domingo, 11 de dezembro de 2016

Nossas âncoras cronológicas, Leandro Karnal, OESP


A proximidade do fim de ano estimula nosso impulso avaliador. O que eu consegui no ano de 2016? Quais foram os dias especiais? Dependendo da fase vivida, acabamos avaliando toda a nossa biografia. 
Você já teria identificado, por exemplo, as cinco datas mais marcantes da sua existência? Nascimento seria a inaugural, com certeza. As outras são mais subjetivas. Casamento será uma referência em diálogo do que ocorreu depois do enlace. O surgimento de filhos pode estar na lista. Formatura? O primeiro imóvel? Quase sempre, por significativas que sejam para mim, as datas obedecerão a critérios pouco originais. 
Conheço pessoas que poderiam acrescentar efemérides fora da curva. Meu amigo Manoel Morgado poderia identificar a chegada ao topo do Everest. Ana Mesquita contava-me, emocionada, o dia que cruzou o Canal da Mancha a nado. Luiz Marques talvez identificasse o prêmio Jabuti entre os dias notáveis da sua biografia, como Valter Hugo Mãe relembraria o prêmio José Saramago que o consagrou. São seres especiais e sou feliz em conhecê-los. Voltemos ao nosso cotidiano mais linear.
Coisas notáveis podem escapar de uma memória precisa. Talvez você lembre da experiência em si, mas existe registro do dia exato do seu primeiro beijo? Entramos no lago da memória, lançando palafitas de lembranças sobre a água turva dos fatos desalinhados. 
Datas marcantes costumam trazer consciência do local e do momento. Sei perfeitamente o ambiente e momento quando meu amigo José Alves ligou impactado: “Está com a televisão ligada? As torres gêmeas de Nova York estão sob ataque”. Era, óbvio, 11 de setembro de 2001. Há memórias terríveis: “Volte para casa, meu filho, seu pai morreu”, anunciou, entre lágrimas, minha mãe em 12 de dezembro de 2010, um domingo de manhã. Sei a frase, o instante, o toque do telefone e o tom da voz dela. São dias especiais, trágicos ou alegres, que condicionam tudo o que virá depois. São turning-points, pontos que marcam uma virada. 
A história oficial também elabora seus marcos. Eles revelam muito de quem os escolheu. Vejam a data que assinala o fim da Idade Média e Início da Moderna: 1453. Em 29 de maio, as tropas do sultão Maomé II conseguiram romper as defesas quase milenares de Constantinopla. A queda da cidade e a derrubada do último governante do Império romano do Oriente foram consideradas como o alvorecer da era moderna.
A data é uma escolha muito ruim. Quem dormiu em Florença em maio de 1453 e acordou em junho do mesmo ano, não sentiu no ar nenhuma diferença. A graça primaveril da Piazza della Signoria era a mesma da véspera. Estávamos no apogeu do Renascimento, em pleno quattrocento, e a ideia de Idade Média já sucumbira ao poder dos mecenas Médicis e do humanismo cristão da Toscana. 
O Ocidente não derramou muitas lágrimas pelo imperador Constantino XI, mas aumentou seu medo pela ameaça turca no Mediterrâneo Oriental e na península balcânica. Os portugueses já tinham iniciado sua expansão com a conquista de Ceuta, em 1415. A dinastia Ming, na China, estava envolvida em outra expansão em direção ao Ocidente, capitaneada pelo almirante Zheng He. Cuzco, centro do mundo andino, e Tenochtitlán, a brilhante capital asteca, reforçavam sua trajetória de expansão ignorando a sorte dos bizantinos ou de qualquer coisa fora do continente americano. 
Se eu desejasse assinalar uma data mais expressiva para assinalar o fim da Idade Média, poderia escolher entre várias. A primeira seria a imprensa, quase contemporânea do ato. Os chineses foram pioneiros, mas a ideia de Johannes Gutenberg mudou o mundo. O ourives alemão imprimiu a Bíblia e, conscientemente ou não, foi o propulsor da revolução científica e de todas as transformações posteriores. Enquanto os bizantinos gritavam desesperados diante dos canhões do sultão, Gutenberg estava em pleno trabalho de impressão. 
Preferem outra? O ano de 1492 marca a chegada de Colombo ao Novo Mundo. O comércio no Atlântico seria o eixo da Idade Moderna. O poder da Espanha foi alicerçado no ouro e na prata que o sistema de frotas despejaria em Sevilha pelos três séculos seguintes. A América foi uma revolução na consciência e nos mercados europeus.
Gostariam de nova alternativa que fosse mais expressiva do que a derrubada do imperador ortodoxo? 31 de outubro de 1517 é o início da rebelião luterana. O gesto atacou o cerne da herança medieval: a unidade religiosa do Ocidente. Os protestantes mudaram a história em muitos aspectos. No ano que vem, lembraremos os 500 anos das 95 teses do monge agostiniano que enfrentou o poder de Roma e morreu de morte natural, algo bastante escasso entre seus ancestrais rebeldes.
Tal como ocorre na nossa biografia, a escolha de datas mostra muito de quem está elegendo os marcos, as prioridades e os valores. Memórias são orgânicas e continuam sua transformação permanente ao longo de toda a vida. Que venha logo 2017, com suas novas datas que nos lembrarão que estamos em curso, perfectíveis e inacabados. Um bom domingo a todos vocês!

Nenhum comentário: