JOSÉ DE SOUZA MARTINS
07 Junho 2014 | 16h 00
No atual impasse na USP faltou a cautela de não entrar em greve sem estratégia de saída
A mistura de ocorrências desencontradas nos últimos dias na USP põe em cena o eventual poder criativo dos impasses. Tudo vai depender dos protagonistas. O reitor, acompanhado por seus colegas do Cruesp, declara que não tem condições de conceder reajuste salarial a professores e funcionários. Professores em assembleia, nem um pouco representativa dos quase 6 mil docentes, declaram greve e decidem dar murro em ponta de faca para exigir aumento assim mesmo. Fazem-no em compreensível defesa de salários que foram corroídos por uma inflação negada pelo governo federal, mas confirmada pelo dono do supermercado. Os alunos pegam carona na greve dos outros em defesa de um cardápio de temas cuja solução não está ao alcance da universidade nem deles. Concebem a universidade como miniatura do mundo que querem consertar: mexendo nela, o mundo se move.
Um manifesto de docentes justifica a greve como ato de “reivindicação de democracia e eleições diretas para reitor, na USP; de contestação do autoritarismo dos governos da cidade e do Estado de São Paulo; de crítica às políticas de fundo neoliberal sempre em curso no Brasil”. Parar a USP não vai resolver nenhum desses problemas, até porque há também autoritarismo em impor à maioria as decisões da minoria. O que não quer dizer que não sejam demandas pertinentes. Mas se tais problemas existem é porque as maiorias votaram democraticamente e decidiram desse modo. Falta, portanto, uma pedagogia política de convencimento democrático de que a minoria talvez tenha razão.
Essas inviabilidades apontam noutra direção. Em política, há pelo menos duas cautelas a serem observadas em movimentos grevistas, coisa que na USP raramente se faz. Uma dessas cautelas era sempre lembrada pelo falecido professor Leonel Itaussu de Melo, de ciência política, que participava das paralisações advertindo: não se entra numa greve sem uma estratégia de saída. As greves na USP vêm de grupos que tem iniciativa, mas não tem acabativa. A outra cautela é a de avaliar o efeito bumerangue dos movimentos grevistas, o efeito fora de controle e oposto ao pleiteado. Um exemplo do efeito bumerangue dessas ocorrências está em artigo há dias publicado na Folha de S. Paulo sugerindo a hipótese do ensino pago na USP (e por extensão em todas as universidades públicas). Sessenta por cento dos alunos da USP teriam condições de pagar mensalidade equivalente à dos alunos da PUC do Rio de Janeiro. Com esse recurso, a USP arrecadaria R$ 1,8 bilhão por ano, cerca de um terço do que recebe do governo do Estado.
A problemática sugestão, infelizmente, tem tudo para sensibilizar todos os ressentidos com os que tiveram o privilégio de ingressar na melhor universidade pública do País e o pagam com greves, cadeiraços e depredações, como se viu nas últimas greves.
No compreensível pão-durismo de não corrigir os salários deste ano talvez tenha faltado considerar a prioridade possível, necessária e mais mansa de uma reforma administrativa que racionalize os serviços e atenue o primitivismo caro de muitos dos serviços da universidade. As universidades públicas no Brasil, o que inclui a USP, são no geral perdulárias, uma característica própria do serviço público brasileiro. Com facilidade, pode-se fazer uma lista de itens e procedimentos de puro desperdício, desde carros e ônibus oficiais até o cafezinho ruim e dispensável e o adicional para docentes que ocupam funções administrativas. Não tem o menor cabimento que cientistas e docentes sejam desviados para funções que seriam mais bem desempenhadas por profissionais nelas especializados, ressalvada a função legislativa e supervisora dos colegiados. Além do que, hoje, a escolha de um chefe de departamento, de um diretor de unidade ou do reitor é transformada descabidamente em episódio da luta de classes, num mundo em que as classes se tornaram mais ficção teórica do que realidade. Discutimos o poder na universidade com categorias do século 19.
Está em andamento um subterrâneo movimento para desqualificar a USP e, por extensão, as universidades públicas. Não se trata de questionar por aí o direito de greve. Mas não há como não levar em conta que qualquer pequena ocorrência negativa na USP se torna objeto de destaque e considerações sobre sua suposta “decadência”. É o caso do ligeiro declínio de pontuação no Índice QS, para a América Latina, em comparação com a Universidade Católica do Chile. A USP não recuou um ponto em relação a anos anteriores quanto aos itens que de fato qualificam uma universidade. Perdeu para a UCC porque, sendo aquela uma universidade relativamente pequena e paga, conseguiu melhorar a proporção de alunos por professor. As grandes conquistas da USP, e também da Unicamp e da Unesp, na diversidade dos seus campos do conhecimento, internacionalmente reconhecidas, nem sequer são citadas. As grandes universidades do mundo levaram séculos para chegar aonde chegaram. A USP chegou aonde chegou em apenas 80 anos.
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José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de 'A política do Brasil Lúmpen e Místico' (Contexto)
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