Aceite que o barroco dourado e over do mundo natalino é a chance de ser cafona sem culpa
Leandro Karnal ,
O Estado de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
18 Dezembro 2016 | 02h00
No próximo domingo será Natal. Os cristãos primitivos não celebravam a festa do nascimento de Jesus. No Evangelho mais antigo na ordem de escrita, o de Marcos, o Messias já aparece com 30 anos. A grande festa cristã era a Páscoa. O culto ao menino Jesus demoraria muito.
O que explica a ascensão do Natal? A data, bastante aleatória, diz respeito a uma escolha dos romanos. Era uma tentativa de cristianizar a festa de 25 de dezembro, antes ligada ao Sol, a Mitra e outros cultos. O Natal foi um esforço de subverter a memória pagã.
Sabemos, pelo Evangelho de Lucas, que fazia frio. Logo, Jesus nasceu entre outubro e março. Aprendemos que Belém é um lugar teológico: Jesus deveria nascer lá para cumprir a profecia. Que tenha nascido, de fato, na cidade de Davi, é algo incerto. Santa Helena, a mãe do imperador Constantino, está por trás de muitas das escolhas dos lugares de culto na Terra Santa. Os locais exatos assinalados hoje, como a estrela de prata de 14 pontas na gruta da Natividade, são um cruzamento de tradições e escolhas aleatórias. Por fim, o ano do nascimento do Messias, definido como 753 da fundação da cidade de Roma, é um erro de cálculo. É possível que Jesus tenha nascido antes de Cristo, ou seja, que o nascimento real tenha ocorrido antes da data oficial estabelecida séculos depois. É um tema muito caro a um historiador: a invenção das tradições.
A festa de Natal teve uma ascensão lenta no calendário litúrgico. Como vimos, era ofuscada pela Páscoa. Importante perceber que inexistia a categoria criança na Idade Média. Outra questão: ninguém comemorava o dia do seu nascimento. Poucos sabiam a data. A criança era considerada um adulto imbecil.
O Natal é processo de humanização de Jesus e de Maria. O presépio foi criado no século 13, provavelmente por Francisco de Assis. A transformação foi aumentando. Os portais das catedrais ainda ressaltavam o Juízo Final, a terrível passagem de Mateus 25 sobre o fim dos tempos e o julgamento de todos. Porém, dentro das igrejas, uma sorridente Nossa Senhora exibia seu filho, orgulhosa e afetiva. As crianças foram adquirindo uma representação específica. Compare uma Madona de Cimabue, uma de Giotto e uma de Rafael. Num prazo de dois séculos, surgiu, de fato, a criança como a identificamos hoje.
O século 19 é o século em que a criança se afirmou. O Impressionismo representou muito a alvorada da vida. As Meninas de Azul e Rosa, do Masp, mostram Renoir imerso na nova estética. Surgem roupas específicas para os pequenos. O ensinamento de Rousseau, na obra Emílio, começa a ser aceito por muita gente: a infância determina o ser humano maduro.
Por fim, o século 20 é o início da era de ouro da criança, ao menos da criança de classe média e alta. A festa do Natal assumiu caráter lúdico e comercial. Cresceu a figura do Papai Noel. Presentes tornaram-se obrigatórios. As casas foram decoradas com motivos mais divertidos e menos religiosos. O Natal virou uma festa voltada ao público infantil e celebrada para ele. Da mesma forma, na Páscoa, o Cristo ressuscitado deu lugar ao coelhinho. Ovos de chocolate predominam sobre o Cordeiro Pascal. O aniversariante continua pobre como nasceu: Jesus nada ganha no fim do ano.
O processo de infantilização das festas não é exclusivo do cristianismo. Crianças de identidade judaica, em Nova York, por exemplo, começaram a ser contempladas com árvores de Hanucá, a festa das luzes. O surgimento de Hanukkah Bushes mostra a necessidade do lúdico. As crianças dominam nosso imaginário. Como cantávamos nos ônibus em excursões escolares: “Criança feliz, feliz a cantar, alegre a embalar, seu sonho infantil...”. Alguém ainda conhece essa melodia?
A infantilização do Natal traz dois aspectos. O primeiro eu já desenvolvi: a valorização crescente da criança e a tentativa de tornar a infância um período de felicidade absoluta. A segunda traz a melancolia de quem cresceu. Geralmente, as crianças amam profundamente o Natal e muitos adultos se sentem tristes nessa época. Talvez sejam os gastos, talvez sejam as memórias dos Natais reais ou recriados pela memória. Uma amiga minha, Flavia, acha a música Noite Feliz uma das coisas mais depressivas do mundo. Eu acho a melodia plangente; ela ecoa de forma merencória na neve austríaca que a gerou.
Em uma semana será Natal. É hora de acertar contas com sua criança interior. Talvez seja esse o desafio da data. O que eu e você perdemos entre aquela festa familiar dos primeiros anos de vida e a de hoje? Que ecos buscamos? Procuro conversar com meus fantasmas para aprender. Lembre-se da lição de Ebenezer Scrooge, do conto de Dickens (A Christmas Carol). Fale com seus fantasmas. Convide-os para sua mesa. Dance com alguns: são leves, não pisarão nos seus pés. Encare até Simone cantando “então é Natal”. Aceite que o barroco dourado e over do mundo natalino é uma chance de ser cafona sem culpa. Você não é obrigado a ser feliz na noite de Natal, mas entenda que também não é obrigado a ser triste. Falta uma semana. Feliz Natal! Bom domingo para todos vocês!
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