sábado, 2 de janeiro de 2021

Acabaram as desculpas para não começar a vacinação contra a covid-19, Fernando Reinach, OESP

 Em 2020, a covid-19 matou quase 200 mil brasileiros. Muitas mortes teriam sido evitadas se ao invés de uma cadeia de comando, Bolsonaro presidisse um governo. Em um governo, a diversidade de ideias é estimulada e decisões são geradas num ambiente de debate. 

Não é o que ocorre no governo federal, lá manda quem pode, obedece quem tem juízo. Mas isso não quer dizer que Bolsonaro tenha assumido a responsabilidade por suas decisões, ao contrário, se calça em desculpas. A primeira foi que o STF delegou a Estados o combate à pandemia. 

A última, que as empresas deveriam correr atrás do governo implorando para vender vacinas. Se mortes foram evitadas, isso se deve à ação da população, de médicos e enfermeiras, de prefeitos, governadores, do Legislativo e do Judiciário, e ocorreram contra a vontade do presidente.

Mas agora, com a aprovação pela Inglaterra, Argentina e Índia da vacina desenvolvida pela AstraZeneca/Oxford, e o início de seu uso no ano novo, as desculpas acabaram. De 1º de janeiro de 2021 em diante, o sucesso do programa de vacinação brasileiro está todo sob controle da cadeia de comando do presidente.

Testes da vacina contra covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca e Universidade de Oxford foram suspensos
Vacina contra covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca e Universidade de Oxford  Foto: Timur Matahari/AFP

O governo federal, por meio da Fiocruz, optou por colocar todas suas fichas na vacina da AstraZeneca/Oxford. E resolveu, ao invés de comprar doses da vacina, celebrar um contrato de transferência de tecnologia. Por esse contrato a Fiocruz recebe o ingrediente ativo da vacina em grandes volumes, que serão fracionados, envasados, rotulados e embalados nas instalações da própria Fiocruz, resultando em 100 milhões de doses até junho de 2021. 

Numa 2ª etapa, a partir de julho, a Fiocruz assumiu a responsabilidade de produzir o princípio ativo da vacina localmente, garantindo o resto das doses necessárias, e a total independência do Brasil. Para tanto, assumiu o encargo de construir e certificar novas fábricas, comprar os frascos e tudo que for necessário para entregar as doses de vacina para o Ministério da Saúde.

A escolha de colocar todas as fichas na vacina da AstraZeneca/Oxford foi uma decisão arriscada, que parecia ter encontrado obstáculos quando saíram os resultados das primeiras três vacinas. As vacinas da Pfizer e Moderna apresentaram eficácia maior, 95%, quando comparada à eficácia de 70%, em média, da vacina da AstraZeneca. Algumas falhas no estudo de fase 3 me levaram a imaginar que talvez demorasse para alguma agência regulatória aprovar a vacina. Errei. 

O fato é que a Inglaterra analisou os dados apresentados pela AstraZeneca e concedeu licença emergencial para a vacina. Argentina e Índia fizeram o mesmo. O governo inglês já está recebendo as doses que comprou, embaladinhas e prontas para uso na semana que vem. Isso significa que a AstraZeneca possui um dossiê que foi entregue ao governo inglês, argentino e indiano e foi aprovado. A cadeia de comando não entregou o dossiê (Fiocruz) e tampouco examinou o dossiê (Anvisa). 

Se isso já ocorreu na Argentina e na Índia, cabe perguntar por que ainda não ocorreu no Brasil. O prazo para a Fiocruz entregar o pedido à Anvisa é 15 de janeiro. E a Fiocruz pretende entregar as primeiras doses da vacina ao Ministério da Saúde em 16 de fevereiro. Um mês e meio depois da Inglaterra receber doses prontas da AstraZeneca, e um mês após a entrega pela AstraZeneca do princípio ativo para a Fiocruz (previsto para 9 de janeiro). Será que as fábricas não ficaram prontas? Não foram certificadas? Faltam frascos? Não sabemos. 

Mais cedo ou mais tarde, a Fiocruz vai entregar as primeiras doses de vacina, 3,5 milhões, mas o ritmo da entrega ao longo dos meses seguintes ainda é desconhecido e não sabemos que fração da população a cadeia de comando planeja vacinar a cada dia durante 2021. Para vacinar a população ainda em 2021, é preciso inocular aproximadamente 500 mil pessoas por dia. Lembre desse número e verifique o progresso a cada dia.

O ritmo de vacinação depende do Ministério da Saúde. O Programa Nacional de Imunização (PNI) é federal, e nossa sorte é que a vacina da AstraZeneca não precisa de condições especiais de transporte e armazenamento e, portanto, se encaixa como uma luva no PNI. Não há desculpa para a vacinação não ser iniciada rapidamente e executada com velocidade. Se não houver vacina suficiente, se faltarem seringas, se o controle de quem foi vacinado falhar, se ela não chegar aos rincões do Brasil, não existe desculpa.

O presidente Bolsonaro optou por instalar um sistema de comando e controle, tipicamente usado por militares em operações de guerra. Podemos até argumentar que a luta contra o SARS-CoV-2 é uma guerra, mas nos sistemas militares o general dá as ordens, os outros devem obedecer sem questionar, como confirmou ao vivo e em cores o general que é nosso ministro da Saúde. 

O que não devemos esquecer é que num sistema onde as ordens são emitidas por um único líder e seguidas por todos os outros, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso da operação recai unicamente sobre o comandante. Assim, qualquer que seja o resultado do nosso programa de vacinação em 2021, é bom lembrar que a responsabilidade a partir de agora é de Bolsonaro. Acabou o espaço para desculpas.

 


‘Mengele odiou viver no Brasil, um país multicultural’, afirma jornalista, OESP

 Entrevista com

Gerald Posner, autor de 'Os filhos de Hitler'

Fernanda Simas, O Estado de S.Paulo

01 de janeiro de 2021 | 05h00

Situação econômica ruim, sociedade vivendo com medo e ódio disseminado. Esses foram alguns dos elementos, segundo o jornalista e autor do livro Os filhos de Hitler, Gerald Posner, que levaram ao surgimento e fortalecimento do nazismo. Após conversar com filhos de nazistas do alto escalão ou que atuaram em campos de concentração, Posner encontrou histórias de pessoas que tentam compensar os crimes cometidos pelos pais, mas também se surpreendeu ao ver que muitos ainda defendem as atitudes dos pais. Um de seus objetos de estudo foi Josef Mengele, que viveu no Brasil e, segundo Posner, não gostou.

Mengele
Fotógrafos e cinegrafistas no interior do Edifício Wilton Paes de Almeida em 7 de junho de 1985, quando a Polícia Federal divulgava informações sobre a presença do médico nazista Joseph Mengele no Brasil. O fotógrafo Antonio Lucio aproveitou para tirar uma foto do Largo do Paissandu. Foto: Antônio Lucio/Estadão

Qual a importância do seu livro atualmente (lançado este ano no Brasil pela editora Cultrix), já que foi escrito em 1991?

Não há novidades nessas histórias, mas a importância das lições delas continua. Muitos entrevistados defendem o que os pais fizeram. Eles ainda acreditam que os pais estavam trabalhando por algo bom e necessário, é surpreendente.

Por que escrever o ponto de vista dos filhos de nazistas?

Mais do que falar da perspectiva dos nazistas e questionar “como você justifica o que fez”, eu estava interessado em mostrar que essas pessoas podiam ser monstros no que faziam e, ao mesmo tempo, pais afetuosos. Como jornalista eu achava muito simples dizer que eles eram apenas monstros, queria entender o que leva essas pessoas a fazerem isso. E ter essa análise nos faz perceber o quão complexo é entender o que leva essas pessoas a fazerem o mal, às vezes até mesmo suas famílias não entendem.

Qual foi a reação desses filhos após a publicação do livro?

Alguns deles ficaram felizes porque era a primeira vez que falavam publicamente sobre o assunto e sentiram alívio. Quando estava preparando o livro eu não contei aos entrevistados quem mais estaria na relação dos filhos. Quando o livro foi publicado, Wolf Hess (filho de Rudolf Hess) ficou chateado de estar no mesmo livro de filhos de nazistas de baixo escalão. Mesmo depois da guerra, ainda há reações de que aqueles nazistas estavam lutando por um ideal, que não têm sangue nas mãos.

Você acredita que alguns deles apoiaria um regime nazista hoje?

Para alguns deles, como o filho de (Josef) Mengele, Rolf, há uma questão muito forte de responsabilidade social. Sei que ele foi favorável a abrir as portas da Alemanha para quantos imigrantes pudessem entrar no começo da guerra síria. Ele sempre dizia “meu pai cometeu esses crimes e eu não posso estar ao lado das pessoas que dizem não entrem nesse país”. Mas sei que outros, como Wolf Hess, que está morto agora, estariam na linha de frente contra a entrada de muçulmanos no país. Eu não ficaria surpreso se alguns adotassem medidas de extrema direita sobre imigração.

Por que mostrar os generais nazistas em situações comuns e não durante atos criminosos?

Acredito que é muito importante entender o contexto, o que motivou os atos. Você não precisa concordar com um posicionamento para tentar entendê-lo. Se você entender, pode combater melhor. Há anos, quando eu trabalhava na biografia de Mengele, muitos me disseram ‘ele era um monstro, um sádico’. Mas não é tão simples. Se não tivesse ocorrido a 2.ª Guerra, muitos daqueles pais não teriam necessariamente se tornado serial killers, poderiam ter uma vida normal, Mengele por exemplo poderia ter vivido em uma pequena vila alemã. Não sabemos a capacidade de cada um de cruzar a linha e cometer o mal. Nos EUA, com a quantidade de ataques a escolas por exemplo, 9 em cada 10 casos os vizinhos do atirador diziam “ele parecia tão normal, amável”. Quando falamos do nazismo, os crimes cometidos são tão horríveis que pensamos que os autores eram pessoas horríveis o tempo todo. Mas muitos nazistas voltavam para casa no fim do dia e se sentavam com a família como se não tivessem comandado um massacre pela manhã. É assustador.

Como foi investigar a passagem de Mengele pelo Brasil?

Comecei meu trabalho em 1981 e pensava que Mengele estava vivo em algum lugar. E todos pensavam que ele estava no Paraguai por causa do (ditador Alfredo) Stroessner. Mas agora sabemos que Mengele se mudou para o Brasil com a ajuda de austríacos e húngaros. Ele passou o restante da vida no Brasil e morreu aí em 1979, mas tudo veio à tona em 1985. E algo super interessante dessa história, e fiquei sabendo por meio do filho dele, que ele escreveu nas cartas para a família que odiava viver no Brasil. Odiava viver em uma sociedade multicultural, odiava o fato de a família ter voltado para a Alemanha enquanto ele tinha que fugir. No fim da vida, nos subúrbios de São Paulo, ele reclamava o tempo todo. Eu fiquei feliz de saber disso porque ele não passou um dia na cadeia, mas foi uma punição para ele viver numa sociedade multicultural, o que ele tanto combateu.

Como você vê o aumento do extremismo?

Sem dúvida a gente vê um aumento do extremismo de direita e de esquerda na Europa e nos EUA também. Isso mostra que os sentimentos antigos de ódio, as teorias da conspiração, isso vive. O extremismo cresce com base no medo, em antigos estereótipos. Quando as coisas estão financeiramente ruins, como vimos em 2008 e 2009, por exemplo, as pessoas procuravam bodes expiatórios. E acredito que o mesmo esteja acontecendo agora, com a pandemia da covid-19. Como resultado vemos o crescimento do ódio.

A pandemia e as fake news podem piorar o extremismo?

Sim. É incrível no que as pessoas são capazes de acreditar mesmo sem nenhuma informação fidedigna ou originária de algum lugar de confiança. Vemos um monte de teoria sobre a pandemia ser disseminada e assimilada como verdade.

É possível impedir isso?

A menos que um asteroide mude o curso do planeta, acho que não. A internet torna o acesso à informação fácil para o bem ou para o mal. E as pessoas que usam a internet para disseminar informações falsas são muito boas nisso, não colocam a informação em um e-mail, elas constroem um texto, com dados e entrevistas, que não são reais, mas parecem.

É possível voltar a haver um período nazista?

Pessoas dizem que não seria possível existir um regime nazista no Brasil, EUA ou outro país da Europa. Mas não estamos falando de uma réplica do que aconteceu nos anos 1930 em tempos atuais. Estamos falando do tipo de situação em que as pessoas estão numa situação de desespero tão grande que depositam suas esperanças e apoio em um governo que parece forte e as tire daquela situação. O exemplo é a Alemanha no fim da 1.ª Guerra, quando assina um acordo que é uma punição dos vencedores e, como resultado, as pessoas na Alemanha vivem em uma situação econômica ruim enquanto o resto da Europa está melhor. A raiva surge e as pessoas buscam bodes expiatórios. Então surge Hitler dizendo: “Não é sua culpa, vocês não foram responsáveis pela derrota na 1.ª Guerra. Vocês deveriam ser o grande povo alemão, na realidade, vocês são uma raça superior, são melhores do que qualquer um e ninguém lhes disse isso”. Deve ter sido reconfortante escutar isso após a guerra. E se você abre mão de seus valores e esquece dos princípios que são importantes, você segue a multidão. Sempre me preocupo com a combinação governos autoritários, mesmo em democracias, e população em desespero que está disposta a abrir mão de seus direitos e valores.

Desafios à frente e o que esperar de 2021, Celso Ming, O Estado de S.Paulo


01 de janeiro de 2021 | 18h05

Não será preciso muito para fazer deste 2021 um tempo melhor do que foi 2020, um annus horribilis, como diria a rainha Elizabeth II, do Reino Unido – se não por outras razões, pelo menos pelo desastre produzido pela pandemia.

A perspectiva da vacina já muda muitas coisas – algumas para melhor. É o que já se pressentiu no último trimestre do ano passado, quando houve boa retomada da atividade econômica, embora ainda faltem os números para dar ordem de grandeza a essa percepção e se possa, enfim, conferir a tal recuperação em “V”, de que tanto fala o ministro da Economia, Paulo Guedes.

As contas externas do Brasil, causa dos enfartes que caracterizaram as crises dos anos 1970 e 1980, continuam em excelente estado. Essa área não preocupa. A eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos aumentou o nível de confiança global, especialmente nas duas últimas semanas de dezembro, quando o Congresso dos Estados Unidos aprovou novo pacote de recursos para enfrentar a crise. A pandemia tende a ser agora nocauteada pela vacina, especialmente nos países avançados. Mas, levando-se em conta que há mais de 200 delas em desenvolvimento ao redor do mundo, não há como negar que há agora luz no fim do túnel.

Os investimentos nos países industrializados têm tudo agora para se destravar e boa parte deles pode chegar ao Brasil, onde novos recordes na produção de grãos devem ajudar a puxar as exportações.

O grande problema do Brasil são as condições internas. As contas públicas continuam em forte deterioração. A dívida pública bruta deve ter fechado o ano em torno dos 93% do PIB (veja o gráfico), mas caminha rapidamente para os 100% do PIB. O governo não tem estratégia clara de enfrentamento. Parece contar apenas com o aumento da arrecadação que se seguiria ao avanço da atividade econômica. O que poderia garantir a volta aos trilhos seriam avanços claros nas reformas administrativa e tributária, mas nada ainda garante esse trunfo.

A economia do Brasil enfrenta três grandes riscos. O primeiro está subjacente ao que ficou dito acima. Trata-se de uma eventual deterioração da confiança que se seguiria à inércia do governo para conter o rombo.

O segundo risco é o do esgotamento do aumento da demanda que reergueu a economia no último trimestre de 2020. Está claro que já não será possível continuar a distribuir auxílios emergenciais, não só pelo refluxo da pandemia como, também, porque o governo ainda não sabe de onde pode tirar os recursos para isso.

Mais preocupante, nada menos que 14,1 milhões de trabalhadores estão lançados ao desemprego. E há outros 5,8 milhões que nem procuram trabalho, porque estão no desalento. Se for confirmada a retomada, já não se espera que o setor produtivo volte a contratar pessoal como antes, porque passou a operar com mais tecnologia e menos mão de obra. Mesmo com a demanda contida, a inflação voltou a se acirrar no segundo semestre de 2020. Ainda não é uma grande preocupação, mas, se alguma coisa der errado, ela pode voltar a disparar. 

Margaret Keenan
Margaret Keenan, de 90 anos, é a primeira paciente no Reino Unido a receber a vacina Pfizer-BioNTech contra a covid-19, administrada pela enfermeira May Parsons no University Hospital, Coventry, Inglaterra Foto: Jacob King / Pool via AP

O terceiro risco tem natureza política e é o de que, já no primeiro semestre, seja deflagrada campanha prematura para as eleições gerais de 2022. As negociações montadas para as eleições das mesas das duas Casas do Congresso e as escaramuças que envolveram o presidente Bolsonaro e o governador paulista, João Doria, em torno da aplicação da vacina do Butantã mostram que esse risco é forte. Seria fator que poderia bloquear decisões que conduziriam ao saneamento das finanças públicas ou à aprovação das reformas e, por aí, minar a confiança na política econômica. 

Mas, digamos, a hora é de alívio por 2020 ter ficado para trás.

*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA