A janela de Lula
Imagens que perscrutam ex-presidente podem ser apenas 'paparasitismo'. Mas o fotojornalismo vive, em poderosas reencarnações/ Aliás
20 de novembro de 2011 | 3h 09
Claudio Edinger, fotógrafo carioca radicado em São Paulo, trabalhou para as principais revistas do mundo. É ganhador, por duas vezes, da Leica Medal of Excellence (pelos livros Chelsea Hotel, Venice Beach) e do Life Magazine Award (por Loucura)
Nos anos 80, Cornell Capa, diretor supremo do International Center of Photography, então o lugar mais importante de fotografia no mundo, disse para quem quisesse ouvir (eu estava lá): "O fotojornalismo está morto!" Eu ri. Ele era mesmo dado a exageros. Se alguém podia era ele. Húngaro, irmão do famoso Robert Capa, com uma obra razoável, membro da famosa agência Magnum, tinha todo direito à hipérbole. Depois, pensei, de certa forma o Cornell tem razão, está morto mesmo, a CNN com seus repórteres onipresentes 24 horas no ar, matou o fotojornalismo, aquele romântico, de artistas que traziam a notícia com imagens espetaculares a que ninguém mais tinha acesso. Foi-se a era de um Lewis Hine revelando em imagens o trabalho infantil abusivo. De Jacob Riis mostrando as favelas de Manhattan. Ou de W. Gene Smith denunciando o desastre de Minamata no Japão com fotos espetaculares. Acabou a época em que fotos coloridas com o sangue dos soldados americanos ajudaram a acabar com a Guerra do Vietnã.
Nos últimos 30 anos, entretanto, desde que Cornell profeticamente liquidou o fotojornalismo, tem havido uma revolução na fotografia. O trabalho autoral, em que, olhando-se a foto é possível identificar seu autor, tem tomado conta de todas as áreas, além da arte, da moda, da publicidade e do fotojornalismo. Mesmo em revistas como a Time e a Newsweek é comum vermos fotos autorais, trabalhos únicos elaborados, verdadeiras interpretações do real contando uma história que funciona em diversos níveis: informativo, psicológico e estético.
Tenho observado, aqui de longe, a janela do nosso ex-presidente. Momentos talvez mais dramáticos de sua longa e movimentada vida, revelados em parcas frações de segundos para os paparazzi de plantão e, por conseguinte, para todos nós. É sensacional o paralelo com outra janela na fotografia. Em 1978, John Szarkowski, o diretor de fotografia do MoMA nova-iorquino, organizou uma exposição chamada Windows and Mirrors (Janelas e Espelhos). Foi uma mostra revolucionária, em uma época em que a fotografia começava a migrar dos jornais e revistas para as paredes dos museus e galerias - e dos colecionadores e aficionados.
Espelhos eram fotos que refletiam o mundo interior de fotógrafos como Ansel Adams, Ralph Gibson e Robert Mapplethorpe. Fotografias enquanto janelas eram as de Robert Frank, Garry Winogrand e Diane Arbus, que nos mostram um mundo único, particular, que sem a ajuda desses olhos privilegiados não teríamos percebido. No caso da nossa janela em São Bernardo ela acaba virando também um espelho, que mostra um pouco do que somos, de como nossa curiosidade obriga fotojornalistas a montar acampamento esperando que a janela de novo se abra e nos revele novidades. Uma fotografia que está mais para o 'paparasitismo'.
Vemos como somos. Gosto quando ouço que fotografias não representam a realidade. Que são recortes do espaço. De 360 graus de possibilidades, o fotógrafo recorta ali, retira aquele pedaço de espaço no tempo. Fotos são sugestões, alusões, sonhos, imagens do nosso inconsciente que se manifestam. Susan Sontag diz que a fotografia, em vez de registrar a realidade, se transformou na maneira de como vemos as coisas e dessa forma distorceu nossa própria noção do que é real. Hoje, o que vem crescendo e afetando as pessoas, como a pintura afetou no século passado, do impressionismo à pintura abstrata, é exatamente essa fotografia autoral: aquela em que enxergamos o mundo particular de um artista e, se o trabalho é bom, encontramos ressonância com nosso próprio universo.
O mundo íntimo do fotógrafo Miguel Rio Branco transborda em suas imagens poéticas e sutis. A dor e a beleza da história de seus antepassados está em todo o trabalho de Eustáquio Neves. A infância atribulada de uma alemã sob o domínio russo pode ser vista no trabalho incrível de Loretta Lux. O exílio e a perda de identidade também podem ser percebidos no trabalho brilhante do cubano Abelardo Morell, que cria câmeras obscuras em quartos e salas que visita. Os stills do filme da vida de Gregory Crewdson ou Cindy Sherman são maravilhosos. A fotografia utilizada assim, como catarse ou metáfora, enriquece, provoca, atiça nossa imaginação. E o mercado das artes corresponde ao que vem acontecendo. Uma fotografia de Cindy Sherman foi vendida recentemente por US$ 3,9 milhões, mais que por trabalhos da grande maioria dos artistas vivos. Mas menos que o de outro fotógrafo, o alemão Andreas Gursky, cuja obra alcançou o recorde de US$ 4,3 milhões agora em novembro.
Quando lemos um bom livro, cada cena descrita, cada situação, aparece na mente de cada um de uma forma absolutamente própria, relacionada ao nosso universo particular. Claro, ninguém lê o mesmo livro nunca. Tudo se relaciona ao que já sabemos e ao que conseguimos imaginar. Roland Barthes diz que os verdadeiros realistas entendem que a fotografia não é realidade, é mágica, é vodu. Quando fui parar dentro do Juqueri em 1989, tentando entender a loucura, a câmera me levou para lá. Vodu puro, alquimia antiga, visitar um asilo de doentes mentais com uma câmera grande, tripé e flash, e sair de lá carregando ideias, medos pessoais, descobrimentos. A câmera registrou momentos que me forçaram a refletir. Que obrigaram muita gente a refletir sobre um universo do qual sabemos tão pouco. Muita gente não quis abrir o livro que fiz sobre a loucura. O coração não sente o que não vê.
Quando vemos imagens, a tendência natural é acreditar nelas. Pensamos em imagens, sonhamos imagens, nossa lembrança é construída por imagens. Imagens satisfazem nossa imensa curiosidade. Quando o homem estatisticamente mais querido do Brasil fica doente, vemos suas fotos e nossas reações são diversas. Mas não se pode negar que são fotos da nossa história descarrilada. Susan Sontag, no livro A Doença como Metáfora (Companhia de Bolso, 2007), falando da própria enfermidade, diz que a sociedade tende a psicossomatizar o câncer, relacionando a doença a fatores mentais: ficamos doentes quanto reprimimos sentimentos, angústias.
A força da fotografia é sua influência em nossa imaginação. Como não tem limite, a imaginação precisa de um norte, um leme - aí sim, navega bem. A fotografia tem essa força e impacto. O Hotel Chelsea em Nova York era só um prédio de dez andares para quem passasse pela Rua 23 em direção à Oitava Avenida. Mas dentro havia um microcosmo extraordinário da vida cultural nova-iorquina. A fotografia nos possibilita essa entrada em universos fechados. Cada foto de cada quarto nos dá sugestões de como a vida de cada um deve ser, pode ser, de acordo com nosso limite. Não vemos as coisas como são, diz Anaïs Nin, mas como somos.
Por outro lado, ouço dizer que, ao vermos repetidamente imagens que nos tocam, a tendência natural é que deixem de ter o efeito desejado, vamos nos dessensibilizando. Imagens de moradores de rua têm esse efeito. Ou imagens de motoqueiros caídos nas avenidas. A repetição acaba com a eficácia das imagens, dizem... Será? O paradoxo é que imagens que capturam nossa imaginação circulam hoje numa velocidade estonteante pelas redes sociais, multiplicando seu efeito. Ainda agora, acabo de ver uma foto do presidente Lula no Facebook, na parede de um amigo, Lula sem cabelo, rindo nos braços de d. Marisa, com os dizeres que emocionam: "É isso aí, cabeça erguida, sorriso no rosto, força Lula!" Quarenta e sete pessoas curtiram isso. As imagens ganharam uma força inacreditável com as redes sociais. O fotojornalismo morreu, mas o fotojornalismo ganhou mais força do que nunca, pelas redes e pelos sites de notícias que usam cada vez mais fotos dos próprios leitores.
Walter Benjamin disse que, no futuro, analfabeto não será mais quem não sabe ler, mas quem não sabe ver uma fotografia. O futuro chegou. As pessoas estão cada vez mais letradas fotograficamente. Todo mundo tem uma câmera, tira milhares de fotos por ano e, por isso, exige tanto da fotografia e, por isso, fotografias têm cada vez mais vida útil e, por conseguinte, mais impacto. O fotojornalismo está morto, sim, mas continua mais vivo que nunca em suas novas reencarnações poderosas.