O Natal terá um gosto de chão derretendo sob os pés de multidões desorientadas
*Eugênio Bucci
22 Dezembro 2016 | 03h07
“O tempo não é uma afecção das coisas, mas apenas um modo de pensar” (Baruch Espinoza)
Ao final de 2016, é hora de separar os mortos dos sobreviventes (que parecem mais mortos ainda). Foi-se embora uma presidente da República, que expirou antes que lhe expirasse o mandato. Do outro lado da praça, um presidente da Câmara dos Deputados, de olhar muito vivo, teve de trocar sua cadeira por uma cela de cadeia, assim como um ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, vivíssimo, que fixou residência atrás das grades. Os três estão politicamente mortos, embora seus substitutos zumbis não estejam propriamente vivos.
Não que a Justiça tenha sido feita, não nos precipitemos. A harmonia entre os poderes deu um “até logo” abrupto, deixando em seu lugar um pêndulo que balança discórdia malcriada ao conchavo surdo. Quanto ao emprego dos brasileiros, foi comprar cigarro na esquina e não voltou mais. A saúde pública, que sempre foi meio delinquente, vira de uma vez por todas um insolúvel caso de polícia. O Natal vai ter um gosto de chão derretendo sob os pés de multidões desorientadas, que se sabem perdidas – e nisso, somente nisso, têm toda a razão.
Mesmo assim, há cânticos de otimismo no ar. Eis que, dos auto-falantes e das telas eletrônicas, brotam campanhas publicitárias que prometem reconciliar o povo com sua história descarrilada. É algo espantoso. As tais festas natalinas, que se intercalam como tréguas os padecimentos cíclicos daqueles que guerreiam em tempos de paz, agora chegam embaladas por mensagens que vêm devolver nada menos que o tempo para os que sentem a vida ir embora sem deixar o endereço. O mais espantoso ainda é que quem manda essas mensagens não é outro que não o dinheiro, ou o Papai Noel do dinheiro. Os bancos, ninguém menos que os bancos, são os anjos que anunciam a felicidade.
Ligue a TV e ouça: “O que faz um ano inesquecível são aqueles segundos que se tornam eternos dentro da gente”. No comercial, um pai passeia com a filha, ao som de uma canção conhecida (“isso me acalma, me acolhe a alma...”). Tudo está bem, tudo está certo, tudo nos conformes. “Feliz 2017. E conte com o Banco do Brasil em cada segundo.”
Um concorrente privado do Banco do Brasil concorda. Também para o Itaú o tempo que conta, que tilinta, é aquele que, digamos, “se torna eterno dentro da gente”. Mas o Itaú deu um jeito de dizer isso com palavras menos modestas.
“Eu sou o tempo”, diz a voz atemporal. “Eu gostaria de te dar um conselho. Pense menos em mim, e mais em você. É perdendo tempo que se ganha a vida. O segredo do tempo não está nas horas que passam, está nos momentos que ficam. Porque são eles que vão contar a sua história. Eu sei disso. Eu sou o tempo.” Ao fim da mensagem, lá está a assinatura do anunciante: “Itaú. Digital, para você ter mais tempo para ser pessoal”.
Sejamos, pois, pessoais, bem pessoais, mesmo sem tomar a coisa no plano “pessoal”. O capital só se acumula quando ganha sua corrida contra o relógio. Mesmo que diga para você relaxar e “perder tempo para ganhar a vida”, o dinheiro não cochila por um segundo sequer. Aliás, foi uma campanha do Citibank, há poucos anos, que cuidou de nos lembrar disso: “The Citi never sleeps”. Bem antes, em 1987, num filme americano chamado Wall Street (dirigido por Oliver Stone), o especulador Gordon Gekko (Michael Douglas) – que termina na cadeia, ele também – alertava o seu aprendiz Bud Fox (Charlie Sheen): “Money never sleeps, pal”.
O dinheiro não dorme, o dinheiro não perde tempo e, principalmente, o dinheiro não perde do tempo. Se ele pede a você que perca tempo para ganhar a vida, existe aí uma conta que não fecha: ou o dinheiro mente sobre si mesmo, ou mente sobre você, porque, numa engrenagem de acumulação que só se faz possível pelo incremento da velocidade (e, na era digital, o dinheiro viaja na velocidade da luz), ou o seu ócio é financiado pelo cochilo dos outros, ou quem cochila é você. Tente se localizar nessa equação e você entenderá um pouco, bem pouco, do discurso que promete reconciliar sujeitos perdidos no tempo com uma história perdida no ano “inesquecível” que, esperemos, vai se encerrar.
Além do que, o tempo não é bem isso que os bancos anunciam. O tempo, lamento dizer, não é um dado da natureza, uma “afecção das coisas”, por mais que seja o tecido de que somos feitos, tecido do qual vivemos e morremos. O tempo é um “ente da Razão” (Espinoza), ou uma construção da cultura – da cultura publicitária, inclusive. É bem verdade que Newton acreditava que o tempo fluía “uniformemente sem relação com nada que lhe seja externo” e, com base nisso, construiu uma Física que deu conta de mandar o homem à Lua. Desde Newton, porém, ficou mais perceptível que “o tempo, tal como o concebemos, é uma consequência da história” (Gerald James Whitrow). Segundo os nossos sentidos, a gente ocupa um lugar no espaço e percorre um segmento minúsculo na extensa e imutável linha do tempo, mas o tempo, “tal como o concebemos”, nós é que o construímos, com os nossos tempos verbais e os sistemas tecnológicos que medem os intervalos entre um evento e outro.
Dizem que feliz é aquele que tem tempo. Menos enganoso seria dizer que feliz é aquele cujos dias de vida não foram roubados por outro – ou pelo dinheiro.
Não obstante, vai chegando o Natal. Parece que, como tem sido desde a travessia do Mar Vermelho, Roberto Carlos vai ter um programa especial só para ele na televisão. Não há marcador de tempo como Roberto Carlos. Talvez ele cante aquela “o importante é que emoções eu vivi”, ressoando a receita de felicidade que o dinheiro, vivíssimo, o dinheiro que não dorme nunca, prescreve para os seres humanos. Embalado nas canções de Roberto, quem é vivo tenta desaparecer (e não consegue), enquanto a penitenciária espreita o réveillon dos que até mandaram, mas não podem dizer que são o tempo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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