sábado, 9 de novembro de 2013

A guerra contra as mulheres - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA


O GLOBO - 09/11

Aqui 50 mil mulheres são violadas por ano, e a sociedade assiste em silêncio



A história das mulheres é um longo percurso de lutas contra a humilhação e a brutalidade, escrevi há 30 anos. Não pensei que voltaria a escrever. Tudo parecia indicar que a sociedade brasileira saíra da Idade da Pedra com seus Brucutus arrastando as mulheres pelos cabelos e possuindo-as no melhor estilo animal.

Ilusão. A história das mulheres continua marcada pela humilhação e a brutalidade. É o que contam os dados do Fórum Nacional de Segurança Pública: 50 mil casos de estupro no Brasil no ano de 2012.

Este número aberrante não deveria cair no esquecimento como uma má notícia entre outras. Cinquenta mil americanos morreram na Guerra do Vietnam e isso mudou a América. Aqui 50 mil mulheres são violadas por ano e a sociedade assiste em silêncio.

Segundo a pesquisa, o número de casos vem aumentando. Os estupros de fato aumentaram ou o que aumentou foi sua notificação? Se assim for, é provável é que esses números sejam apenas a ponta do iceberg.

Um caso isolado de estupro é uma tragédia que o senso comum põe na conta de algum tarado que ninguém está livre de encontrar numa rua deserta. São psicopatas que agem por repetição à semelhança dos serial killers. Requintados torturadores, desprovidos de culpa ou remorso, são descobertos e presos. Quando saem, reincidem.

Cinquenta mil casos têm outro significado. A psicopatia não explica. Configura-se uma tara social, uma sociedade que convive com a violência sexual com uma naturalidade repugnante. São milhares de estupradores que, assim como os torturadores, transitam entre nós como gente comum. Estão nas ruas, nas festas, nos clubes, lá aonde todos vão, e passam despercebidos. Estão nas famílias e nas vizinhanças onde mais frequentemente agem — suprema covardia — aproveitando-se da proximidade insuspeita com a vítima.

Dissimulam seu alto potencial de crueldade no magma de desrespeito em que se misturam machismo, piadas grosseiras, gestos obscenos, aceitos como parte da cultura. A certeza da supremacia da força física, herdaram das cavernas. O desprezo pelas mulheres, aprendem facilmente em qualquer conversa de botequim. Ninguém nasce estuprador: torna-se.

O estupro é uma mutilação psíquica que a vítima carrega para sempre. Fecundação pelo ódio e contaminação pelo vírus do HIV são sequelas possíveis desse pesadelo. O medo ronda. Quantas mais estarão em risco? Pergunte-se a qualquer mulher se, uma vez na vida, se sentiu ameaçada pela violência sexual. Há uma guerra surda contra as mulheres. Quando as guerras de verdade se declaram, o estupro como arma se pratica às claras. Na Bósnia, a “limpeza étnica”, crime contra a humanidade, se fazia violando as mulheres.

Há décadas os movimentos de mulheres denunciam essa guerra surda. Estão aí as Delegacias da Mulher e a Lei Maria da Penha. O anacrônico Código Penal, que falava de crime contra os costumes, hoje capitula o estupro como crime hediondo. Aumentaram as penas e os agravantes. A Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres criou o número 180 para acolher as denúncias e promete espalhar Casas da Mulher em todos os estados.

Dir-se-ia, no entanto, que estupradores não temem a denúncia, a lei e a Justiça. Por que será? De onde lhes vem a sensação de que o que fazem não é crime e, se descobertos fossem, ficariam impunes?

A resposta está no sentimento de poder sobre o corpo das mulheres que nossa sociedade destila como um veneno. É esse caldo de cultura, em que a violência sexual de tão banal fica invisível, que estimula e protege os agressores, realimentando a máquina de fazer monstros. Some-se a isso uma espécie de pacto de silêncio que, salvo quando os dados gritam como agora, impede que se reconheça a gravidade do problema que, na sua negação da dignidade humana, é comparável à prática da tortura.

Os governos descuidam do indispensável amparo às vítimas. Ora, se não há reparação possível, deve haver acolhimento e socorro. Em todo o país os serviços de saúde pública capazes de oferecer a possibilidade de um aborto previsto em lei são ridiculamente insuficientes para atender às consequências desse massacre.

A mesma energia com que a sociedade brasileira condena a tortura é necessária para debelar a epidemia de crueldade. Três mudanças de comportamento se impõem, imediatas: o fim da tolerância com o desrespeito às mulheres, em casa e nas ruas; a inclusão para valer da prevenção e repressão da violência sexual na agenda da segurança pública; e a expansão dos serviços de amparo às vítimas. É o mínimo que o Brasil deve às mulheres.

O vilão da inflação é também o da estagnação

09 de novembro de 2013 | 2h 02

Rolf Kuntz - O Estado de S.Paulo
Esqueçam o tomate, a carne e as passagens aéreas. Não falem mal das leguminosas, dos hortigranjeiros ou dos salões de beleza. O vilão da inflação nunca será encontrado na lista de bens e serviços comprados pelos consumidores. A imagem usada pela imprensa é mera repetição de uma velha metáfora criada lá pelos anos 80 ou pouco antes. Ninguém deve entender literalmente essa figura de linguagem. O vilão existe, sim, mas é de outro tipo. É o mesmo da estagnação econômica, da irresponsabilidade fiscal e da erosão das contas externas. Em uma palavra, é o governo, embora esse nome pareça um tanto inadequado para designar a presidente Dilma Rousseff e a trupe espalhada por 39 ministérios, uma porção de estatais e outros órgãos da administração indireta.
Explicar e justificar uma sucessão de números muito ruins tem sido, há algum tempo, uma das principais atividades desse pessoal. Mas nenhuma retórica disfarça o péssimo desempenho fiscal de setembro, quando até o resultado primário foi negativo, ou a aceleração contínua da inflação mensal desde agosto. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, ainda classificou como bom resultado a alta de 0,57% do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no mês passado. Não há nada de bom nesse número, nem se pode - ao contrário da afirmação do ministro - considerá-lo normal para esta época do ano.
Só se pode falar de normalidade em outro sentido: esgotado o efeito dos truques com as tarifas de transporte e as contas da energia, o recrudescimento da alta de preços foi absolutamente natural. Que mais poderia ocorrer, quando há um desajuste inegável entre a demanda, principalmente de consumo, e a capacidade de oferta da indústria nacional? Esse desajuste, é bom lembrar, é alimentado principalmente pela política oficial, marcada pela gastança e pelos estímulos ao consumo e reforçada pela expansão do crédito.
Sem esses fatores, nenhum aumento do preço do tomate ou da carne bovina produziria um impacto tão amplo sobre todos os mercados. Além disso, o efeito da depreciação cambial seria muito menos sensível, como tem sido em outras economias emergentes. Aquelas, como a da Índia, com problemas graves de inflação, têm também, como o Brasil, sérios desajustes fiscais e limitações importantes do lado da oferta.
O efeito da demanda é também evidente na evolução dos preços dos serviços, com alta de 0,52% em outubro e 8,74% em 12 meses. No caso dos bens, o aumento de preços tem sido atenuado, em parte, pela importação crescente, mas essa é uma solução inviável quando se trata de aluguel residencial, conserto de automóvel, consultas médicas ou serviços de manicures, para citar só alguns itens de uma lista muito ampla de atividades. O mesmo desequilíbrio entre a demanda crescente e a capacidade de oferta muito limitada reflete-se também no déficit comercial de US$ 1,83 bilhão acumulado de janeiro a outubro. Nesse período, o valor exportado, US$ 200,47 bilhões, foi 1,4% menor que o de um ano antes, pela média dos dias úteis, e o gasto com importação, US$ 202,3 bilhões, 8,8% maior.
O aumento das compras de petróleo e derivados - diferença de US$ 6,64 bilhões de um ano para outro - foi um fator importante, mas o total da importação foi determinado principalmente por outros fatores. A elevação de US$ 17,29 bilhões na despesa com bens estrangeiros refletiu acima de tudo os desajustes internos e especialmente a perda de eficiência da economia nacional.
Não há como disfarçar a redução da produtividade e do poder de competição, resultante principalmente de uma coleção de falhas da política econômica. A agropecuária ainda é produtiva em grau suficiente para compensar os problemas sistêmicos da economia brasileira e conquistar espaços no mercado internacional. A maior parte da indústria tem sido incapaz de vencer esses obstáculos. Os mais comentados são as deficiências de infraestrutura e a tributação irracional, mas a lista é ampla e um dos mais importantes, embora nem sempre lembrado, é o despreparo da mão de obra.
Há pouco tempo a Confederação Nacional da Indústria divulgou pesquisa sobre a escassez de trabalhadores qualificados para o setor de transformação. Outra sondagem, nesta semana, tornou o quadro ainda mais dramático: 74% das empresas de construção consultadas indicaram dificuldades para encontrar pessoal aproveitável. Quase todo esse grupo - 94% - reclamou da escassez de trabalhadores preparados até para serviços básicos, como os de pedreiro e ajudante.
Em outros tempos, a construção exercia, entre outras, a função estratégica de absorver pessoal de baixa qualificação. Isso mudou. As construtoras progrediram tecnologicamente e a educação ficou para trás, principalmente nos níveis fundamental e médio. Pessoas um pouco mais atentas apontaram a má escolha do objetivo, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu cuidar prioritariamente do acesso a faculdades, por meio de bolsas, cotas e maior oferta de vagas. O País paga caro, hoje, por essa decisão obviamente demagógica e eleitoreira.
Ninguém deve esperar grandes avanços na política educacional em curto prazo. No Rio Grande do Sul, nesta sexta-feira, a presidente Dilma Rousseff repetiu, como se fosse algo muito bom, uma ameaça muito ouvida nos últimos tempos: por meio dos recursos do petróleo, a educação será transformada no "caminho fundamental" do desenvolvimento. Essa é uma assustadora conversa mole. O Brasil precisa de educação há muito tempo, é preciso cuidar do assunto imediatamente e há recursos mais que suficientes para isso. Apostar no hipotético dinheiro do pré-sal equivale a encontrar mais uma desculpa vergonhosa para nada fazer de sério pela educação.

*Jornalista

Após Haddad, Alckmin amplia reprovação escolar (pauta PDP Giannazi)

A partir do ano vem, alunos da rede estadual poderão ser retidos em três das nove séries do ensino fundamental: na 3ª, 6ª e 9ª

09 de novembro de 2013 | 2h 12

PAULO SALDAÑA - O Estado de S.Paulo
O governador Geraldo Alckmin (PSDB) anunciou ontem uma reforma no sistema de progressão continuada das escolas estaduais. A partir do ano vem, o número de séries em que os estudantes podem ser reprovados vai aumentar. A decisão foi anunciada quatro meses depois de o prefeito Fernando Haddad (PT) promover alteração semelhante na rede municipal.
Os alunos da rede estadual de São Paulo poderão ser reprovados em três das nove séries do ensino fundamental: no 3.º, 6.º e 9.º anos. Até este ano, a retenção era prevista em apenas dois momentos, no 5.º e no 9.º anos. No caso da cidade de São Paulo, a mudança, aprovada depois de consulta popular, prevê possibilidade de reprovação em cinco momentos.
Aumentar o número de ciclos sempre foi uma decisão delicada pelo receio de crescimento nas taxas de reprovação. Uma série de estudos mostra que a retenção é o primeiro passo para o abandono escolar.
O secretário estadual de Educação, Herman Voorwald, afirmou ontem que, apesar de aumentar a possibilidade de reprovação, não espera alta nas taxas. "Não entendo que isso vá aumentar a reprovação. Entendo que crescerá a responsabilidade do aluno e do professor e a necessidade de (indicar) reforço." Segundo Voorwald, o sistema de recuperação já existente e os investimentos do Estado na contratação de professores vão colaborar com a medida.
Alckmin também negou que a ideia seja reprovar mais. "A reprovação cria na criança a cultura do fracasso. Por outro lado, não se pode ficar cinco anos sem reprovação. Esses três ciclos me parecem um aperfeiçoamento, a ideia não é reprovar."
Segundo o governo, as alterações são fruto de estudos e consultas à rede iniciados em 2011. O governador negou que a reforma municipal promovida por Haddad neste ano tenha sido levada em conta na decisão da mudança. "(A decisão da Prefeitura) não teve nenhuma interferência porque isso vem sendo discutido há dois anos com a rede. É fruto de um longo debate com os professores", disse.
Aval. Para a professora Maria Izabel Noronha, presidente da Apeoesp, maior sindicato da categoria, a mudança é bem-vinda. "Era necessário mudar. Se o que está implementado não deu respostas, não tem tido um resultado que aponte uma melhor forma de aprendizagem, temos de pensar no que foi feito", disse ela. "Eu não resumo tudo a poder repetir. O que está em questão é a oportunidade que os alunos terão de aprender."
O professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Cipriano Luckesi, especialista em progressão, discorda. "É só um malabarismo. Esquecem de investir em qualidade do ensino, que significa investimento no professor e na formação e em melhores condições", afirma Luckesi. "A reprovação não vai necessariamente aumentar, mas também não vai diminuir."
O governo também anunciou alterações na forma de avaliar os alunos. A partir de 2014, a avaliação diagnóstica ocorrerá ao final de cada bimestre. Os professores terão de fazer um relatório personalizado de aprendizado por aluno e um cardápio de ações para as dificuldades. Na reforma anunciada por Haddad, o foco na avaliação bimestral também foi um dos pontos.

É positivo alterar a organização dos ciclos?

09 de novembro de 2013 | 2h 12

O Estado de S.Paulo
Não  
Se a educação é um direito, não tem cabimento reprovar. O ciclo é uma proposta de organização que respeita o ritmo de desenvolvimento de cada aluno. Assim, no limite com essa concepção, deveríamos ter um ciclo de nove anos.
A princípio, não há justificativas para ciclos menores. O ciclo maior inibe a reprovação, porque ela não resolve o problema do aluno e da educação e representa um impacto forte na autoestima do aluno. Estudos mostram que ele tem chances de reprovar de novo, e maiores taxas de retenção induzem à evasão. Assim, toda proposta que induza ou crie brechas para reprovação é um retrocesso.
O problema não é aprovar ou reprovar, mas entender por que a ação pedagógica não está funcionado. O desafio é enfrentar as dificuldades e não reintroduzir a reprovação. O que precisamos é de políticas que garantam que as crianças aprendam.
A rejeição que se tem aos ciclos é que, muitas vezes, ele foi decretado, imposto aos professores, sem que houvesse preocupação em mostrar a estes que isso implicaria em mudar a lógica de funcionamento das escolas na perspectiva de garantir a todos o aprendizado.
*Romualdo Portela é professor da Faculdade de Educação da USP.

Sim
É interessante que a organização dos ciclos em um sistema automático não dure um tempo muito longo, como anunciou agora o governo de São Paulo. Não por evitar que o aluno seja sempre aprovado, porque não se deve buscar a reprovação.
Essa organização possibilita que haja uma medição periódica para aumentar o compromisso do sistema com o resultado e o sucesso dos alunos. Com dois ciclos mais longos, há o risco de o sistema não prestar atenção no aluno durante os anos e, se constatar lá no fim que ele não aprendeu, pode não dar mais tempo para recuperá-lo. Dessa forma, o fato de ter avaliações mais frequentes, como também anunciado, colabora com o compromisso do sistema com o aprendizado dos alunos - contanto que a ferramenta seja vista como mecanismo de acompanhamento para corrigir alguma fragilidade, e não para punição.
Em relação ao ciclo de alfabetização, entendo que é bom que isso aconteça, que haja esse foco. Mas é importante que não tenha reprovação do menino que está ingressando, porque as crianças não chegam à escola com a mesma maturidade. É bom que se tenha flexibilidade por parte das escolas e professores.
*José Fernandes Lima é presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE).