'Está em falta um canal de expressão da revolta, da justa insatisfação e do desencanto do brasileiro com a situação do País, por isso estão aceitando inadvertidamente o grito que sai da boca errada'
Rachel Valença*
15 Fevereiro 2018 | 05h00
O que me faz refletir no momento é a intensa repercussão, na esquerda brasileira, desses dois enredos vencedores. Historicamente, as escolas de samba têm diversas manifestações de crítica social e política. Caprichosos de Pilares, São Clemente, Unidos da Tijuca, Império Serrano e tantas outras enfrentaram a censura e até o boicote, sem grande repercussão. Por que, neste momento, Beija-Flor e Tuiuti viraram ícones da luta política?
A explicação que encontro é que está em falta um canal de expressão da revolta, da justa insatisfação e do desencanto do brasileiro com a situação do País. Por isso estão aceitando inadvertidamente o grito que sai da boca errada. As vencedoras não são as vozes indicadas para clamar por justiça e liberdade, porque ambas são usuárias, na vida interna, de práticas antidemocráticas.
A Beija-Flor fez enredos elogiosos à ditadura no início da década de 1970 e com isso subiu ao Grupo Especial, onde se mantém até hoje. Nos arquivos da ditadura se encontra uma carta dirigida ao general ditador, solicitando ajuda para manter a escola na elite do carnaval, para continuar louvando os feitos da “Revolução”. Chegada a democracia, não se inibiu de cantar em enredo os feitos do então presidente Lula. Há dois anos, louvou a Guiné Equatorial e seu ditador. Para mim, isso tem nome: oportunismo. Quando o samba-enredo nos conclama a “aprender com a Beija-Flor”, eu me pergunto se estou interessada nas lições que ela tem a ensinar.
Quanto ao Paraíso do Tuiuti, sua trajetória é maculada por episódios de truculência e pela adoção de práticas internas alheias à democracia. O grupo que tomou o poder na escola há cerca de 15 anos, após a chegada da escola ao Grupo Especial em 2001, foi o mesmo que, após levar a escola ao Grupo B, tramou a fusão dos grupos A e B para que a escola subisse sem vitória. No carnaval passado, última colocada, não foi rebaixada graças a um acidente que provocou a morte de uma profissional da imprensa, atropelada por um carro alegórico desgovernado do Tuiuti. Com isso, não houve rebaixamento e a escola ficou na elite.
Nos preparativos do carnaval deste ano, acabou com a disputa interna para escolha do samba-enredo, prática que faz parte das tradições e ritos das escolas e suas alas de compositores - e encomendou samba a compositores de reconhecido talento, em um atalho muito desrespeitoso com os poetas da escola. Zumbi, de onde nos assiste, deve estar envergonhado com esse “quilombo da favela”. Tanto quanto a maior parte dos brasileiros, quero justiça e igualdade. Mas, em momentos de polarização, a esquerda deve ficar atenta para não comprar gato por lebre.
*Professora, pesquisadora e escritora, autora de Serra, Serrinha, Serrano: o Império do Samba
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