domingo, 3 de novembro de 2013

Alessandro Molon: Fura-fila, sobre o marco civil


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Tendências / DebatesImagine entrar na internet e ter que se restringir apenas à leitura e ao envio de e-mails. Afinal, é o que o seu contrato e seu bolso permitem. Quando você clica para ver um vídeo, seja de entretenimento ou de ensino, uma mensagem alerta que ele não pode ser exibido. Redes sociais e jogos on-line são exclusividades do pacote superior.
Fazer ligações gratuitas pela web, então, nem pensar, pois a internet completa é luxo para os poucos privilegiados que podem pagar, especialmente considerando que este serviço, de Voz sobre IP (VoIP), é concorrente das empresas telefônicas, as mesmas que detêm os cabos usados para a conexão à internet.
Depois de finalmente conseguir fazer um upgrade para ter direito a sites, você percebe que alguns endereços carregam mais rapidamente que outros. O modesto blog que você gosta de ler faz parte do grupo de endereços que têm que aguardar um longo tempo na fila até ser carregado na tela do computador.
Já outros sites maiores que têm acordos comerciais com provedores de conexão são acessíveis num piscar de olhos. O segredo é o pagamento de uma taxa extra, que permite que a fila seja furada, como um carro que aluga uma sirene para poder ultrapassar os demais veículos num eventual engarrafamento e chegar mais rapidamente ao seu destino.
Essa rede desfigurada é um retrato possível do sombrio futuro da web no Brasil caso a neutralidade da rede não seja preservada integralmente no Marco Civil da Internet.
Por mais de um ano, provedores de conexão têm conseguido impedir a votação do projeto na Câmara dos Deputados, pressionando contra a garantia de uma rede defensora dos direitos dos internautas e neutra Ðisto é, que não fraciona o acesso a conteúdos em blocos pagos separadamente.
O plano deles é colocar em prática o fatiamento da internet, num modelo semelhante à TV por assinatura, e cobrar preços abusivos pela experiência completa que já temos hoje. Desejam, também, ampliar seus negócios às custas da liberdade de escolha dos usuários, ao priorizar o acesso a determinados sites em detrimento de outros.
A neutralidade é o coração não só do projeto, mas da internet como a conhecemos. Numa rede neutra, a transmissão das informações deve ser isonômica: sem discriminação por origem, destino ou conteúdo dos pacotes de dados.
A quebra dessa igualdade pode traduzir-se em menos brasileiros conectados à experiência integral da internet, na contramão dos avanços recentes. O aumento de 9% no número de usuários registrado no primeiro trimestre deste ano em comparação com o trimestre anterior, computado pelo Ibope, pode se tornar coisa do passado. A exclusão digital bate à porta.
É inadmissível, portanto, que os mais de 100 milhões de internautas brasileiros continuem desprotegidos por conta da oposição de um único setor econômico. O projeto do Marco Civil da Internet é um equilíbrio entre todos os atores envolvidos. Além de garantir a neutralidade, ele protege fortemente a privacidade dos usuários e a liberdade de expressão, sendo considerada a melhor proposta de legislação para a internet no mundo.
A Câmara dos Deputados tem o dever de aprovar e oferecer ao Brasil essa lei, que possibilitará uma rede mais segura, mais livre, mais aberta e mais democrática. Que, no debate pela aprovação, ela não perca de vista o maior interessado nessa discussão: o cidadão brasileiro.
Pois vale lembrar: a democracia vai passar cada vez mais pela internet, e o futuro da internet depende da neutralidade da rede.
ALESSANDRO MOLON, 42, advogado, mestre em história, é deputado federal (PT-RJ) e relator do projeto de lei do Marco Civil da Internet

Roberto Luis Troster: Sem lenço e sem documento


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Tendências / DebatesNa canção de Caetano, a letra diz "nada nos bolsos ou nas mãos eu quero seguir vivendo". Seria bom se assim fosse, mas não é.
A cada ano, milhões de horas de cidadãos e funcionários públicos são gastas com a tarefa de manter a papelada pessoal em dia.
A caminhada contra o vento é numa estrada com várias cabinas de pedágio (repartições). Prevalece a lógica de um povo para servir o governo, em vez de um governo para o povo. As raízes das dificuldades são históricas. O Brasil tem dimensões continentais e, ao longo do tempo, foram estabelecidos os controles considerados mais adequados para cada época e propósito.
Adicionando-os aos já existentes, sempre aumentando a parafernália.
Não é um problema nacional, apenas. A burocracia no mundo inteiro é avessa a mudanças, inflexível, ineficiente, tem uma tendência a se autoperpetuar e a apresentar disfunções como falta de comunicação entre os diversos órgãos e obsolescência dos controles.
Estatísticas do Banco Mundial mostram que o Brasil é um dos países em que é mais complicado contratar empregados, produzir, vender e cobrar. Exigências burocráticas inadequadas aumentam custos e diminuem a competitividade das empresas sediadas aqui. A produtividade pessoal também é afetada.
Não há estudos sobre o impacto da papelada necessária para o dia a dia, mas é razoável afirmar que atrapalha e muito. A inclusão econômica básica de um cidadão demanda necessariamente a carteira de trabalho, o RG, o CIC, o PIS, o título de eleitor e o certificado de reservista (se for homem). Algumas profissões demandam ainda o registro nos respectivos conselhos regionais.
Cada cidadão tem de cinco a sete números diferentes para ser identificado. Mesmo assim, sua segurança é frágil. Há poucas semanas, um jornalista da Folha conseguiu emitir nove RGs em diferentes unidades da Federação. Mostrou que o controle é fraco. Também é deficiente. Abundam relatos de pessoas pressas por engano e de prejuízos causados por homônimos.
Agravando o quadro, o processo é trabalhoso. Quando um cidadão muda seus dados cadastrais, como endereço ou estado civil, tem que informar a todos os órgãos (Receita, Justiça Eleitoral etc.). É uma peregrinação de repartição em repartição.
É um sistema antiquado, disperso em órgãos públicos diferentes, com registros de informação que não se comunicam entre si e que depende da datiloscopia (impressões digitais em papel) para identificação.
A recomendação é a construção de um cadastro nacional, usando biometria, que permita uma caracterização pessoal imediata. Cada cidadão teria um único número para se identificar e este seria usado por todos os órgãos públicos para fins específicos (eleições, benefícios etc.). Isso geraria ganhos de produtividade para toda a população e para o governo.
O direito à identidade é, ou pelo menos deveria ser, um direito básico, um bem em si mesmo. Mas é custoso, demorado e inseguro. Há avanços tecnológicos que permitiriam corrigir as distorções rapidamente, com benefícios palpáveis para todos. Por que não, por que não...
ROBERTO LUIS TROSTER, 63, é doutor em economia. Foi professor da USP e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e economista-chefe da Febraban (Federação Brasileira de Bancos)
robertotroster@uol.com.br

A privacidade na web é uma ilusão’


Por Ligia Aguilhar
Homem protesta do lado de fora de complexo do Exército norte-americano na Alemanha FOTO: Kai Pfaffenbach/Reuters
Responsável por elaborar relatórios de cibersegurança para Obama diz que é impossível evitar o monitoramento
SEUL – Diretor do Centro Internacional de Estudos Estratégicos (CSIS, na sigla em inglês), James Lewis já liderou a produção de uma série de relatórios sobre segurança na internet para o presidente americano Barack Obama. Considerado um dos maiores especialistas em cibersegurança do mundo, é autor de mais de 90 publicações sobre assuntos relacionados ao tema.
   
Em entrevista exclusiva ao Link no mês passado, durante a Conferência de Cibersegurança em Seul, na Coreia do Sul, Lewis falou sobre o escândalo da espionagem norte-americana, afirmou que todos os países possuem algum tipo de vigilância, que o Brasil não é defensor da democracia e que a privacidade na internet é uma ilusão. Confira os principais trechos:
O Brasil defende um modelo descentralizado de regulação da internet. É a melhor opção?
Quando o modelo de regulação atual foi decidido, a maioria dos usuários da internet eram americanos. Hoje não é mais assim. As instituições criadas na época precisam se tornar globais. Esperamos que o Brasil se coloque ao lado da liberdade de expressão e defenda a internet aberta.
Muitos dizem que todos os países já sabiam sobre a espionagem. Se isso é verdade, por que continuamos tão vulneráveis? 
Os especialistas sabiam, mas o grande público não. E ele não entende quão vulnerável está na web. A internet é totalmente insegura. Enviar um e-mail é como mandar um cartão postal, as informações estão abertas. A privacidade é uma ilusão. E o (Edward) Snowden acabou com essa ilusão.
Essa espionagem é uma forma de ciberguerra?
Não. A espionagem é comum. Sempre falei com outros países sobre esse assunto e não encontrei nenhum que não estivesse engajado em algum tipo de espionagem. Tenho quase certeza que o que o Brasil faz tem foco doméstico. Não me surpreenderia descobrir que países da América do Sul espionam uns aos outros. Alguns documentos do Snowden mostram a inteligência de outros países. Eles vão aparecer e reformular o debate.
O Brasil tomou medidas contra a espionagem como criar um serviço de e-mails nacional e comprar um satélite. Funciona?
Isso tudo é “fofo”. Temos uma cadeia de suprimentos global, não fazemos mais as próprias tecnologias e isso cria riscos. É um dilema. Mas não significa que é viável economicamente fazer as próprias empresas. Rússia, EUA, Reino Unido, Israel e talvez os 20 ou 30 maiores cibercriminosos do mundo são capazes de quebrar qualquer sistema de segurança existente no mundo.
O que Brasil deveria fazer?
Pode fazer as empresas observarem melhor suas engrenagens, criar redes mais seguras e se engajar de forma positiva internacionalmente. A democracia não acontece. Há pessoas que a defendem. Não vejo o Brasil fazer isso.
O que você quer dizer?
Não vejo o Brasil defender a democracia. Não tenhamos ilusões sobre isso. O Brasil não assinou a Convenção de Budapeste e isso é muito questionável. Façam isso, invistam em engrenagens básicas, defendam a internet aberta e 90% do problema vai desaparecer.
Qual a maior preocupação dos EUA em relação ao Brasil?
O Brasil não é uma prioridade para os EUA. Dizem que os americanos fazem espionagem econômica, mas não é verdade. Uma das coisas que os EUA monitoram é corrupção. E nós a encontramos, não necessariamente no Brasil. Mas se há empresas norte-americanas no país, estamos preocupados com isso. O Brasil tem o direito de estar chateado. Do lado americano, digo que precisamos ser mais transparentes, estabelecer princípios de reciprocidade e garantir que as coisas serão feitas de forma responsável. Precisamos pedir desculpas ao Brasil. Mas para os americanos é difícil fazer isso.
*A repórter viajou a convite do governo sul-coreano
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