre a cidade onde vivo começam a evaporar. O que ocorreu com Toronto? Onde está a "Nova York governada por suíços"? O uso de crack pelo prefeito Rob Ford - "em um de meus estupores de embriaguez", como admitiu - é o exemplo extremo de suas recentes aventuras ilícitas. Talvez a história mais reveladora de uma ocorrência policial que veio à tona há alguns dias tenha sido a escapada do prefeito com o amigo colega Sandro Lisi, atualmente na prisão, acusado de extorsão, deixando no caminho sacos de garrafas de vodca vazias.
Até agora isso não afetou sua popularidade, que na verdade aumentou 5 pontos na semana passada, para 44%. Isso depois de o delegado de polícia confirmar a existência de um vídeo "coerente" com notícias que surgiram pela primeira vez em maio, de que o prefeito fumava crack, fato que ele negou até terça-feira. Mas, de acordo com pesquisas de opinião, Rob Ford é cinco vezes mais popular que o atual Congresso dos EUA.
Talvez não surpreenda, portanto, que ele tenha se recusado a renunciar ao cargo. Ford aproveitou a confissão para lançar sua campanha pela reeleição no próximo ano. "Precisamos manter Toronto avançando", disse num comunicado preparado previamente. E ele poderá vencer com facilidade a eleição. Depois de um pseudo pedido de desculpas durante seu programa de rádio no último domingo, um ouvinte o comparou a John F. Kennedy. Outro lembrou que Winston Churchill tomava sua garrafinha de uísque por dia. Ford é um populista, sem dúvida, mas ele capta melhor que ninguém as fortes correntes de ira contra as instituições da cidade.
Aparentemente Toronto parece melhor que nunca. Graças a nosso sistema bancário bem regulamentado, tivemos uma recessão bastante suave. Recentemente a cidade passou Chicago em população. Sua qualidade de vida é alta, com boas escolas públicas, hospitais gratuitos e um governo que combina regulamentos de peso com mercados abertos. Mas a cidade está dividida e revoltada. E Ford soube aproveitar essas fissuras. A prefeitura está quebrada - resultado de uma fusão desastrosa realizada por conservadores provinciais. Nosso falido sistema de governo tem gerado graves consequências. Enquanto a rede de metrô congelou no tempo em 1980, a média de pessoas que utiliza o transporte público para ir ao trabalho superou a de Los Angeles.
Apesar dos seus arrancos racistas e das relações de seu irmão com a Ku Klux Klan, Ford tem grande apoio nos bairros de imigrantes na periferia - conquistado com base na alienação desses imigrantes. Insistiu para que linhas de metrô fossem construídas nesses bairros, em vez de defender propostas de trens rápidos mais sensatas. E ressalta que esses bairros devem ter exatamente o que as pessoas elegantes têm no centro da cidade. A ira contra as velhas elites é evidentemente profunda e resistente.
Os valores das velhas elites também sobrevivem. Toronto pode ser uma das cidades mais multiculturais do mundo, com mais da metade dos moradores nascida em outros países, mas conserva um forte legado do Império Britânico. O teórico de literatura Northrop Frye a descreveu como "um bom lugar para se cuidar da própria vida". E é ainda uma cidade em que só se pode comprar bebidas alcoólicas no Liquor Control Board (empresa criada pelo governo para controle do consumo) e onde a possibilidade de se abrir um cassino no centro provocou uma enorme campanha de oposição.
Diante disso a desculpa de Ford em seu programa de rádio refletiu velhos valores: "Não deveria ter me embriagado. Se você quiser tomar umas e outras, fique em casa. Não vai querer se tornar um espetáculo público". O erro do prefeito, segundo ele próprio, foi ter se comportado como um bêbado em público. Deveria tomar sua bebida em silêncio, no porão. Essa cidade do beber no porão (e fumar crack) está desaparecendo. A velha Toronto se esvanece. A Toronto de funcionários públicos responsáveis e insípidos, invisivelmente eficazes, de mulheres carrancudas que julgam silenciosamente, da veneração do tédio, a cidade com a pergunta do velho conto de Alice Munro nos lábios: "Quem você acha que é?" - Toronto, a insípida vai sumindo, talvez já tenha desaparecido. Tinha dignidade, reconheça-se. Toronto hoje é a cidade de Rob Ford, um total desastre em expansão, alimentada por segredos sombrios, desejos inarticulados e virulência incipiente. Vencendo 20 anos de decisões sensatas, ela começa a ficar interessante. Tornou-se uma cidade que fez de si mesma um espetáculo.
*Stephen Marche é romancista e editor colaborador de Esquire. Escreveu este artigo para o The New York Times.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

Punir quem?

Paulo Itacarambi*
Por que as empresas continuam entrando na roda da corrupção? Não dá para entender, diria o leitor que olha o assunto de fora sem conhecer as condições intrínsecas da situação. As empresas são cada vez mais fiscalizadas pelo poder público, vigiadas pela sociedade através da mídia e tem aumentado o controle dos órgãos públicos e rigor da legislação. Enfim, a empresa que participa da corrupção corre riscos de multas altas, perda de reputação, valor de mercado e até de dissolução. As empresas sabem e veem isso acontecer no Brasil. Ainda assim, continuam participando. Por quê?
Dedo-duro. Porsche chama atenção para dono e vira símbolo de escândalo - Tiago Queiroz/Estadão
Tiago Queiroz/Estadão
Dedo-duro. Porsche chama atenção para dono e vira símbolo de escândalo
Vamos olhar as diferentes situações de corrupção e os dilemas envolvidos.
A primeira situação corresponde àquelas empresas que são articuladoras dos esquemas, por fora da administração pública ou em conjunto com agentes públicos. Usam essas ações como forma de ampliar o próprio lucro e crescimento. A corrupção faz parte do seu modus operandi. Em relação a esse tipo de empresa, é razoável supor que ou ela muda ou o movimento da sociedade fará com que seja extinta em breve, pois escolheu o caminho do precipício.
Há um segundo tipo de situação em que as empresas entram no esquema porque pensam que "é assim que as coisas funcionam". De fato, a corrupção tem perdurado por tanto tempo e se ramificado para quase todos os escalões do serviço público, em todos os âmbitos e poderes, sem que tenha havido as devidas punições, que muitos podem achar que ela é algo "natural". E não só no Brasil. Essa ideia, inclusive, permeia estudos de muitos economistas. Eles chegaram até a estabelecer um "valor aceitável" para a corrupção num "país civilizado": entre 1% e 2% do PIB. Essa naturalização do problema é que torna a corrupção ainda mais difícil de ser combatida. A empresa acha natural pagar "pedágio", imaginado que quem está praticando a corrupção é o agente público. Engano, quem está pagando esse "pedágio" também é corrupto. Aliás, na União Europeia, antes do estabelecimento das diretrizes anticorrupção da OCDE, as multinacionais do continente contabilizavam as propinas pagas a agentes públicos ou privados em países da América Latina, Ásia e África como "despesas de representação". Mas, nos anos 1990, as múltis começaram a usar esse "truque" para encobrir corrupção no próprio continente. Essa situação criou as condições para a OCDE estabelecer suas diretrizes contra o suborno, determinando a todos os países signatários (como o Brasil) que estabelecessem leis para punir empresas nacionais envolvidas em corrupção no estrangeiro.
A terceira situação refere-se às empresas que são achacadas por fiscais e aceitam submeter-se às propostas por vários motivos. O principal é a insegurança quanto ao rito processual e o tempo de obtenção de certidões e alvarás, devido à falta de garantia de que não haverá interferências arbitrárias no processo. Outro motivo é a falta de confiança e de informação sobre a quem apresentar reclamação e denúncia. Têm receio de apresentar a queixa justamente para o chefe do esquema. Assim, entre correr o risco de levar anos para conseguir um "habite-se" ou um comprovante de quitação de ISS ou IPTU, colocando a empresa em risco financeiro, pelo prazo de execução da obra, o executivo faz as contas e considera valer mais correr o risco de pagar do que de denunciar.
As empresas precisam entender que essa conta está furada. Esse é um tipo de risco que não vale a pena correr. Todavia, a situação não se resolve só com a mudança de comportamento da empresa. A administração pública precisa criar uma estrutura confiável para receber e apurar denúncias desses achaques; precisa também garantir o rito processual dos documentos necessários para o funcionamento dos negócios, para que as empresas não fiquem à mercê da boa vontade de fiscais.
A quarta situação é aquela em que a empresa tudo vê, mas nada faz, com medo de que se abata sobre si a mão pesada do Estado, uma vez que, no emaranhado de nossa legislação, ninguém sabe se está faltando "um papel" ou "um carimbo". Nesse caso, quanto mais avance a legislação, a mobilização da sociedade e a redução da impunidade, mais elas vão se sentir encorajadas a agir e denunciar.
Uma lei que vai entrar em vigor em 29 de janeiro de 2014 vai de certo contribuir muito para mudar o cenário da corrupção no Brasil. Estou falando da lei anticorrupção, que foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em agosto, depois de tramitar pelo Congresso por três anos.
O que essa lei tem de diferente em relação às outras leis anticorrupção do País? Ela pune a pessoa jurídica que cometer atos lesivos contra a administração pública aqui ou no estrangeiro com multas de até 20% sobre o faturamento bruto, suspensão das atividades e até dissolução compulsória da companhia, bem como proibição de recebimento de incentivos de órgãos públicos. Até agora, em casos de corrupção, apenas as pessoas físicas – executivos ou agentes públicos – são processados, as empresas (PJs) não. Com a possibilidade de também atingir a empresa, fica mais fácil desmontar os esquemas.
É por causa de leis semelhantes já aprovadas em seus países de origem que a investigação no Brasil das empresas do cartel da CPTM e do metrô pode contar com o progresso das investigações naqueles países.
Se nossa lei anticorrupção já estivesse em vigor hoje, as empresas envolvidas nesse caso dos fiscais da Prefeitura de São Paulo teriam de pagar multas milionárias e poderiam até ter sua dissolução decretada.
A lei anticorrupção brasileira ainda precisa ser regulamentada e, para isso, em dezembro, o Instituto Ethos vai organizar um seminário com a CGU para contribuir com subsídios para essa regulamentação. Acreditamos que essa lei realmente venha a ser um divisor de águas na história da integridade e do combate à corrupção no Brasil.
* PAULO ITACARAMBI É VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO ETHOS E DIRETOR EXECUTIVO DO UNIETHOS