quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Milagres acontecem. Desastres também - CARLOS ALBERTO SARDENBERG, O Globo


O Globo - 02/11


O perigo é quando agendas são mentirosas, candidatos mais fortes se desviam das principais questões e vendem soluções fáceis


Muita gente está desanimada com o cenário para as eleições presidenciais de 2018. E — quer saber? — o quadro, visto de hoje, mostra uma polarização perigosa. Esclarecendo: a polarização não é necessariamente perigosa. Não raro as sociedades ficam diante de opções opostas, entre uma agenda liberal e outra de esquerda, por exemplo. O perigo é quando as agendas são mentirosas, quando os candidatos mais fortes se desviam das principais questões e vendem soluções fáceis.

Para quem acha que isso está por acontecer no Brasil, sugiro voltarmos a 1992. Collor caiu, Itamar Franco assumiu em meio a uma crise econômica parecida com o pós-Dilma, recessão com inflação, mas ainda pior porque o país não tinha moeda com um mínimo de credibilidade. Haviam circulado nada menos que cinco moedas desde 1985, ano da redemocratização.

Em poucos meses de governo, Itamar teve três ministros da Fazenda. As expectativas só pioravam diante do então evidente despreparo do presidente para lidar com tamanha crise. No meio disso, Itamar recebe uma mensagem iluminada sabe-se lá de onde e nomeia Fernando Henrique Cardoso ministro da Fazenda. Talvez ninguém tenha sido mais surpreendido do que o próprio FHC, até então um satisfeito ministro das Relações Exteriores.

A escolha não entusiasmou. De fato, foi recebida com algum ceticismo. Fernando Henrique tinha mais credibilidade do que seus antecessores no cargo, mas não era economista nem especialmente familiarizado com a prática de política macroeconômica.

Foi, portanto, uma boa surpresa quando FHC, sociólogo do campo da esquerda à moda europeia, montou uma equipe com economistas de primeira e deu início a um programa claro: liquidar a inflação, introduzir a nova moeda e reformar as instituições econômicas na linha mais liberal e ortodoxa.

Deu no Plano Real e na eleição de FHC, em primeiro turno, em 1994 e 98, batendo Lula nas duas vezes. Não parecia, mas acabou sendo o homem certo na hora exata em que o país mais precisava.

O Real não foi apenas a introdução de uma moeda estável, reconhecida como tal pela população, mas o início de uma sequência de reformas que retiraram o caráter estatizante da Constituição de 1988. Modernizou a administração, do Ministério da Fazenda às estatais e bancos públicos, e introduziu a noção e as leis de responsabilidade fiscal.

Portanto, pessoal, milagres acontecem, e sempre há um jeito de sair da crise. Esta história parece dar razão à tese segundo a qual a sociedade encontra o líder de que precisa na hora em que precisa. A crise gera sua solução. Acrescente aí a doutrina econômica das expectativas racionais — as pessoas sempre tomam as decisões mais racionais e mais adequadas a seus interesses e necessidades — e pronto, é só esperar que surja o FHC de 2018.

Fácil demais, simples demais para ser verdade. O prêmio Nobel de economia deste ano, Richard Thaler, demonstra exatamente o contrário, que as pessoas frequentemente tomam decisões irracionais, contrárias a seus interesses. Falava das decisões econômicas, pessoais, mas pode-se aplicar à política. Quantos povos em quantos países não votam de maneira totalmente equivocada?

Ou seria Trump um líder selecionado pela História? E Dilma? Temer?

Por outro lado, é um fato que os franceses, colocados diante de radicais de esquerda (Mélenchon) e de direita (Marine Le Pen) e representantes da velha política, elegeram Macron, que se apresentou com uma agenda clara de reformas ditas impopulares (previdência, com aumento da idade mínima, trabalhista, com aumento da jornada de trabalho, e privatizações).

Portanto, pessoal, o Brasil não está perdido. Tampouco está salvo.

Mais ocupação, menos emprego - CELSO MING, OESP


ESTADÃO - 02/11

O crescimento do trabalho informal não pode ser avaliado apenas como defeito conjuntural; o mundo do Trabalho passa por grandes mudanças


O desemprego recuou, mas a maior parte dos novos postos de trabalho é informal ou, simplesmente, corresponde a atividades “por conta própria”. É o que se viu nas estatísticas do IBGE, que acusaram queda no desemprego de 13,7%, pico registrado no trimestre terminado em março, para 12,4%, no trimestre terminado em setembro.

É uma situação que assegura mais poder aquisitivo, que vem beneficiada por outro fator: pela derrubada da inflação e, portanto, pela menor corrosão da renda com o aumento de preços. Mas à custa da queda das ocupações com carteira assinada.

Algumas avaliações sobre esse comportamento do emprego sugerem que o crescimento do trabalho informal e autônomo não passa de defeito conjuntural, digamos, da atual fase de retomada da atividade econômica. E que, mais à frente, o emprego volta a ser o que era.

Não dá para desfazer totalmente essa impressão. A recuperação por aqui é lenta e sujeita a instabilidades. Ninguém sabe, por exemplo, em que mãos vai ficar o comando político a partir de 2019. São fatores que freiam não só o investimento, mas, também, a contratação de pessoal. E, se esses obstáculos forem superados, será inevitável maior crescimento do emprego formal.

Mas não dá para contar com virada substancial no mercado de trabalho. Esta Coluna vem advertindo de que o emprego, tal como o conhecemos, passa por rápidas transformações, à medida que o setor de serviços segue absorvendo a maior parte da mão de obra e à medida que a tecnologia de informação, a internet, a inteligência artificial e toda sorte de aplicativos transformam as atividades profissionais.

Categorias profissionais importantes estão sendo atingidas pela modernidade. Os bancos, por exemplo, estão fechando agências e deixando de contratar pessoal porque o celular e os aplicativos substituem os caixas convencionais. Tendência parecida acontece no comércio, à medida que as compras eletrônicas dispensam lojas e vendedores. Tem o Uber, o Cabify e tantas outras virações que proporcionam atividades com remuneração até melhor do que o contrato de trabalho com registro em carteira. Os tempos que vêm aí poderão proporcionar trabalho e ocupação, mas não emprego.

Daí, dois efeitos colaterais perversos: a redução do arrecadação do Imposto de Renda na fonte sobre os salários; e a redução da arrecadação da Previdência Social, que já vem sendo fortemente prejudicada pelas aposentadorias precoces e pelo aumento da expectativa de vida da população.

Pode-se argumentar que o trabalho autônomo também está sujeito às regras do Imposto de Renda e das contribuições para a Previdência. No entanto, a falta de comprovação leva os contribuintes ou a fugir dos pagamentos ou a recolher valores mínimos. Além disso, no caso da Previdência, deixa de existir a contribuição do empregador.

Ou seja, além dos rombos já existentes, as mutações no trabalho tendem a criar problemas adicionais.

CONFIRA

» Marcha lenta

Não dá para comemorar demais o crescimento industrial de setembro, de 0,2% sobre agosto, perfazendo um acumulado de 1,6% nos nove primeiros meses do ano. A recuperação é lenta e desigual, mas promissora. O resultado ficou algo aquém do esperado mas, o principal indicador a considerar é a recuperação do poder aquisitivo da população, pelo aumento da ocupação e queda da inflação (como apontado no corpo desta Coluna), fator que tende a empurrar a indústria nos próximos meses.

As microrrupturas institucionais - EVERARDO MACIEL, OESP

ESTADÃO - 02/11


Uma obra da engenharia civil, salvo em casos de imprevisíveis desastres naturais, não desmorona sem antes emitir sinais, que isoladamente podem nada significar, mas que, no conjunto, constituem evidências de algum comprometimento.

Por analogia, o tecido institucional brasileiro vem revelando disfunções que, conquanto não sinalizem uma indesejada ruptura, inviabilizam, no médio prazo, qualquer perspectiva de desenvolvimento e paz social. São as microrrupturas institucionais. Destaco alguns dessas disfunções.

A Constituição de 1988, por uma manobra política, afastou-se da pretensão originalmente parlamentarista para fixar-se no presidencialismo, sem dispensar, contudo, instrumentos próprios daquele regime, como a Medida Provisória, que findou sendo uma versão piorada do execrado Decreto-lei.

Os requisitos de relevância e urgência da Medida Provisória jamais foram verdadeiramente apreciados no Legislativo, exceto em raríssimos episódios com incidental motivação política.

Esse instituto desmotivou a iniciativa de projetos de lei no âmbito do Legislativo e ensejou, na aprovação dos projetos de lei de conversão, uma abjeta barganha para liberação das emendas parlamentares.

A essa disfunção juntou-se o ativismo judicial, que prospera em virtude da mora legislativa, como no disciplinamento da greve no setor público, e de princípios constitucionais demasiado abertos, sem regras que fixem sua aplicabilidade para casos concretos, como no acesso aos serviços públicos de saúde, cuja judicialização encerra, frequentemente, conflitos com o princípio universal da escassez.

O ativismo judicial aprimorou-se a ponto de dispor sobre normas regimentais do Legislativo, ainda que não raro estimulado por demandas dos parlamentares insatisfeitos com reveses em sua própria Casa.

Apenas para argumentar, qual seria a reação se a algum parlamentar ocorresse a insana ideia de, mediante lei, estabelecer regras aplicáveis aos regimentos do Judiciário?

São kafkianas as normas processuais aplicáveis à responsabilização do Presidente da República, nos crimes de responsabilidade e nas infrações penais comuns de que tratam os arts. 85 e 86 da Constituição.

O processo de impeachment da deposta Presidente Dilma foi uma tediosa e infindável sequência de julgamentos burocráticos, que beiravam o ridículo.

De igual forma, as acusações recentes contra o Presidente Temer revelam um poder desproporcional do Chefe do Ministério Público Federal, capaz de paralisar o País ao promover um patético julgamento político, com enormes e desnecessários custos para o País.

Acompanhando uma tendência mundial, acolhemos, na legislação pátria, instrumentos poderosos de combate à corrupção, com especial destaque para a colaboração premiada e para os acordos de leniência.

É certo que a colaboração premiada permitiu desmontar organizações criminosas enraizadas na administração pública brasileira, mas não se pode esquecer que é tão somente um instrumento de investigação.

Quando procedente a colaboração, a premiação deveria seguir parâmetros objetivos a serem aplicados pela Justiça, vedada qualquer possibilidade de “indulto”.

Lamentavelmente, ela é, quase sempre, acompanhada de vazamentos, autorizados ou não pela Justiça, confundindo a sociedade que a entende como prova.

Os vazamentos se inserem em um ambiente de espetacularização, que assume enredo de novela animada por uma mórbida alegria popular pela desgraça alheia (Schadenfreude, em alemão).

Quando a colaboração se revela ineficaz, por ausência de prova, transparece para a sociedade que houve impunidade.

Acordos de leniência, por sua vez, estão envoltos em furiosos conflitos corporativos, que comprometem seus objetivos. A pertinente legislação é malfeita e demanda revisão.

São muitas as microrrupturas institucionais. Em algum momento, é preciso dar curso a um preventivo processo de repactuação dos limites dos Poderes e dos instrumentos de combate à corrupção, sem receio das previsíveis e indevidas reações corporativas.