segunda-feira, 8 de julho de 2013

Nem democracia, nem anarquia, por Luli Radfahrer, na FSP

08/07/2013 - 03h00


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Na metade do século passado Winston Churchill admitia que a democracia não era perfeita, mas era inquestionavelmente superior às alternativas disponíveis. As recentes manifestações ao redor do mundo parecem mostrar que talvez tenham surgido as tais alternativas. No ambiente digital em que todo mundo tem direito à expressão, a ideia da "voz da maioria" parece uma coisa velha.
Por aqui falou-se em plebiscito, constituinte, voto nulo e outras propostas que deixam clara a indisposição generalizada com uma democracia burocrática. São questões delicadas, que podem desabar para censuras ditatoriais ou demagogias populistas. A Internet vem demonstrando nos últimos anos que não há saída fácil ou rápida. Por mais fascinantes que sejam as frases de Marshall McLuhan, eventos tipo TED e filmes do Ben Affleck, ações "mágicas" ou instantâneas não costumam dar muito certo. Uma boa prova disso está na situação política de muitos países depois da primavera árabe.
A gestão pública é complicada. Ao contrário do que muitos gritam por aí em nome de "valores democráticos", não há democracia que defenda ou aprove a liberdade absoluta de acesso ou publicação de qualquer tipo de informação, nem a formação de todo tipo de grupo. Pelo contrário, há leis para restringir discursos racistas, proteger informação sigilosa e acabar com grupos de interesses nocivos, como pedofilia ou segregação.
Outro ponto que muitos parecem ter se esquecido é que a Democracia não é apenas um direito, mas também um dever. Dever este que, ignorado, leva a comportamentos indesejáveis, da ineficiência de servidores públicos à corrupção em áreas chatas ou complicadas demais para serem acompanhadas. Por pior que seja a reunião do condomínio, só quem participa dela garante melhorias onde vive.
Liberdade, Igualdade e Fraternidade sempre viveram em um equilíbrio delicado. No ambiente simplificado e reducionista das redes sociais, boa parte dessa complexidade parece ter sido ignorada. A Internet pode liberar ou oprimir, conforme o contexto social e político em que é aplicada. A mesma força que serve de conscientização pode servir de propaganda, vigilância ou restrição.
A velocidade das mudanças tecnológicas levou à ilusão de que se poderia resolver boa parte das mazelas do mundo à base da canetada. Infelizmente não é esta a realidade. "A transição para a Democracia", diz um príncipe saudita entrevistado pela BBC, "não é fácil nem imediata. Na Europa ela levou séculos e custou milhares de vidas em revoluções e guerras sangrentas. Não adianta tentar criá-la por decreto ou imposição."
A mesma tecnologia que empodera também aliena. Desde o surgimento do controle remoto as técnicas de personalização buscam condicionar seus públicos a personalizarem o que recebem. À medida que o conteúdo se adapta às preferências pessoais, o aprendizado se restringe, a ponto de ser difícil desenvolver opiniões além do hábito e do preconceito.
Foi comum ver, nessas semanas, gente a excluir pessoas de suas redes sociais, simplesmente por terem cometido o pecado capital de dizer algo que desagrade. Como crianças mimadas que tapam os ouvidos quando contrariadas, muitos adultos aparentemente racionais reforçaram suas câmaras de eco, encorajando a polarização e alienação.
Online o indivíduo é mais assertivo, menos restrito, transgressor, livre das regras que governam as interações sociais. Não é à toa que muitos tentem, na vida real, imitar essa personalidade artificial. Ela é mais sexy, mesmo que fictícia.
A revista Time chamou esse comportamento de "Geração Me Me Me", por aqui, poderia ser traduzido para "Geração Mimimi", tamanho o chororô e o esforço copernicano para se colocar no centro do universo, se queixando de tudo que não se conforme com seus (altíssimos? Irreais?) padrões de qualidade, perfeição e demandas.
O mundo das ideias da Internet parece ter se tornado o lugar mágico em que instintos são alimentados e reforçados. Nele soam anacrônicos valores sociais como gentileza, cortesia e tudo que defina alguém como "civilizado". O termo, derivado da convivência nas cidades --civitas, em latim-- ressalta o fato de que fora delas o que sobrava era um ambiente selvagem e violento.
Espera-se de pessoas civilizadas que interajam com as outras de forma calma e ponderada, em um espírito de cooperação, não de competição, em que não se recomenda perder as estribeiras e insultar, perseguir ou intimidar aquele de quem se discorda.
O maior objetivo da Democracia não é fortalecer minorias nem trocar segredos, mas gerar cooperação e novas ideias a partir de encontros inesperados. E são exatamente esses encontros que, via Internet, começam a desaparecer. Ao se distanciar dos vizinhos e ambientes sociais em que o corpo físico teima em habitar, perde-se a noção de cidadania (outro derivado de cidade) e, com ela, parte da identidade e valores de convivência.
Muitos dizem que a rede é anárquica, mas isso também não é verdade. Outro termo derivado do grego, "anarchia" quer dizer "sem governante." Sua base está no trabalho coletivo das comunidades pequenas, em que cada pessoa poderia ser um agente da mudança.
Errico Malatesta, um dos principais defensores da Anarquia, se opunha a democracias e ditaduras, mesmo sabendo como era difícil propor algo em seu lugar. Segundo ele, um "Governo do povo" jamais alcançaria a unanimidade, acabando por privilegiar uma minoria. Sua proposta era a de eliminar forças de coerção, substituindo-as pela livre organização de pessoas com interesses e objetivos comuns. Em sua época, isso seria inatingível sem o risco de uma regressão a um estado primitivo.
Com a Internet o cenário é propício para a mudança, mas o processo não será imediato nem à prova de erros. Desde seu surgimento ela vem acompanhada de ideias grandiosas, nutrindo ambições em uma disposição generalizada de participar de um experimento de massa, com potencial infinito.
Como qualquer rede, a Internet cresceu de forma fragmentada. E nem poderia ser diferente. Sob a perspectiva de cientistas na Guerra Fria, uma rede de comunicação precisaria ser o mais descentralizada possível para resistir a um holocausto nuclear. Seus fundadores não eram maçons, padres, corporações ou capitalistas, mas técnicos, membros de associações voluntárias. Alguns de seus valores podem servir de base para futuros sistemas de governo e gestão.
Um bom exemplo está na Wikipédia. Apesar de qualquer um poder editá-la, há processos e padrões a seguir. Segundo suas próprias palavras, ela se recusa a ser vista como um experimento em democracia, anarquia ou qualquer outro sistema político. Seu método de chegar a consensos é o debate e a edição, não o voto. Mesmo tendo vários elementos de burocracia, ela não é governada por estatuto. Suas regras escritas são só a documentação de consensos preexistentes.
A meritocracia pragmática da Wikipédia lembra os valores dos pioneiros da Internet, cujos maiores valores eram o consenso e a qualidade do código. São os mesmos valores que sustentam até hoje as redes de software livre e código aberto, responsáveis por boa parte da infraestrutura da rede.
O sucesso desses valores mostra um possível caminho para a formação política: é recomendável que, no futuro, além de ensinar as crianças a programar, mostre-se a elas a fascinante história da ciência e tecnologia, para que compreendam a riqueza e o poder das redes e processos na busca de uma melhor compreensão e, quem sabe, mudança do mundo.
Luli Radfahrer
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blogwww.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.

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