segunda-feira, 1 de junho de 2020

Carta secreta a Trump, Moisés Naím, O Estado de S.Paulo


04 de maio de 2020 | 07h10

É uma grande honra, presidente, que o senhor solicite meus conselhos sobre como garantir sua merecida reeleição. Compartilho sua decepção com os conselheiros eleitorais que falharam em transformar sua gestão bem-sucedida em uma vantagem eleitoral esmagadora. O único assessor que serve como conselheiro é seu brilhante genro, Jared Kushner.

Mas a realidade não deve ser ignorada. É inevitável que a pandemia e suas consequências econômicas acarretem altos custos eleitorais para o senhor. No dia das eleições, em novembro, haverá dezenas de milhares de empresas falidas, milhões de pessoas sem emprego e muitos mortos em razão da covid-19.

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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump Foto: Jonathan Ernst/Reuters

Além disso, a gravidade da situação será exagerada pelos meios de comunicação. Eles sempre se recusaram a reconhecer seu talento e o êxito de sua atuação. O exemplo mais recente disso foi a maneira injusta como relataram sua sugestão de ingerir ou injetar desinfetantes domésticos para lidar com o novo vírus.

Apesar de tudo isso, estou convencido de que sua reeleição é possível. Mas, para que isso aconteça, o senhor deve estar disposto a fazer qualquer coisa.

As pesquisas eleitorais mais recentes indicam que Biden está a sua frente em todos os Estados. Se as eleições fossem hoje, ele e não o senhor seria o próximo presidente dos EUA. Mas essa realidade não me assusta. Temos outras maneiras para garantir sua permanência no poder.

Ser o presidente do EUA e ter a visibilidade e todos os recursos que isso implica é uma de suas vantagens. Outra é o dinheiro. O senhor já arrecadou US$ 187 milhões a mais do que Joe Biden. Também temos mais e melhor tecnologia de informação. Além disso, temos a ajuda inestimável de seu bom amigo Vlad, o russo.

Mas devemos aceitar que, mesmo com essas vantagens, Biden pode chegar a novembro com mais apoio dos eleitores. Nesse caso, teremos que recorrer a outra de suas poderosas armas: o Judiciário.

Durante seu mandato, o senhor conseguiu, em colaboração com o líder do Senado, Mitch McConnell, nomear 158 juízes, incluindo dois magistrados da Suprema Corte. Certamente, muitos deles são muito gratos ao senhor. O Judiciário como instrumento para determinar o resultado de uma eleição presidencial já foi usado em 2000.

Na disputa presidencial entre George W. Bush e Al Gore, a Suprema Corte interveio em uma disputa pela contagem de votos no Estado da Flórida. A decisão do tribunal favoreceu Bush, levando-o à Casa Branca. E é neste precedente, neste exemplo, que baseio meu otimismo em relação à possibilidade de o senhor ser reeleito.

Deixe-me ser muito franco ao fazer minha recomendação: se não conseguirmos vencer sua reeleição nas urnas, venceremos nos tribunais. Se não for por votos, deve ser por ações judiciais. Devemos nos preparar para criar dezenas de situações ambíguas e confusas nas votações, na contagem de votos ou em muitos outros aspectos da mecânica eleitoral que colocam os juízes para resolver os conflitos criados por essas confusões.

Além de nos prepararmos para desencadear essa blitzkrieg judicial contra eleições, também devemos trabalhar para que aqueles que não votam no senhor, não votem. É simples assim. Conhecemos os distritos onde a maioria dos eleitores apoia Biden e, aí, podemos tornar o processo tão lento, as urnas tão defeituosas e as filas tão longas que as pessoas desistam de votar.

Também devemos evitar a todo custo que nas áreas em que os democratas dominam a votação, as pessoas que estão ausentes possam votar, seja por correio ou eletronicamente. E podemos divulgar informações que tornam a localização dos locais de votação mais confusa.

Impedir que ex-presidiários votem também é uma tática a ser considerada. Mais de 7% da população afro-americana adulta não pode votar por ter estado na prisão. Na população branca, a proporção é de 1,8%. A lista de táticas possíveis para suprimir a votação é longa e conhecida, e nenhuma é nova. Já usamos todas elas. A diferença é que agora proponho que elas sejam o pilar da nossa estratégia eleitoral.

E deixei a mais importante por último. A batalha não será ganhar os votos da nossa base de fãs. Esses já estão garantidos.

A batalha é para que céticos, incrédulos, confusos, mal informados ou indecisos não votem. É preciso usar as redes sociais para espalhar desconfiança, dúvidas e críticas sobre as eleições e o sistema democrático. Para isso também temos a ajuda inestimável do amigo Vlad, o russo.

Permaneço à sua disposição para fazer o que for preciso.

Reitero minha admiração e respeito.

TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

O mundo após as crises, Moisés Naím*, O Estado de S.Paulo


18 de maio de 2020 | 03h00

“O mundo mudou para sempre”. Foi o que se afirmou depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. A mesma coisa se verificou após a grande recessão, que durou de 2007 a 2009. E ocorre também depois de cada um dos colapsos financeiros que regularmente sacodem o planeta. A análise das crises internacionais que temos vivido desde a década de 80 revela vários fatores recorrentes. Alguns já estamos observando nesta pandemia de covid-19. Outros não. Há cinco que vale a pena destacar:

  1. O exagero do impacto da crise. Os prognósticos quanto a mudanças no mundo são exagerados. Depois das crises anteriores, o mundo não mudou, nem para sempre e nem para todos. Claro que o terrorismo e os colapsos econômicos tiveram grande impacto. Mas, na prática, houve mais continuidade do que revolução. As crises não mudaram o mundo tanto como foi anunciado por políticos e jornalistas.

    Nova York - coronavírus
    Artista de rua em Nova York; Estado é epicentro da pandemia nos EUA   Foto: Johannes Eisele/AFP

     

  2. A reação dos governos tem muito mais impacto do que o próprio fato que produz a crise. O 11 de Setembro causou a morte de 3 mil pessoas e perdas de US$ 100 bilhões. A reação de Washington custou US$ 3 trilhões. Os conflitos no Iraque, Afeganistão e Paquistão mataram 480 mil, incluindo 244 mil civis. O mesmo ocorreu com o colapso financeiro de 2007. A gigantesca ajuda financeira dos governos para grandes empresas teve mais impacto do que a própria crise. Os governos privilegiaram as grandes empresas privadas às expensas da classe média e dos trabalhadores. Isto agravou a desigualdade e impulsionou o descontentamento social que, por sua vez, fortaleceu o populismo e terminou alterando a política em muitos países.

     

  3. As crises não são globais. A recessão de 2007 a 2009 foi tão grave e a reação dos governos das economias desenvolvidas foi tão maciça que era natural supor que se tratava de uma crise econômica mundial. Mas não foi. China, Brasil e outros mercados emergentes não se viram tão afetados. Melhor, eles se converteram nas locomotivas da economia global e ajudaram a reanimar as economias prostradas dos EUA e Europa.

     

  4. A rotineira necessidade de reformas que nunca ocorreu. Outro fator comum que nunca falta nas crises é o apelo para reformas das instituições internacionais, a democracia e o capitalismo. Ao eclodir uma crise é comum que líderes políticos e intelectuais peçam a eliminação – ou uma reforma profunda – de ONU, Otan, FMI, Banco Mundial ou do setor privado. Como sabemos, nada disso ocorreu até hoje.

     

  5. O que acreditávamos ser permanente, acabou sendo transitório, e vice-versa. Outro dos elementos comuns nas crises é o surpreendente desaparecimento ou a total irrelevância de líderes e instituições que considerávamos permanentes e onipotentes. Saddam HusseinMuamar Kadafi, os poderosos executivos dos grandes bancos, e os próprios bancos, são bons exemplos. Por outro lado, ideias, líderes, acordos internacionais e políticos que pareciam transitórios se tornaram permanentes. O auge do populismo sem rédeas, simbolizado por Donald Trump e Boris Johnson, ilustra esta tendência.

É possível que as lições que tiramos de outras crises não se apliquem à pandemia de covid-19. Ela é diferente de todas as outras grandes crises que ocorreram desde o século passado. O coronavírus desencadeou uma instabilidade mundial diante da qual nenhum país está imune. A tecnologia, a globalização, a revolução digital, o fato de que, desde 2009, no mundo há mais pessoas vivendo nas cidades do que no campo, e a ausência de um tratamento para o vírus, são apenas alguns dos fatores diferenciadores desta crise.

Mas, apesar de todas as diferenças, também há coisas que vimos nas crises passadas e que se repetem nesta. Não é impossível que, no longo prazo, a reação exagerada ou inepta dos governos venha a causar tanto ou mais danos que a própria pandemia. Tampouco faltou nesta crise a denúncia das organizações multilaterais. O governo americano deixou de pagar sua cota para a OMS e pediu sua total reestruturação.

A pandemia também provocou situações que começaram como um paliativo e se tornarão permanentes. O trabalho remoto é o mais óbvio dos exemplos. Finalmente, um fator comum a todas as crises é a proliferação de teorias conspiratórias para explicar o que ocorre e o número crescente de charlatães que se aproveitam da confusão para vender ideias ou produtos fraudulentos. Como vemos de sobra nos noticiários, esta pandemia não é imune ao impacto dos charlatães que brincam de ser presidente. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMENT

Moisés Naím E o que mais agora?, OESP

Moisés Naím, O Estado de S.Paulo

01 de junho de 2020 | 05h00

covid-19 é a coisa mais importante que está acontecendo para todo o planeta. Mas há outras coisas também ocorrendo, que embora sem o alcance e as consequências da pandemia, revelam tendências mundiais que afetarão toda a sociedade.

Sessão
Trabalhadores pulverizam desinfetante dentro de uma sala de cinema antes de sua reabertura, depois que o governo tailandês facilitou as medidas de isolamento para evitar a propagação do coronavírus, em Bangkok, na Tailândia. Foto: Athit Perawongmetha / Reuters

Muitos gafanhotos. Eles são uma das piores pragas de que fala a Bíblia. Felizmente não são frequentes. No século 20, houve cinco surtos que devastaram as colheitas e deixaram a carestia no seu rastro. No fim do ano passado, o surto mais feroz dos últimos 25 anos se deu no deserto de Rub’ al-Khali, na Arábia Saudita, um dos lugares mais remotos e isolados do mundo. 

Os insetos deste surto são mais jovens do que os de costume, voam em uma velocidade maior e podem percorrer até 200 quilômetros em um só dia. Sua população se multiplica por 20 a cada três meses. No Quênia, um enxame estimado em 192 bilhões de gafanhotos alcançou uma dimensão três vezes maior do que a da cidade de Nova York. Em um único dia, um enxame de tamanho regular chega a devorar uma colheita que poderia alimentar 35 mil pessoas.

 

A crise atual dos gafanhotos é também mais internacional. Saída da Península Arábica, atacou a África. Agora está devastando a agricultura da Índia, Paquistão e Afeganistão. A causa? Os ciclones que geram as condições de umidade propícia à reprodução dos gafanhotos. Antes, nas zonas de onde os enxames se originam, ocorria apenas um ciclone por ano e nenhum durante longos períodos.

Nestes tempos, no mundo, não se registra apenas uma presença excessiva de gafanhotos, como também há petróleo em demasia. Com as economias fechadas, a metade dos trabalhadores formais do mundo em suas casas e o transporte severamente restrito, o consumo de petróleo caiu enormemente.

Amy Jaffe, especialista em política energética, calcula que o excesso de petróleo acumulado em 2020 pode superar os bilhões de barris. Este petróleo bruto precisa ser armazenado, e a capacidade existente no mundo está chegando ao limite. Desse modo, hoje a cotação do petróleo é a mais baixa dos últimos 18 anos.

As consequências deste fato para o futuro da energia no mundo são enormes. Investir em energia agora é menos atraente, por exemplo. A Agência Internacional de Energia acaba de informar que este ano ocorreu a maior queda da história dos investimentos no setor. Não só baixaram os investimentos em carvão, petróleo e gás, mas também em fontes renováveis, como energias solar e eólica. A falta de investimentos acabará reduzindo os volumes produzidos, provocando a subida dos preços.

Mas, enquanto isto acontece, os preços baixos levaram à falência as empresas de energia que operam com altos custos de produção ou têm uma situação financeira precária. Além disso, países como Arábia Saudita, Rússia, Irã, Nigéria ou Venezuela, cujas economias dependem quase exclusivamente da exportação de gás e petróleo, sofrerão uma crise econômica debilitante que poderá causar turbulências políticas internas ou alimentar conflitos internacionais.

Hong Kong morreu. Não por causa do vírus, mas por causa dos líderes chineses. A Assembleia Nacional Popular da China acaba de aprovar uma lei de segurança nacional que proíbe atividades como “traição, secessão, sedição, e subversão” em Hong Kong. Agora, o governo de Pequim pode intervir quando quiser no território, reprimindo toda atividade que considerar uma ameaça e ignorando as autoridades eleitas. Inevitavelmente, o papel crucial que até agora Hong Kong desempenhou como um dos pilares da economia da China declinará.

A China tem um território de 9,3 milhões de quilômetros quadrados e 1,4 bilhão de habitantes. Hong Kong tem 110 quilômetros quadrados e 7,5 milhões de habitantes. Como é possível que uma cidade tão pequena seja tão ameaçadora para um país tão gigantesco? É que de repente a China experimenta um imenso apetite pela hegemonia mundial.

Durante muito tempo, as autoridades chinesas insistiram que o restante do mundo não tem o que temer com o auge econômico ou com a crescente influência do seu país. A prioridade nacional, afirmavam, era tirar da pobreza tantos dos seus compatriotas quantos fosse possível e no menor tempo possível. Mas, ultimamente, começaram a aparecer sintomas de que o sucesso econômico abriu o apetite geopolítico dos líderes de Pequim. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA