O governo alega que segue o modelo inglês, mas lá o clínico-geral é médico de família. Aqui, nos hospitais públicos, a prática é fragmentária e lotérica
Entre as manifestações de rua das últimas semanas e as respostas que o governo (Executivo e Legislativo) lhes está dando há um descompasso imenso. Os manifestantes exigiram uma coisa e o governo está dando outra. As reivindicações eram quanto à qualidade da medicina oferecida à população, e também quanto à qualidade da educação, da segurança, da vida (e da própria política, nos protestos contra a corrupção). A resposta de presumível maior impacto foi no âmbito da medicina,resposta quantitativa: mais médicos.
Quantitativa, também, no demorado tempo para surtir efeito: 2023. Muitos dos que carecem já de qualidade na assistência médica estarão mortos, como estarão mortos vários dos que decidem sobre os carecimentos do povo, insuficientemente interpretados. Os pobres e famélicos não foram os principais protagonistas das ruas: foi predominantemente a classe média, mesmo aquela forjada nos recursos de arredondamento dos dados estatísticos. Além disso, foram as grandes e médias cidades que gritaram, não os lugarejos do Brasil profundo, o que não quer dizer que não haja ali carências graves e até absolutas.
Assim como a sociedade do governo não está batendo com a sociedade do povo, também a geografia do governo não está batendo com a geografia do povo. O Brasil da governação,nos embates de agora,revela-se um Brasil de estereótipos, ficção de livro, longe do real. O governo entendeu que a rua queria o mais, quando queria o melhor: melhores serviços sociais, melhor governo, reconhecimento de direitos e não favores. Um despiste geral do Executivo e do Legislativo levou a decisões necessárias, sem dúvida, mas não suficientes, bloqueadas durante longo tempo pelo negocismo políti cooportunista, que começam a ser desbloqueadas pelo medo oportunista aos manifestantes.
Ninguém pode deixar de temer a solução quantitativa para a questão da assistência médica, anunciada no improviso das pressões de rua,mesmo que se diga que estavam sendo preparadas havia um ano. Acrescentar dois anos de permanência do estudante de medicina na faculdade, como servidão para receber o diploma, não resolve necessariamente a carência atual e urgente de médicos nem a qualidade dos serviços médicos. O governo alega seguir o modelo inglês. Pode ser. Mas no modelo inglês a formação de médicos tem como destinatária a boa medicina social inglesa, baseada na precedência da clínica vicinal e do clínico geral como primeira instância da assistência médica.
Aqui, o hospital acaba sendo a primeira instância, e o atendimento do clínico geral é mero mediador de triagem. Lá,o clínico-geral é médico de família e é sempre o mesmo médico. Aqui, nos hospitais públicos, a medicina tende a ser fragmentária e lotérica, mesmo que praticada por excelentes profissionais. As demoras entre uma consulta e outra podem estender-se por meses e, não raro, resultados de exames ficam por meses à espera da leitura pelo médico que os pediu. A medicina corre o risco de virar engenharia, não mais regulada pelo tempo da vida, mas pelo tempo da produção. O médico convertido em mão de obra, a boa e artesanal intuição do clínico geral perdendo prestígio.
É igualmente inútil comparar a medicina que está sendo proposta aqui com a medicina social inglesa. Lá, o serviço médico e outros serviços sociais são pensados e organizados com base na premissa comunitária de sua oferta e funcionamento. Não temos essa cultura no Brasil. Aqui, aliás, nada é menos comunitário do que tudo que é anunciado como comunitário. Provavelmente, um complicador dos serviços de medicina pública no Brasil está na própria má organização dos serviços e má utilização dos médicos e dos recursos disponíveis. Nos anos 1970, o professor Walter Leser, secretário de Saúde do Estado de São Paulo e um precursor da medicina preventiva entre nós, mandou publicar um estudo sobre doenças tratáveis e até curáveis que, no entanto, eram causa de mortalidade em São Paulo. Em alguns casos, o índice de mortalidade era alto.
O tratamento e a cura estavam disponíveis; no entanto, não chegavam aos que deles precisavam. Aqui, hospital, como escola, sempre foi motivo de demagogia política: construir prédios, antes de construir soluções. Prédio pode ser eleitoralmente visto. O tratamento e a cura de doenças, não. Em vez de valorização de polos de diagnóstico e tratamento, aqui se centraliza. Basta visitar em qualquer dia de semana a Rua Dr.Eneas Carvalho de Aguiar, que atravessa o complexo do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo, para constatar o congestionamento de ambulâncias procedentes do interior do Estado, de lugares que têm ou poderiam ter seus adequados serviços médicos. Até do Paraná e de Minas Gerais chegam ambulâncias diariamente. Ao que parece, politicamente, o melhor hospital é a ambulância e o melhor médico, seu motorista. A política de saúde pública de muitos lugares é uma política de transportes. Já se disse, até, que o melhor hospital de Brasília é o aeroporto.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A Política do Brasil lúmpenemístico
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