terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

É hipocrisia faturar com ação comercial em trama de assédio em novela, FSP



Contrato com Neymar também desanima quem ainda tenta defender a televisão



Em texto recente publicado em seu blog pessoal, Inácio Araujo, um dos melhores críticos de cinema do país, resumiu a televisão a "uma máquina de difusão do consumo enlouquecido", "o lugar onde tudo, absolutamente tudo de nefasto que apareceu nos últimos anos, foi gerado e ganhou forma".
Não poderia exercer a função que ocupo hoje se concordasse, como diz o amigo Inácio, que a televisão, em essência, é exclusivamente uma "máquina de venda".
Estou entre os mais otimistas, ou ingênuos, como o jornalista americano Edward Murrow (1908-1965), cuja trajetória é descrita no filme "Boa Noite e Boa Sorte" (2005), de George Clooney.
Num famoso discurso a seus colegas, ele definiu a televisão como uma ferramenta que "pode ensinar, iluminar e até mesmo inspirar". Mas observou: "Pode fazer isso apenas na medida em que as pessoas tiverem a intenção de usá-la com este objetivo. Caso contrário, não é nada além de fios e luzes em uma caixa".
Líder incontestável de mercado no Brasil, a Globo busca, já há muito tempo, nos convencer de que está longe de ser apenas uma "máquina de venda".
Essenciais na construção desta imagem são as campanhas de responsabilidade social que promove e divulga. Outro orgulho são as ações de "merchandising social" inseridas em novelas.
Em "O Outro Lado do Paraíso", atualmente em exibição, a oportunidade de "ensinar, iluminar e até mesmo inspirar" apareceu em uma trama que envolvia pedofilia —um personagem, delegado de polícia, assediou a enteada quando ela tinha oito anos.
Nesta semana, Vinicius (Flavio Tolezani) foi julgado e condenado por seu crime. Ao final do capítulo de terça-feira (20), a emissora inseriu uma mensagem na tela lembrando: "Abuso sexual infantil é crime. Denuncie. Ligue 100 Disque Direitos Humanos".
Antes de chegar a esse desfecho, a vítima de Vinicius, Laura (Bella Piero), teve primeiro que se recordar do abuso. Para isso, ela foi submetida a sessões de hipnose, promovidas por uma jovem advogada, Adriana (Julia Dalavia), que se apresentou também como "coach".
Em uma cena que espantou pelo didatismo, Adriana explicou que o seu método seria uma "ferramenta" para chegar "mais rápido" ao "destino desejado". Foram dois minutos de proselitismo, regiamente pagos, como a própria emissora informou ao final do capítulo, por uma empresa que divulga esse método.
Não consigo imaginar hipocrisia maior do que faturar um bom dinheiro para tratar de um assunto tão sério e grave quanto o abuso sexual infantil.
Inácio Araujo deve ter sorrido também ao ler as páginas de esporte da Folha nesta semana. Os jornalistas Alex Sabino e Diego Garcia mostraram que a Globo manteve um contrato com Neymar entre 2014 e 2015, que previa participações do jogador na programação da emissora.
Durante a vigência do acordo, Neymar deu inúmeras entrevistas e apareceu em uma infinidade de programas (incluindo, até, uma novela) sem que o espectador soubesse a razão de tamanha disponibilidade.
Concorrentes não estavam proibidas de falar com o craque, mas o acesso a ele, sem o lubrificante financeiro, nunca chegou aos pés do conseguido pela Globo.
Tanto a ação paga para falar de assédio sexual na novela quanto o contrato com Neymar desanimam quem ainda tenta defender a televisão.
Maurício Stycer
É jornalista, repórter e crítico e autor de 'Adeus, Controle Remoto'.

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