Laura Greenhalgh
Sangria financeira longe de estancar, clima de alerta no balcão do governo, cofres fechados e uma greve que busca fôlego para durar até a Copa. Não têm sido fáceis os dias do reitor da USP, o médico e cientista Marco Antonio Zago, que na semana passada recebeu o Estado no prédio da Fuvest, desviando dos piquetes pela Cidade Universitária. “Hoje não preciso de inimigos”, brinca o dirigente que levou o Cruesp, conselho que reúne reitores das três universidades públicas paulistas - USP, Unicamp e Unesp - a tomar a decisão conjunta de congelar salários, suspender contratações e interromper obras.
Nessa entrevista, Zago aponta onde está o vazamento maior das contas uspianas: na elevação da massa salarial dos funcionários, que cresceu 89% na gestão do seu antecessor, João Grandino Rodas. “Ele não só aumentou os salários bem acima da inflação, como contratou 2.400 servidores”, crava o atual reitor ante o fato de que, hoje, na USP, a média é de quase três funcionários por professor. Garante que não há nada parecido no mundo.
A reação grevista era um ônus calculado pelo senhor?
Era algo a considerar. Ao assumir a gestão, não tínhamos noção clara da situação na universidade. Havia, desde o segundo semestre do ano passado, indícios de que as coisas não iam bem. Conversas escapam, alguém fala, vem um informativo do Cruesp... A verdade é que as contas estavam hermeticamente fechadas. Não houve reunião do Conselho Universitário no segundo semestre de 2013, exceto uma, extraordinária, provocada pelos diretores das unidades. E a pauta tratou da eleição para reitor, que se aproximava em moldes que precisavam ser revistos. Não podíamos continuar mantendo um sistema afunilado em que reitores tinham espaço de manobra para fazer seus sucessores.
Em que medida aquele processo eleitoral lhe dá respaldo agora?
Se eu não tivesse sido eleito num processo amplo, não mais de 200, mas de 2 mil pessoas com responsabilidade de gestão na universidade, não sei como a USP iria reagir à grave situação de hoje. Claro, há quem diga que eu deveria saber como estavam as contas, pois fui da gestão anterior (de Rodas). Mas não só eu, como os outros pró-reitores e mesmo o vice-reitor não sabíamos. Devemos tomar o que houve como estudo de caso e ver onde precisamos colocar proteções para que o sistema funcione melhor.
E o que houve, afinal?
Uma combinação de falta de dispositivos no regimento e no estatuto, que resultou em vazios administrativos, com a personalidade de quem comandava a gestão, decidindo até sobre o uso da reserva financeira. A USP foi prudente ao poupar R$ 3 bilhões ao longo dos anos, colchão financeiro para enfrentar imprevistos. Mas não criou mecanismos de controle. E, à falta deles, ficou entendido que o uso desse dinheiro seria parte da autonomia do reitor. Penso que uma parte da reserva poderia ser gasta, dentro de limites pré-fixados e naquilo que a universidade entende como indispensável para dar um saldo de qualidade.
O senhor usou critério semelhante ao suspender dezenas de obras?
Obras já foram feitas, outras vão parar, como o Centro de Convenções da USP, onde foram gastos R$ 100 milhões na construção, faltando outros R$ 70 milhões para ocupá-lo com recursos humanos, físicos e tecnológicos. Paramos a reforma de um prédio de 16 andares no centro da cidade, para onde seria transferida a procuradoria da USP. Paramos obras em museus. Só de obras autorizadas, suspendemos R$ 460 milhões este ano. Há casos que lamento profundamente. Como o prédio da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, a minha escola, que por 15 anos planejou construir um espaço para abrigar as disciplinas básicas, hoje ministradas num prédio tombado, onde não podemos reformar laboratórios, mexer em fiações... Mas o pior não foi o plano de obras.
O que foi pior?
Foi deixar o gasto com servidores e docentes, incluindo salários e benefícios, crescer sem controle. Daí as reservas passaram a ser utilizadas para pagar o excedente da folha de pagamento. Os salários dos servidores, na última gestão, subiram na média de 73%, muito acima da inflação. Só que a massa salarial subiu ainda mais, porque no mesmo período o número de servidores saltou também. Foram contratados 2.400 funcionários, sobre um número já grande. Ao todo, o aumento da massa salarial da categoria foi de 89%! Na USP a relação massa salarial de docentes x massa salarial de servidores sempre foi de 60% e 40%. Hoje se inverteu. Somos uma universidade que gasta mais com servidor do que com docente.
Há três servidores para um professor. Aí está o desequilíbrio, na sua visão?
Sim. E note que os servidores dos hospitais das faculdades de Medicina da USP, as Clínicas de São Paulo e as de Ribeirão Preto, não entram na conta, pois são ligados à Secretaria da Saúde. Temos um número considerável de terceirizados, cerca de 5 mil, que não entra também: são vigilantes, funcionários da limpeza, etc. Em resumo, a massa salarial dos funcionários da USP, em torno de 17 mil, subiu 89% nos últimos anos, sem contar terceirizados e funcionários dos hospitais. É pessoal administrativo em sua maioria. A Universidade de Bolonha, na Itália, a mais antiga do mundo, com porte equivalente ao nosso, tem 87 mil alunos, 3 mil docentes e 3 mil servidores - um docente por servidor. Na USP temos 92 mil alunos, 6 mil docentes e 17 mil funcionários! Gastamos com salários mais do que o repasse total do ICMS para a universidade. Não posso falar, como um presidente de empresa, em corte de pessoal. Mas não vou falar em reajuste. No balanço das contas da USP em 2008, época da reitora Suely Vilela, o Tribunal de Contas chamou a atenção da universidade por comprometer 86% do orçamento com folha. Hoje isso está em 105%. Imagine o tamanho de repreensão que vou receber.
Como o senhor definiria o clima interno no Cruesp, nesse momento?
Os reitores são pessoas que conheço há longo tempo. A professora Mariuza Cunha Rudge, da Unesp, vem da minha área, foi professora de Medicina e pró-reitora de graduação. A relação tem sido muito boa. Até pouco tempo, o Cruesp funcionou como mesa salarial. Não havia ações de convergência. Na gestão Rodas, propus a criação de um fórum dos três pró-reitores de pesquisa, sendo eu um deles, com reuniões regulares e programas comuns. Isso nos aproximou. Criamos a primeira pós-graduação do País na área de bioenergia. Já no primeiro ano, o curso teve quantidade surpreendente de inscritos, gente até do exterior, pois ali somamos o que havia de melhor nas três universidades. Fizemos um portal institucional comum, outro para armazenar produção científica e vamos construir um laboratório em Santos, para pesquisa em gás e petróleo, com recursos da Petrobrás. Não basta receber dinheiro, precisamos ter propostas.
O modelo de repasse via ICMS funciona? Há como pedir mais ao governo?
O modelo é este e não há melhor. Não existe país no mundo que faz o que São Paulo faz: aplicar 12% de sua arrecadação em ensino superior, pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Isso é o que dá a soma do que é gasto com as três universidades, a Fapesp e o Centro Paula Souza, voltado para o ensino técnico. Nem estou levando em conta institutos como o Butantã. Claro, as universidades também trouxeram benefícios para o Estado. Olhe o desenvolvimento da região de Ribeirão Preto, onde a USP chegou há 60 anos. A universidade atrai recursos equivalentes ao orçamento da prefeitura local. Estimula empresas, cria empregos, gera conhecimento. O mesmo se pode dizer de São Carlos. Era uma cidade interiorana, com uma fábrica da Climax. Hoje é polo de desenvolvimento, com duas unidades da Embrapa. Tem a ver com o câmpus.
Mas dá para melhorar o modelo?
Adotando controles e eliminando vazios administrativos. Queremos que a Comissão de Orçamento e Patrimônio da USP seja mais atuante no controle de gastos, levando dados ao Conselho Universitário, submetendo a ele as decisões, combatendo o limbo. Até por isso, nomeei comissão para estudar a criação de uma controladoria.
O senhor quer ser controlado?
Não só a minha gestão. É algo para o futuro. Não sei que perfil terá essa controladoria, mas deve atuar com independência em relação ao reitor. Precisamos de uma profunda reforma administrativa para simplificar procedimentos, usar a tecnologia da informação de modo eficiente e aceitar a ideia básica da descentralização. Por que uma alteração de currículo, discutida na unidade, tem de passar por comissões internas, depois seguir para a reitoria, passar por outras comissões, que mandam para outras instâncias, num interminável “encaminhar para cima”? Não há necessidade de todo ato administrativo ser chancelado pela reitoria.
Discute-se a ideia de a universidade ter um regime jurídico especial, não o do funcionalismo público.
Não creio que seja algo fácil politicamente, tanto na universidade quanto no governo. Há casos de estabilidade de servidor que são incompreensíveis. Causam até revolta. A mesma crítica vale para os professores? Em parte, porque a ideia da estabilidade para os docentes está presente em todas as universidades do mundo. Ela se origina da noção de que o professor precisa ter autonomia e independência de pensamento. Mas também podemos rever critérios da dedicação exclusiva do professor. Isso é uma jabuticaba brasileira: por que tantos docentes em regime de dedicação exclusiva na universidade?
Como o senhor vê o processo de expansão da USP? Há quem critique a expansão pela base, na graduação.
A USP é cobrada por não estar hoje entre as 100 melhores universidades do mundo. Mas, se pegarmos as 20 primeiras do ranking Times Higher Education, só há uma com mais de 50 mil alunos. Então, nós, na USP, cumprimos dois desafios concomitantemente, que em geral não estão associados: atender à massa e focar em qualidade. Não é fácil. Comenta-se que a USP perdeu o topo do ranking das universidades latino-americanas para a PUC do Chile. Muito bem, quantos alunos de doutorado tem a PUC do Chile? 900. E quantos tem a USP? 14.600. Aquela é uma universidade pequena, paga, de elite. Aqui precisamos atender quem chega e quem quer qualificação. Sabemos da necessidade de formar engenheiros no País, mas não posso esquecer que, dos 460 mil secundaristas formados anualmente em São Paulo, as universidades públicas do Estado e as Fatecs dão conta de absorver menos de 10%!
Que estratégias o senhor tem para chegar mais perto dos estudantes?
Conversar. É o melhor a fazer. Ontem passei duas horas com cerca de 150 alunos da Poli. São inteligentes, centrados, têm bons argumentos. Assim é a maioria do corpo discente. Mas tem o movimento estudantil, com outros interesses, bandeiras até fantasiosas, a meu ver. Hoje não há razão para essa guerra permanente contra a instituição, como ocorreu na época da ditadura. Outro dia participei de uma reunião com representantes das corporações e lá havia uma estudante da Filosofia. Ao término, ela me disse “reitor, não podemos ser vistos juntos, porque serei muito criticada na faculdade”. Como? Na Poli me perguntaram por que eu não discuto com os alunos da Filosofia, supondo-se que lá esteja o epicentro dos antagonismos. Porque ainda não fui convidado. Se for, irei.
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