20 de julho de 2013 | 2h 07
Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
O tratamento do câncer está prestes a sofrer uma reviravolta. Para melhor. Matemáticos especializados em teoria da evolução e biologistas moleculares demonstraram que o tratamento simultâneo com duas ou mais drogas pode levar ao desaparecimento de tumores antes incuráveis. A lógica que permitiu o controle do HIV talvez funcione para eliminar tumores.
Há décadas sabemos que o câncer é causado pelo aparecimento de células com mutações em genes que controlam sua divisão. Essas mutações foram descobertas na década de 1980, mas demorou 30 anos para surgirem drogas capazes de matar de maneira específica células que carregam essas mutações.
Nos últimos anos a quimioterapia foi revolucionada pelo uso dessas drogas. Quando usadas em tumores que possuem a mutação para a qual foram desenvolvidas, matam rapidamente as células e o tumor diminui rapidamente. Mas, com o sucesso, veio a frustração.
Em praticamente 100% dos casos o tumor volta, pois surgem células com novas mutações, resistentes à droga já usada. Um segundo "round" de tratamento é iniciado, com outra droga, e ele inicialmente funciona. Mas o tumor volta, agora com uma terceira mutação, resistente às duas primeiras drogas. Se existir uma droga para a terceira mutação, um novo ciclo de químio é iniciado. A guerra continua até o médico não dispor de mais armas. Aí o câncer vence. O resultado é que a sobrevida do paciente aumenta, mas a taxa de cura não se altera.
Nos últimos anos, para desespero dos médicos, foi descoberto que já no tumor original pode estar presente um número pequeno de células resistentes à primeira droga. Em outros casos, as células resistentes surgem durante o tratamento. Essas descobertas levaram muitos oncologistas a considerar a possibilidade de utilizar mais de uma droga já no inicio do tratamento. Mas essa ideia gerou muita discussão: o custo do tratamento aumenta e o médico deixa de ter uma segunda "arma" a sua disposição caso perca a primeira batalha.
A novidade é que matemáticos especializados em modelagem de processos evolutivos se associaram a biologistas moleculares que estudam as mutações que causam o câncer e sua resposta aos novos quimioterápicos. O objetivo foi construir um modelo matemático capaz de descrever o surgimento de novas mutações nas células presentes em um tumor e prever como as diversas populações (cada uma com um grupo diferente de mutações) se comporta quando submetida a diversas combinações de quimioterápicos.
Os modelos foram construídos e calibrados usando dados obtidos durante o tratamento de 20 pacientes com tumores sólidos como melanomas, câncer de cólon e de pâncreas. A velocidade com que as células se dividem, o número de células presentes, a frequência de cada tipo de célula, a taxa de surgimento de mutações novas e a velocidade com que as células morrem durante cada tratamento foram determinadas experimentalmente e colocadas no modelo.
Em seguida, o modelo foi usado para prever o que acontecia com os pacientes ao longo do tempo quando submetidos a diferentes tratamentos. Os resultados demonstraram que o modelo explica e prediz o desenvolvimento da doença.
Validado o modelo, ele foi usado para entender qual a melhor combinação de drogas, em que ordem devem ser administradas e como tumores de diversos tamanhos e composição respondem aos diferentes tipos de combinação. Os resultados são impressionantes. Aqui vai um exemplo. Se o paciente tiver no seu corpo um melanoma com 9,8 x 1010 células (cem bilhões de células cancerosas), espalhadas por oito metástases, a chance de curar esse paciente com tratamentos sequencias, usando uma droga de cada vez, é zero. Mas, se forem usadas duas drogas simultaneamente, a chance de cura sobe para 88%. E esse resultado se repete com diversos tipos de tumores e drogas. O uso combinado de mais de uma droga, já na primeira batalha, parece aumentar muito as chances de cura.
Esse modelo torna possível prever o que deve ocorrer se diferentes estratégias de tratamento forem utilizadas. Isso facilita o planejamento de novos estudos e permite adequar a estratégia para cada paciente.
Nos próximos anos é provável que esse modelo seja testado e aperfeiçoado, o que seguramente permitirá planejar e acompanhar de maneira científica o tratamento de cada tumor, aumentando a taxa de sucesso. No curto prazo, os resultados preliminares provavelmente vão convencer muitos médicos a testar protocolos que utilizam duas ou mais drogas simultaneamente logo no início do tratamento.
O uso de um coquetel de drogas foi o que permitiu o controle do HIV, o vírus que causa a aids. E a lógica por trás de seu uso é exatamente a mesma.
Esses modelos só puderam ser desenvolvidos porque matemáticos foram financiados durante décadas para construir modelos capazes de estudar processos tão diferentes como o altruísmo em populações, o problema do dilema dos prisioneiros e o surgimento de processos cooperativos nas sociedades. É um exemplo da importância de se financiar projetos que aparentemente têm pouco uso prático. Quando menos se espera, esses conhecimentos podem revolucionar algo tão prático e importante como a cura do câncer. * MAIS INFORMAÇÕES: EVOLUTIONAY DYNAMICS OF CÂNCER IN RESPONSE TO TARGETED COMBINATION THERAPY. ELIFE 2013;2:E00747 É BIÓLOGO
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