sábado, 2 de julho de 2022

'Quem rasga a Constituição em um dia no outro rasgará direitos', diz Serra sobre PEC, FSP


BRASÍLIA

Único senador a votar contra a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) das bondades em ano eleitoral, José Serra (PSDB-SP) critica duramente o Senado por ter atropelado a votação, em apenas dois dias, em vez de buscar uma saída que mantivesse a responsabilidade fiscal e sem medidas extremas e polêmicas, como a decretação do estado de emergência.

"Só agora o Senado descobriu que as famílias passam fome no Brasil?", questiona o senador e ex-governador paulista, em entrevista à Folha.

Na noite de quinta-feira (30), o Senado Federal aprovou PEC que institui um estado de emergência e abre os cofres públicos para turbinar benefícios sociais. A proposta prevê R$ 41,25 bilhões, fora do teto de gastos, para elevar para R$ 600 o valor do Auxílio Brasil e zerar a fila de espera do programa, dobrar o Vale Gás e para pagar auxílios para caminhoneiros e taxistas.

O senador José Serra (PSDB-SP), único voto contrário à aprovação da medida - Pedro Ladeira-14.ar.19/Folhapress

A criação de alguns desses benefícios só foi possível juridicamente porque o texto da proposta também contém um dispositivo polêmico que estabelece o estado de emergência para viabilizar as benesses, o que vem sendo apontado como um "drible" na legislação eleitoral.

"A partir do momento em que a Constituição se torna instrumento para maiorias de ocasião solaparem o que bem entendem, tudo é possível. Sinto que tudo dependerá da conveniência, necessidade ou desespero dos envolvidos", afirma.

Por que o senhor decidiu votar contra a PEC ? Pela forma como tudo se deu. De repente, aparece uma PEC com gastos da ordem de R$ 38 bilhões, despesas temporárias autorizadas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Havia diversos itens no pacote: transferência de renda para os elegíveis ao Auxílio Brasil, subsídio à gratuidade para idosos no transporte público urbano e semi-urbano, compensação aos estados por crédito de ICMS ao setor de etanol, aumento do auxílio-gás, transferências para caminhoneiros. Depois, vieram as transferências para taxistas, tudo em dois dias. Não tínhamos o texto consolidado da PEC no momento em que a votação era aberta. Ao final, o Senado aprovou R$ 41 bilhões em despesas para 2022 mediante uma PEC que nem passou pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), votada em dois turnos numa tarde. Regras fiscais, questões distributivas, viabilidade do gasto, o caráter emergencial deste ou daquele item, impacto nas contas públicas, nada foi debatido.

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Qual fator pesou mais na decisão do senhor? O fato de a proposta ser eleitoreira, a inclusão do estado de emergência? O caráter eleitoreiro da medida é evidente. Só agora o Senado descobriu que famílias passam fome no Brasil? Que pessoas são intoxicadas ou queimadas pelo uso de material inadequado no preparo de alimentos devido à falta de gás de cozinha?

Foi uma decisão difícil, pois é óbvio que nenhum problema é maior do que a situação de insegurança alimentar de milhões de famílias. Há, contudo, meios e meios para obter recursos que atenuem o problema. Subitamente, declara-se na Constituição um estado de emergência para excetuar R$ 41 bilhões de todas as regras fiscais existentes, sem nenhuma discussão quanto ao mérito de cada item do pacote, fontes de custeio, impactos econômicos, etc? Em dois dias o Senado aprova uma PEC autorizando gastos temporários? Seria perfeitamente possível obtermos recursos pelo processo legislativo usual, via projeto de lei com recursos ordinários e extraordinários.

Quais os riscos que o senhor avalia que há na previsão do estado de emergência para possibilitar o pagamento dos benefícios em um ano eleitoral? Regras fiscais são pensadas para reduzir os riscos de que recursos públicos sejam empregados de maneira injusta ou ineficiente, para reduzir os riscos de desequilíbrios fiscais crônicos. Ao permitir que, subitamente, dezenas de bilhões sejam gastos para proporcionar vantagem eleitoral a governos e parlamentares de ocasião, estamos reforçando estímulos a condutas irresponsáveis. Naturalmente, a competição política se torna ainda mais desigual. Uma Constituição deve estabelecer as regras fundamentais do jogo político e os pilares da arquitetura institucional de um país. Ontem, o Senado fez dela um instrumento para subverter todas as regras fiscais. O processo legislativo orçamentário e todas as regras que o balizam foram completamente desprezados.

O senhor acredita que a previsão do estado de emergência pode abrir precedente, caminho, para outras iniciativas do governo Bolsonaro neste ano? Sempre é possível. O que a PEC aponta é que não há mais limites. No ano passado, aprovaram a PEC dos precatórios, muito problemática. Agora, R$ 41 bilhões em gastos temporários, sem considerações. Foram algumas as iniciativas com o intuito de reduzir na marra os preços de combustíveis, cogitando-se até rever a lei das estatais. A partir do momento em que a Constituição se torna instrumento para maiorias de ocasião solaparem o que bem entendem, tudo é possível. Sinto que tudo dependerá da conveniência, necessidade ou desespero dos envolvidos.

Além do voto contrário, o senhor pretende tomar mais alguma medida contra essa PEC, como judicializar? A judicialização requer considerações de ordem processual e material. Não é uma medida trivial. Seguirei muito atento, até o final do meu mandato, a todas as tentativas de desconstruir o que construímos com tanto esforço. Quem rasga deveres da Constituição em um dia no outro rasgará direitos, até que não tenhamos mais nenhum.

Houve críticas ao caráter eleitoreiro da PEC, mas vimos a pré-candidata Simone Tebet e praticamente todos parlamentares do partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Ciro Gomes votando a favor. Como avalia esse comportamento? Para esses personagens e seus aliados valeu também o fator eleições em vez da sustentabilidade fiscal? A PEC, para mim é eleitoreira e irresponsável. Para eles, creio que seja necessário perguntar o que eles imaginaram que seria. Só posso entender a postura de muitos senadores como medo de serem malvistos pela opinião pública. Mas também acredito que a população brasileira é perfeitamente capaz de discernir.

Jamais me negaria a votar em favor de quem tem fome. Os dados são alarmantes. Mas há que se atuar com responsabilidade para que a nossa economia não piore ainda mais no próximo ano, com juros e inflação mais altos, corroendo de vez os ganhos da população.

RAIO-X

JOSÉ SERRA, 80

Nascido em São Paulo (SP), formou-se em economia e engenharia e começou sua carreira política no movimento estudantil. Foi presidente da União Nacional dos Estudantes. Após um período de exílio, durante a ditadura militar, retornou ao Brasil e ocupou diversos cargos públicos. Foi prefeito da capital paulista, governador, deputado federal e senador. Também foi ministro da Saúde, do Planejamento e das Relações Exteriores. Disputou a presidência da República por duas vezes. Está em seu segundo mandato no Senado Federal, que se encerra em janeiro do próximo ano. 

Marcos Mendes O que nos fará uma sociedade desenvolvida?, FSP (definitivo)

 O economista Oded Galor lançou recentemente o livro "The Journey of Humanity: the Origins of Wealth and Inequality". O trabalho impressiona ao explicar o processo de crescimento econômico compilando evidências que remontam ao período anterior à migração do Homo sapiens para fora da África. A obra deixa claro que uma condição central para o fenômeno do crescimento é o capital humano. Sociedades bem-sucedidas foram aquelas que permitiram à maioria dos seus membros desenvolver suas potencialidades.

O crescimento teria se dado de forma desigual no mundo devido a condições geográficas, históricas, culturais e institucionais, que em alguns casos permitiram e em outros tolheram o uso de todo o potencial criativo do ser humano.

Para a América Latina, o diagnóstico é coerente com a literatura que vem se desenvolvendo desde os anos 1990. Nossas condições geográficas favoráveis à monocultura de exportação geraram concentração da propriedade da terra e da riqueza, trabalho escravo sem requisito de investimento em capital humano, instituições políticas e culturais que excluíam a maior parte da população do processo político, leis e governos mais voltados a preservar privilégios do que a prover bens públicos para todos.

Candidatos chegam ao 1º dia de provas do Enem, na Unip da avenida Marquês de São Vicente, em São Paulo - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Apesar de mostrar que o nível atual de desenvolvimento de cada país tem profundas raízes históricas, Galor afirma que o destino das nações "não está gravado em pedra". Conclui a obra afirmando que se tornarão desenvolvidas as sociedades que conseguirem forjar coesão social, induzirem uma mentalidade orientada para o futuro, privilegiarem a educação e a inclusão de todos.

A mentalidade orientada para o futuro (esforço hoje, recompensa amanhã) é fundamental para a acumulação de capital e conhecimento. A coesão social facilita os acordos, gera confiança no próximo e permite que todos aceitem sacrifícios presentes em nome de benefícios futuros. Também permite que se façam contratos com pessoas desconhecidas, ampliando as possibilidades de ganhos de comércio.

O que esperar do Brasil sob essa perspectiva? Dados do World Value Survey mostram que vamos mal em termos de coesão social. Apenas 6,5% dos brasileiros acreditam que a maioria das pessoas é confiável, ante uma média de 27% dos demais países. Ficamos em 80º lugar entre 88 países no ranking da desconfiança.

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Quanto ao esforço coletivo para resolver os problemas da sociedade, 48% dos brasileiros acreditam que cabe ao governo a responsabilidade por atender as necessidades das pessoas, em oposição ao esforço individual. A média é de 16,5%. Só Jordânia e Zimbábue colocam mais responsabilidade no governo. O curioso é que o brasileiro não confia no governo, sendo o quinto na lista dos mais desconfiados. Logo, a mensagem parece ser de descompromisso individual com a solução dos problemas coletivos, jogando para um terceiro (o governo) a responsabilidade que não se quer assumir, e de buscar o governo sempre que precisar resolver um problema do seu grupo de interesse.

Em termos de mentalidade orientada para o futuro, também não vamos bem. Altas taxas de juros, alta dívida pública e baixa poupança são medidas da impaciência e preferência pelo presente. Dados do Banco Mundial mostram que temos a segunda maior taxa de juros real do mundo. A dívida pública é a 14ª maior entre 79 países emergentes (dados do FMI). Já a nossa taxa de poupança é muito baixa, ficando em 121º lugar entre 173 países.

Os nossos fracos resultados nos exames internacionais de proficiência em matemática, ciências e leitura mostram que também não vamos nada bem em termos de capital humano.

Não será fácil reverter essas condições que travam o crescimento. Uma possibilidade seria unir a sociedade em torno de poucas porém relevantes metas quantitativas, como o aprendizado escolar, a redução da pobreza e da violência.

Focar os resultados que fazem a diferença a longo prazo, sem descuidar do básico, que é evitar que a economia descambe em razão de gestões voluntaristas, baseada em fórmulas mágicas para o crescimento imediato, que sempre acabaram em desastre.