Revolução tecnológica exige novo Estado social, escreve professora
Tatiana Roque
Resumo Autora defende a renda universal como ponto de partida para refundar o modelo do Estado social. Diante da crescente substituição de trabalhadores humanos por robôs, a proposta de remuneração mínima independente do emprego ganha novos adeptos, inclusive entre grandes empresários do Vale do Silício.
A ideia de uma renda básica universal garantida a todas as pessoas adultas, independentemente do trabalho, ganha novos adeptos no mundo inteiro. Sua popularidade cresce ligada à percepção de que, devido aos avanços da tecnologia, os empregos se tornarão cada vez mais raros.
No Vale do Silício, por exemplo, a iniciativa é vista como forma de compensar o desemprego gerado pela automação. Entre seus defensores surgem nomes como Mark Zuckerberg e Chris Hughes, criadores do Facebook, e Elon Musk, um dos empresários mais inovadores do planeta e fundador da Tesla Motors, que pretende pôr no mercado carros que dispensam motoristas.
Esse movimento tem um motivo simples: o emprego formal está em decadência. Pela primeira vez desde o início da industrialização, as inovações tecnológicas ameaçam destruir mais postos de trabalho do que podem criar.
Pesquisas mostram que a substituição de atividades humanas por robôs vai muito além das funções rotineiras, pois eles já são capazes de estabelecer nexo entre percepção visual, computação espacial e destreza. Com isso, os empregos intermediários tendem a desaparecer, restando, de um lado, os trabalhos pouco qualificados e mal remunerados, e, de outro, os muito qualificados e mais bem remunerados.
Essas transformações têm impactos na distribuição de renda, na incerteza quanto ao futuro dos jovens, na precarização do trabalho, nos projetos da esquerda e, especialmente, na associação entre proteção social e emprego.
O Estado social —que inclui educação e saúde públicas, Previdência e outras medidas de assistência social— é financiado por impostos e contribuições relacionadas de modo direto ou indireto à produção de mercadorias e salários. Pessoas sem emprego não contribuem significativamente para o sistema; ganhos não oriundos da produção e do comércio de mercadorias pagam poucos impostos.
ESTADO SOCIAL
Diante das transformações sem precedentes no mundo do trabalho, como garantir condições básicas de vida para todo mundo? Duas alternativas têm sido ventiladas: insistir na geração de empregos ou reivindicar modelos de proteção social desvinculados do emprego.
Aqueles que defendem modelos econômicos capazes de aumentar a oferta de empregos costumam não explicar como fazer isso sem rebaixar ainda mais salários e direitos (o que seria necessário para competir com países como a China).
Durante os anos de ouro da indústria, acreditava-se que o paradigma dos países desenvolvidos pudesse se estender ao restante do mundo. Hoje, acontece o oposto: com uma economia globalizada e automatizada, a perspectiva do pleno emprego é a da proliferação das formas de trabalho degradantes.
A insistência na defesa da proteção social por esse caminho tem gerado graves distorções. Trabalhos bem pagos e seguros trazem garantias (para além dos salários), ao passo que trabalhos autônomos ficam em desvantagem.
A insegurança atinge do camelô ao microempresário. Alguns denominam uberização o trabalho intermediado por plataformas digitais, executado sem relação formal com o empregador. Na verdade, a plataforma Uber tornou visíveis tendências mais gerais, sobretudo do setor de serviços, como a eliminação do vínculo empregatício.
As pessoas passam a administrar seu trabalho, mas também riscos e custos envolvidos, sem nenhum dos direitos associados ao emprego formal —daí a percepção de que muitos direitos sociais existentes são, de fato, privilégios.
O segundo caminho passa pela proposta de um colchão de proteção desatrelado do emprego —essa é a vantagem da renda universal. Se concebida e pactuada corretamente, pode ser um ponto de partida para refundar o modelo de Estado social.
Trata-se de dar uma resposta ao número cada vez maior de pessoas que culpam a si mesmas por não terem um trabalho permanente e bem pago —jovens que se deprimem por não fazer o que gostam, pessoas de meia-idade que se envergonham do desemprego, casais que se sacrificam para que os filhos estudem. Com a renda universal, deseja-se transmitir uma mensagem a todas essas pessoas: não se culpem, pois o problema é estrutural.
A semelhança com o programa Bolsa Família é citada com frequência, mas duas diferenças são fundamentais: a renda universal não exige contrapartida (como a de ter filhos na escola) e ela não é voltada só para os mais pobres.
A renda mínima defendida por Eduardo Suplicy —que é lei desde 2004, mas nunca foi implementada— prevê a radicalização do Bolsa Família nessa direção. Os governos do PT, porém, não quiseram assumir o risco, deixando Suplicy numa posição meio folclórica.
PRÓ E CONTRA
A crítica mais fácil invoca a suposta inviabilidade da proposta, seja pelo custo elevado, seja pela dificuldade política de implementação. No entanto, iniciativas similares já existem no Alasca e estão em fase de testes na Finlândia, no Quênia, no Canadá e em certas regiões dos EUA.
Concretamente, a ideia pode ser implantada em etapas, começando pelos baixos salários, pelos jovens e por quem precisa se reposicionar diante de um mercado de trabalho em transformação.
Claro que, à primeira vista, parece estranho ganhar sem trabalhar. A estranheza diminui, contudo, quando pensamos nas diversas formas de renda que já não são vinculadas ao trabalho: recebimento de aluguel, rendimentos de ações na Bolsa e outras aplicações financeiras.
Além disso, ter renda básica não implica parar de trabalhar; implica apenas não precisar trabalhar pelo básico, o que, na prática, aumenta a liberdade de escolha do indivíduo e diminui o poder de barganha de quem concentra riqueza. Quem fará os trabalhos degradantes, que não interessam a ninguém? Esses terão que ser muito bem pagos, pois não é a pobreza que garantirá mão de obra barata.
A esquerda teme que a renda básica seja usada para substituir o Estado de bem-estar social, o que de fato é defendido por alguns liberais. Mas não há motivos intrínsecos para que isso aconteça; as ideias podem ser complementares. A defesa do Estado social depende mais do esforço para adaptar a filosofia que o sustentava à nova economia e da conquista política de novos aliados.
Há, porém, vertentes de esquerda que enxergam com bons olhos a possibilidade de criar um modelo econômico menos produtivista e destrutor do meio ambiente. Em um mundo pós-emprego, a renda universal forneceria meios para que as pessoas pudessem migrar dos trabalhos existentes para atividades mais criativas, coletivas e autossustentáveis.
Outro ponto positivo é o reconhecimento do trabalho invisível, tanto o informal quanto aquele feito gratuitamente pelos próprios consumidores em benefício de maiores lucros para os empresários.
Há os caixas automatizados no supermercado, que nos fazem trabalhar no lugar de empregados pagos pela empresa. Há as redes sociais, para as quais criamos conteúdo de graça e ainda fornecemos dados de perfil que serão comercializados. E há tudo o que fazemos naquele tempo que já foi dito "livre", mas que serve para colocar os e-mails em dia, fazer projetos ou investir em relações sociais.
Ninguém conhece melhor do que as mulheres o quanto de trabalho não remunerado é feito no tempo "livre". Por isso, elas têm muito a dizer sobre a relação conflituosa entre tempo de trabalho e tempo de vida, pois sempre souberam que o salário —pago, durante décadas, ao homem da casa— não era capaz de reconhecer como trabalho o cuidado com a casa e com os filhos.
A renda universal não é uma panaceia, mas pode ser um ponto de partida para lançar em novos termos o debate sobre desigualdade e solidariedade. Hoje, a discussão está bloqueada: de um lado, aqueles que querem manter tudo como está; de outro, aqueles para quem reformar significa retirar garantias e individualizar a responsabilidade.
É uma vantagem o fato de a proposta de renda universal ter adeptos tanto no campo liberal quanto na esquerda. O próprio FMI fez suas contas e concluiu que a iniciativa reduziria a pobreza no Brasil de 19% para 7,4% da população e custaria 4,6% do PIB.
FINANCIAMENTO
Se for superada essa barreira mais filosófica sobre a renda básica universal, o debate seguinte se dará em relação a seu financiamento.
Na Europa, fala-se de uma mudança total do sistema de impostos, incluindo a taxação sobre transações monetárias, ganhos financeiros e dividendos. Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, defende essa tese, para evitar reação de quem ainda paga imposto sobre salário. Também se discute a tributação de robôs —empresas com alto grau de automação pagariam uma taxa a ser revertida em renda para aqueles que os robôs desempregam.
O crescimento do capital é, hoje, uma produção social. É nossa atividade na rede que gera valor para empresas como Amazon, Google ou Facebook. Ora, se a sociedade valoriza o capital, ele deve ser taxado para que os ganhos retornem à sociedade.
Para além desse fator, assistimos a uma concentração de renda inaudita nas mãos dos muito ricos, um grupo que corresponde a 1% da população mundial. Parece razoável, portanto, que o dinheiro necessário para financiar um novo modelo de justiça social seja obtido pela diminuição dessa concentração.
Apostar nesse novo mundo, inventando medidas concretas para torná-lo mais solidário, pode reduzir a insegurança e a fragmentação social que têm levado à ascensão mundial do conservadorismo, do ódio e da violência.
A força mais dinâmica do mundo atual é abundante —a informação—, e estamos deixando para trás uma economia que funcionava a partir da escassez. Reduzir o poder de agentes concentradores é um caminho necessário para experimentar a revolução tecnológica como vetor de autonomia e liberdade, em vez de vivê-la apenas como fonte de precarização e de miséria.
A renda universal pode ser o ponto de partida de um novo pacto a recompor forças políticas em torno da prioridade absoluta de reduzir as desigualdades, inventar novos modelos produtivos e fundar um projeto de sociedade à altura do nosso tempo.
Tatiana Roque, 47, é professora do Instituto de Matemática e da pós-graduação em filosofia da UFRJ. Foi presidente do sindicato dos professores da universidade (ADUFRJ).
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