FOLHA DE SP - 12/02
A vantagem da democracia é o fato de ela limitar o poder por torná-lo lento e pesado
Diga a VERDADE: alguém pode dizer, com certeza, quem tem razão nas discussões ao redor da condenação do Lula?
Antes de você tentar encaixar minha pergunta num dos campos ideológicos em disputa ao redor do destino do Lula e do PT, respire um pouco. Hoje, xinga-se mais rápido do que o coração consegue bater. Não que eu não tenha uma simpatia maior por um dos lados; mas essa simpatia não é meu tema hoje.
Os sofistas venceram o debate com Platão (428/427 a.C.-348/347 a.C.). Os sofistas eram aqueles caras que afirmavam que "o homem é a medida de todas as coisas" --foi Protágoras (481 a.C.-411 a.C.) quem disse isso. Simpáticos à democracia, esses pensadores negavam a existência da verdade absoluta, defendida por Platão. Protágoras venceu Platão: a democracia é sofista. E as inúmeras consequências desse fato nem sempre são contempladas na reflexão pública.
Há uma impossibilidade estrutural na percepção da verdade na democracia, simplesmente porque todo mundo fala o tempo todo. As mídias sociais só pioram essa
tagarelice na democracia. Platão acusava a democracia de ser retórica, argumentativa e demagógica. Ele tinha toda a razão. Essa
crítica de modo algum justifica uma defesa da tirania ou totalitarismo. Deve, sim, nos deixar atentos para tagarelice.
Muitos entendem que, ao trazer à tona fatos como esse, eu estaria propondo alguma forma de niilismo político ou defendendo algum modo de anarquismo. Na minha juventude, fui anarquista. Hoje, confio menos na humanidade e no "povo" para defender tal utopia. Prefiro a tagarelice confusa à simplicidade de uma visão utópica.
A grande vantagem da democracia é o fato de ela limitar o poder justamente porque o torna lento, pesado, confuso, falastrão e dependente do marketing. Tudo que parece vício se transforma em virtude nesse processo. Mas essa percepção é difícil de manter no dia a dia.
A grande virtude da democracia é a sua incapacidade de "entregar" uma verdade política e moral acerca do mundo, além de sua própria inapetência à evidência última dos fatos. Essa inapetência é sua "estranha" virtude básica. Claro que, com a complexidade, a multiplicidade e o gigantismo da sociedade contemporânea, esses traços só se intensificam.
Voltemos aos últimos dias no Brasil. Não falemos da tagarelice comum, mas da multiplicidade de opiniões vindas do debate público especializado --de gente, portanto, capaz e preparada para esse debate.
A impressão que se tem é de que existem argumentos razoáveis para ambos os lados. Simplificando a coisa: por "ambos os lados" quero dizer aqueles que são a favor da condenação, isto é, entendem que ela se deu dentro do âmbito legal objetivo, e, do outro lado, aqueles que entendem que a condenação foi fruto de "interesses ideológicos". Teria sido a condenação jurídica ou política? Minha resposta: as duas se misturam.
Sem supor, necessariamente, que haja mau-caratismo em qualquer dos dois argumentos, eu posso, sim, supor que não haja como chegar a uma resposta "clara e distinta" para essa controvérsia no âmbito da verdade absoluta. Posso entender que, na democracia, "tudo é política" e que, portanto, magistrados podem, sim, ter interesses corporativos, ideológicos e/ou econômicos. Da mesma forma, também o podem os intelectuais, assim como --por que não?-- manifestantes a favor da igualdade social.
Todos podem ter posições cunhadas a partir de valores exteriores à "verdade pura dos fatos" --antes de tudo porque ela, na verdade, não existiria. Tudo é interpretação ou hermenêutica (para você ter um termo a mais em seu repertório sobre a catástrofe da expectativa em favor de uma verdade pura no mundo político).
Ao contrário do que parece --e do que nossos inteligentes bonzinhos gostariam de dizer--, as tais câmaras de eco das mídias sociais (o nome dado às bolhas de opiniões que as pessoas frequentam repetidamente na vida em rede) são parte da vida democrática off-line.
Viveríamos em câmaras de eco permanentes? Mesmo os mais preparados para o debate? Seriam nossa opiniões "objetivas" ou, antes de tudo, fruto de nossas simpatias anteriores aos "fatos"?
A vantagem da democracia é o fato de ela limitar o poder por torná-lo lento e pesado
Diga a VERDADE: alguém pode dizer, com certeza, quem tem razão nas discussões ao redor da condenação do Lula?
Antes de você tentar encaixar minha pergunta num dos campos ideológicos em disputa ao redor do destino do Lula e do PT, respire um pouco. Hoje, xinga-se mais rápido do que o coração consegue bater. Não que eu não tenha uma simpatia maior por um dos lados; mas essa simpatia não é meu tema hoje.
Os sofistas venceram o debate com Platão (428/427 a.C.-348/347 a.C.). Os sofistas eram aqueles caras que afirmavam que "o homem é a medida de todas as coisas" --foi Protágoras (481 a.C.-411 a.C.) quem disse isso. Simpáticos à democracia, esses pensadores negavam a existência da verdade absoluta, defendida por Platão. Protágoras venceu Platão: a democracia é sofista. E as inúmeras consequências desse fato nem sempre são contempladas na reflexão pública.
Há uma impossibilidade estrutural na percepção da verdade na democracia, simplesmente porque todo mundo fala o tempo todo. As mídias sociais só pioram essa
tagarelice na democracia. Platão acusava a democracia de ser retórica, argumentativa e demagógica. Ele tinha toda a razão. Essa
crítica de modo algum justifica uma defesa da tirania ou totalitarismo. Deve, sim, nos deixar atentos para tagarelice.
Muitos entendem que, ao trazer à tona fatos como esse, eu estaria propondo alguma forma de niilismo político ou defendendo algum modo de anarquismo. Na minha juventude, fui anarquista. Hoje, confio menos na humanidade e no "povo" para defender tal utopia. Prefiro a tagarelice confusa à simplicidade de uma visão utópica.
A grande vantagem da democracia é o fato de ela limitar o poder justamente porque o torna lento, pesado, confuso, falastrão e dependente do marketing. Tudo que parece vício se transforma em virtude nesse processo. Mas essa percepção é difícil de manter no dia a dia.
A grande virtude da democracia é a sua incapacidade de "entregar" uma verdade política e moral acerca do mundo, além de sua própria inapetência à evidência última dos fatos. Essa inapetência é sua "estranha" virtude básica. Claro que, com a complexidade, a multiplicidade e o gigantismo da sociedade contemporânea, esses traços só se intensificam.
Voltemos aos últimos dias no Brasil. Não falemos da tagarelice comum, mas da multiplicidade de opiniões vindas do debate público especializado --de gente, portanto, capaz e preparada para esse debate.
A impressão que se tem é de que existem argumentos razoáveis para ambos os lados. Simplificando a coisa: por "ambos os lados" quero dizer aqueles que são a favor da condenação, isto é, entendem que ela se deu dentro do âmbito legal objetivo, e, do outro lado, aqueles que entendem que a condenação foi fruto de "interesses ideológicos". Teria sido a condenação jurídica ou política? Minha resposta: as duas se misturam.
Sem supor, necessariamente, que haja mau-caratismo em qualquer dos dois argumentos, eu posso, sim, supor que não haja como chegar a uma resposta "clara e distinta" para essa controvérsia no âmbito da verdade absoluta. Posso entender que, na democracia, "tudo é política" e que, portanto, magistrados podem, sim, ter interesses corporativos, ideológicos e/ou econômicos. Da mesma forma, também o podem os intelectuais, assim como --por que não?-- manifestantes a favor da igualdade social.
Todos podem ter posições cunhadas a partir de valores exteriores à "verdade pura dos fatos" --antes de tudo porque ela, na verdade, não existiria. Tudo é interpretação ou hermenêutica (para você ter um termo a mais em seu repertório sobre a catástrofe da expectativa em favor de uma verdade pura no mundo político).
Ao contrário do que parece --e do que nossos inteligentes bonzinhos gostariam de dizer--, as tais câmaras de eco das mídias sociais (o nome dado às bolhas de opiniões que as pessoas frequentam repetidamente na vida em rede) são parte da vida democrática off-line.
Viveríamos em câmaras de eco permanentes? Mesmo os mais preparados para o debate? Seriam nossa opiniões "objetivas" ou, antes de tudo, fruto de nossas simpatias anteriores aos "fatos"?
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