Manifestação de apoio à Operação Lava Jato na Avenida Paulista




















Na Itália, quem é eleito deputado passa a ser chamado de “onorevole”. É um tratamento respeitoso, a pretexto de criar um clima de debate civilizado. Mas ninguém o usa fora do Parlamento. Parece o “Vossa Excelência”, que faz parte do idioma de deputados, senadores e autoridades aqui no Brasil. O cidadão que chega ao Congresso pode ser um iletrado, intelectualmente incapaz, moralmente torpe e corrupto em cada célula de seu organismo – mas imediatamente se transforma numa “excelência”.

Enquanto os italianos rejeitaram ontem nas urnas um pacote de mudanças constitucionais, centenas de milhares de manifestantes protestaram em todo o Brasil contra as tentativas do nosso Congresso para manietar a Operação Lava Jato. A história italiana recente demonstra como é difícil mudar o ambiente em que vivem as “excelências” e “onorevoli”.

No início dos anos 1990, a Itália viveu sua Operação Lava Jato. Chamava-se Mãos Limpas. Foi estudada em detalhes pelo juiz Sérgio Moro, que baseou nela toda a sua estratégia de perseguição à corrupção no Brasil. Corruptos estavam tão entranhados no Estado italiano quanto estão hoje no brasileiro.

Tudo começou num caso prosaico de um asilo para idosos em Milão, onde o futuro delator Mario Chiesa tentou destruir o dinheiro comprometedor recebido em propinas dando a descarga num vaso sanitário – daí o nome irônico dado à investigação. A Mãos Limpas investigou durante quase dois anos 6.059 pessoas, entre elas 872 empresários, 438 parlamentares e outros 1.978 agentes públicos. Foram expedidos quase 3 mil mandados de prisão.

A certa altura, o Parlamento italiano também quis “estancar a sangria”, com uma reforma na legislação para promover uma espécie de anistia geral. Os jornais deram destaque aos conchavos de bastidores, a população foi às ruas, e a primeira tentativa deu errado. Mas, aos poucos, nos anos seguintes, os parlamentares conseguiram aprovar medidas que garantiram a impunidade.

Os partidos italianos foram esfacelados, mas a política no país se reergueu sobre bases não muito diferentes das que vigoravam antes. A eleição de um oportunista, o magnata da TV Silvio Berlusconi, pôs no poder alguém ainda mais corrupto do que seus antecessores. Os “onorevoli” mantêm, ainda que com maior dificuldade, seus negócios escusos.

Parte da explicação para a descrença da população italiana com a política está no sucesso limitado da Mãos Limpas. Ninguém por lá tem muita paciência para entender as questões políticas. A maior prova disso foi o resultado do referendo constitucional de ontem.

Ele propunha uma reforma de alto a baixo no parlamentarismo complexo que tem derrubado governos à taxa de um por ano – desde a Segunda Guerra, houve 72 ou 73 primeiros-ministros, segundo diferentes cálculos. Visto apenas como um voto sobre o atual governo, o referendo teve como único resultado a queda de mais um. O premiê Matteo Renzi renunciou aos prantos depois da derrota do “sim”.

Uma de suas propostas era reduzir o número de senadores dos atuais 315 (entre os quais 5 vitalícios) para 100, com o corte na remuneração absurda de € 15 mil mensais que recebem (a maior entre parlamentares europeus). Renzi também propunha transferir poderes das regiões ao Senado e reduzir o poder dos senadores diante da Câmara. Por 59,1% dos votos, a população italiana não topou. Decidiu manter tudo como está.

A derrota dele foi considerada um golpe na União Europeia, pois abriu espaço para partidos que querem a saída da Itália do euro, ou mesmo do bloco comercial. Pelo menos três forças políticas italianas disputam o eleitorado que rejeita o “imperialismo europeu” de Bruxelas. Os separatistas da Liga Norte, representados por Matteo Salvini. Os populistas do Cinco Estrelas, representados pelo comediante Beppe Grillo. E os conservadores do Forza Itália, partido do ex-premiê Berlusconi.

Embora o resultado tenha sido comparado às supresas nacional-populistas em eleições recentes, como o plebiscito do Brexit no Reino Unido ou a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, tal comparação precisa ser vista com um grão de ceticismo. O referendo italiano não representa mudança de governo nem altera nada na relação do país com a UE. Nem mesmo aponta uma direção para as eleições previstas para 2018.

O principal motivo para isso é a divisão no campo anti-europeu. Os partidos de extrema-direita do continente se identificam com a Liga Norte – tanto que a francesa Marine Le Pen, da Frente Nacional, cumprimentou Salvini pela vitória ontem. Mas é a retórica demagógica de Grillo que mais lembra Trump. Para chegar a um Trump, seria preciso talvez somar o chauvinismo anti-imigração de Salvini, a demagogia de Grillo e o talento midiático de Berlusconi.

A única coisa que o referendo italiano mostra com clareza é a rejeição à política tradicional. A mesma que tem levado o povo às ruas em sucessivas manifestações também aqui no Brasil. A Itália deveria servir de inspiração não para que nossos deputados e senadores tentassem acabar com a Lava Jato. Mas para que percebessem aonde pode levar a distância entre os políticos e a população.

O mundo de ar rarefeito de Brasília não é muito diferente do habitado pelos “onorevoli” italianos. Se há um problema na política contemporânea, demonstrado eleição após eleição em todo o mundo, é o fosso que separa quem está no poder da “voz das ruas”. Um bom começo seria acabar com a linguagem empolada dos nossos "onorevoli". Excelência, convenhamos, é algo muito diferente do que inspiram Renan Calheiros, Rodrigo Maia e a turma que legisla em causa própria.