sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Lei de incentivo ao tráfico de drogas, opinião Estadão


RARAEL ABUJAMRA, ALUÍSIO ANTONIO MACIEL NETO - O ESTADO DE S.PAULO
28 Novembro 2014 | 02h 03

No dia 29 de outubro a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal aprovou duas propostas de alteração da Lei Antidrogas que causaram extrema preocupação no que concerne ao combate ao tráfico no País. São elas: 1) a criação de critério "quantidade de droga" para distinguir usuário e traficante; e 2) a ampliação da figura do "tráfico privilegiado", permitindo a redução de pena para traficantes com maus antecedentes, reincidentes e integrantes de organizações criminosas, ou flagrados com grandes quantidades de drogas.
Tais propostas seguem a mesma ideologia minimalista que tem influenciado a alteração das leis penais brasileiras nas últimas décadas. Desde o advento da Lei n.º 11.343/06, a política criminal empregada para o combate às drogas segue uma lógica inexplicável, prevendo cada vez mais benefícios para os traficantes.
Principal país latino-americano, o Brasil atingiu o posto de maior mercado consumidor na América do Sul e de dominante rota de tráfico para os demais continentes. Desde 2012 o Brasil já é considerado o maior mercado de crack do mundo e o segundo de cocaína (2.º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, Universidade Federal de São Paulo, 5/9/2012).
De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, o Brasil transformou-se na principal porta de saída de drogas para os demais continentes.
Contrariando o rigor da Constituição federal, uma "onda" liberalista impregnou as leis antidrogas, permitindo que traficantes respondam a processos em liberdade; mesmo quando condenados, recorram sem ser presos; recebam diminuição de suas penas em até dois terços e até substituição de penas privativas de liberdade por "penas alternativas", tais como prestações de serviços à comunidade, etc.
Nesse contexto, a primeira nova proposta pretende definir um critério objetivo de diferenciação entre usuários e traficantes. O projeto de lei presumirá ser usuário o cidadão que portar quantidade de drogas suficiente para consumo individual por cinco dias, baseado em recente pesquisa desenvolvida pela Fiocruz, que estipulou o padrão de uso diário de crack em 16 pedras (80 pedras em cinco dias) nas capitais e 11 pedras (55 pedras em cinco dias) nos demais municípios.
Para quem atua no combate ao tráfico de drogas, é certo que a proposta não trará nenhum efeito positivo para a sociedade honesta e trabalhadora. Isso porque baseada em equivocada filosofia de liberalismo penal, que tem um único objetivo: o esvaziamento do sistema carcerário.
Há tempos traficantes criaram novos "artifícios e estruturas criminais" para escapar da lei. O tráfico invadiu todos os municípios brasileiros e, valendo-se do uso torpe de crianças e adolescentes na linha de frente, seus agentes passaram a manter consigo apenas pequenas quantidades de drogas para venda, ocultando a maior quantidade em variados locais, dificultando assim, cada vez mais, a caracterização do tráfico quando de investigações e prisões policiais.
Ora, se essa é a realidade, será correto criar um limite dentro do qual "os mercadores do mal" poderão exercer sua mercancia ilícita sem serem incomodados? Ainda mais algo em torno de 80 pedras de crack? Será que o legislador sabe quanto valem 80 pedras de crack? Será que imagina que valem entre R$ 400 e R$ 800, ou seja, mais que um salário mínimo? Óbvio que não.
A Lei Antidrogas em vigor já confere os instrumentos para que o Poder Judiciário, com análise de cada caso concreto, possa efetuar a diferenciação necessária entre usuários e traficantes, tornando descabida a proposta de mudança legislativa, pois baseada em critérios presumidos e em questionáveis pesquisas de campo.
A segunda proposta amplia a causa de diminuição de pena - já existente desde 2006, por meio da qual desde que o traficante seja primário, de bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa, possa ser beneficiado com redução de até dois terços de sua pena - também para traficantes com maus antecedentes e até mesmo reincidentes e integrantes de organizações criminosas, ou presos com grandes quantidades de drogas, sepultando qualquer atuação efetiva de combate ao narcotráfico. O referido benefício somente provocou o fortalecimento do tráfico de drogas, isso porque os criminosos estão plenamente cientes da brandura penal, que atualmente nem sequer os mantém atrás das grades.
A sociedade precisa saber que as últimas alterações promovidas na legislação penal buscam compensar, com adoção do mais puro liberalismo equivocado, a ineficiência estatal no investimento em infraestrutura, na criação de mais vagas no sistema prisional e no combate à criminalidade. A conta da incompetência estatal é paga por toda a sociedade, muitas vezes com a própria vida de seus cidadãos.
As duas propostas estão na contramão das soluções pretendidas. Agravarão a epidemia de drogas existente e a destruição de diversos lares e famílias brasileiros.
É preciso retomar o combate efetivo ao narcotráfico, com leis e instrumentos que confiram maior repressão à circulação de drogas no seio social, evitando a "escravização criminosa" de milhares de jovens pelos traficantes.
É fundamental o abandono dessa política penal tolerante com o criminoso, antes que ela, no jargão popular, mate o doente por inanição. Ou pior, na hipótese e pelo que se avizinha, por overdose de drogas.
TAMBÉM ASSINAM ESTE ARTIGO FERNANDO HENRIQUE DE MORAES ARAÚJO, LUCIANO GOMES DE QUEIROZ COUTINHO, JOSÉ REINALDO GUIMARÃES CARNEIRO, TOMÁS BUSNARDO RAMADÁN, TIAGO DE TOLEDO RODRIGUES, SILVIO DE CILLO LEITE LOUBEH, MARCUS VINICIUS MONTEIRO DOS SANTOS, CÁSSIO ROBERTO CONSERINO E LUÍS CLÁUDIO DAVANSSO.
TODOS SÃO PROMOTORES DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Piketty: "A educação, sozinha, não reduz a desigualdade"

O economista francês disse, na USP, que são necessários impostos progressivos e boas política salariais para evitar a concentração excessiva

IVAN MARTINS
26/11/2014 19h19 - Atualizado em 27/11/2014 15h35
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O economista Thomas Piketty no debate realizado na Universidade de São Paulo (Foto: Rogério Cassimiro)

Thomas Piketty, o economista mais comentado da atualidade, disse na quarta-feira, dia 26, durante um debate na Faculdade de Economia e Administração da USP, que o investimento em educação sozinho não basta para reduzir a desigualdade de renda. "É preciso a ação combinada de um conjunto de fatores", disse o acadêmico francês, autor do livro O capital no século XXI, lançado no Brasil pela editora Intrínseca. "Além do acesso à educação, é importante ter um sistema de impostos progressivos e boas políticas salariais." Imposto progressivo é o que se propõe a cobrar mais de quem tem mais, como o Imposto de Renda brasileiro. Imposto regressivo é o que cobra mais, proporcionalmente, de quem tem menos, como o ICMS que incide sobre mercadorias e serviços. 
O economista francês usou o exemplo do Brasil para pedir mais transparência dos governos e acesso aos dados sobre tributos. Mostrou que os estudos da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), realizados com entrevistas em domicílio, mostram uma forte queda da desigualdade. Mas que outros estudos, feitos com dados da Receita Federal, mais difíceis de obter, sugerem que os 10% mais ricos concentram mais de 50% da renda nacional e que esse porcentual vem subindo acentuadamente, ao contráriodo que diz a PNAD. "Qual é a verdade?", disse Piketty. "A única maneira de descobrir é tendo acesso aos dados dos impostos coletados pelo governo". 
Piketty chegou ao Brasil na manhã da quarta-feira, vindo do França. Falou em inglês - com forte sotaque francês, pelo qual se desculpou - para um auditório lotado de estudantes, acadêmicos e jornalistas. Ao seu lado, como mediadores, estavam os economistas André Lara Resende e Paulo Guedes. O encontro, promovido pela editora Intrínseca e por ÉPOCA, foi coordenado pela professora Fernanda Estevan, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP. Durante 45 minutos, Piketty explicou a essência do seu livro: um estudo sobre o crescimento, renda e propriedade, que envolve 20 países e recua, em alguns casos, até 300 anos. Desse vasto e inédito painel, ele e seu grupo extraíram algumas conclusões.
A primeira é que a distribuição de riqueza e de renda, que havia melhorado acentuadamente entre o fim da Segunda Guerra e o final dos anos 1970, voltou a piorar depois disso. Atualmente, ela se encontra, nos Estados Unidos, em patamares semelhantes aos do final do século XIX, quando os 10% mais ricos da população detinham cerca de 50% da renda.
"Nessa situação, dois terços dos ganhos do crescimento econômico vão para os 10% mais ricos da população", afirma Piketty. "Isso contribui para a fragilidade do sistema social e financeiro."
A segunda conclusão do livro é que o movimento de concentração não será revertido espontaneamente. Piketty afirma que, nos EUA, as deficiência educacionais (que excluem os mais pobres das melhores universidades) e desvios nas formas de remuneração das empresas (que, nos altos escalões, são muitos elevados, sem guardar relação com o desempenho) explicam o aumento da desigualdade de renda.
A grande preocupação dele, entretanto, é com a concentração de riqueza, que se acentua por causa dos mecanismos financeiros de remuneração (que permitem que a fortuna de um bilionário cresça três ou quatro vezes mais rápido que o crescimento da economia) e da ausência de impostos progressivos sobre o capital financeiro e imobiliário. "Uma pessoa que tenha um apartamento em hipoteca paga o mesmo tipo de imposto que uma pessoa que tenha uma fortuna pessoal de centenas de milhões de dólares", diz Piketty.
Para evitar o retorno ao que ele chama de "sociedades patrimonialistas" do século XIX, que gozavam de baixo crescimento e ofereciam poucas oportunidades de ascensão pessoal, ele propõe a aplicação de impostos progressivos sobre a propriedade, a fortuna e as heranças em todos os países. Isso ajudaria, segundo ele, a evitar a concentração excessiva de privilégios, sem  prejudicar o crescimento. "Não precisamos da concentração de renda do século XIX para obter o crescimento no século XXI", diz Piketty.
Paulo Guedes, depois de fazer uma longa defesa da globalização e da redistribuição mundial de riqueza que ela provocou, sugeriu a Piketty que olhasse para a situação mundial do ponto de vista de um novo equilíbrio, e não apenas da perda de renda para a maior parte da população da Europa e dos Estados Unidos. Piketty, depois de elogiar os efeitos positivos da globalização, disse que eles "não justificam qualquer nível de desigualdade". Citou os exemplos da China e da Rússia, onde a desigualdade atingiu níveis que considera alarmantes e pode transformar-se numa grave questão crucial, sobretudo para os jovens.
Quando Lara Resende sugeriu que deveriam ser cobrados impostos sobre o consumo, e não sobre a fortuna, Piketty contou que Bill Gates, o fundador da Microsoft, disse a ele que gostou muito do seu livro, mas que não queria pagar mais impostos. Depois de uma gargalhada no auditório, ele prosseguiu. "Não se pode perguntar aos milionários de que forma eles querem contribuir", diz Piketty. Doar dinheiro a partidos políticos ou a fundações dirigidas por sua própria mulher não é o mesmo que consumo, mas talvez não sejam a melhor aplicação social da riqueza.
Piketty repetiu o que havia dito a ÉPOCA - que nada tem, filosoficamente, contra a desigualdade, desde que ela contribua para o bem comum, sobretudo melhorando a vida da parcela menos favorecida da sociedade. "Não queremos voltar a ser sociedades pobres e igualitárias, como a China dos anos 1970", diz ele. Piketty contou que se dedicou a estudar a desigualdade não por inclinação ideológica ou política, mas por ser uma área vital da economia desde o século XIX, à qual faltavam dados históricos confiáveis.
"Minha conclusão, depois de escrever o livro, é que tanto Marx, que previa a acumulação de riqueza infinita nas mãos de poucos, quanto Simon Kuznets, que previa a distribuição automática de renda pela evolução da economia, estavam errados", diz ele. "Há forças puxando na direção da acumulação e da distribuição. As instituições a nossas escolhas vão determinar qual delas prevalecerá"

Lixo produzido em universidade na Califórnia vira energia para campus

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28 de novembro de 2014

Por Heitor Shimizu, de Davis (EUA)
Agência FAPESP – A principal área de pesquisa de Ruihong Zhang, professora no Departamento de Engenharia Biológica e Agrícola da University of California, Davis, tenta resolver de uma só vez dois importantes problemas na atualidade: a falta de energia e o excesso de lixo.
Zhang e os cientistas do grupo que coordena estudam o uso de bactérias para transformar lixo orgânico – principalmente sobras de alimentos – em energia. Ela pesquisa o tema há quase 20 anos em busca de solução para uma questão que se resume em “como transformar o máximo possível de lixo orgânico em energia renovável”.
A pesquisa deixou de ser básica para ser aplicada quando, em abril deste ano, a UC Davis inaugurou uma usina de biodigestão de lixo a partir da pesquisa de Zhang.
A usina ganhou o nome de Digestor Anaeróbico de Energia Renovável da UC Davis – ou simplesmente Read, na sigla em inglês. O custo foi de US$ 8,5 milhões.
Instalado no antigo depósito de lixo da universidade, o Read usa uma tecnologia desenvolvida por Zhang e licenciada pela UC Davis para a CleanWorld, empresa formada por ex-alunos de Zhang e da universidade. No sistema, microrganismos em grandes tanques sem oxigênio consomem o lixo orgânico produzido no próprio campus e lá armazenado.
O sistema utiliza um processo no qual, por meio da fermentação, bactérias devoram o lixo e produzem metano e gás carbônico, ou seja, biogás.
A usina foi projetada para converter 50 toneladas de lixo em 12 mil quilowatts/hora de energia por dia. Além de produzir energia renovável, o Read livra a UC Davis de 20 mil toneladas de lixo por ano.
Os números são importantes, pois destacam uma vantagem na tecnologia desenvolvida por Zhang. O uso de digestores anaeróbicos para produzir energia é conhecido, mas a diferença nesse caso está na eficiência. Segundo a pesquisadora, o sistema utiliza variedade e quantidade muito maiores de lixo do que em modelos tradicionais.
Denominada HSAD (High Solids Anaerobic Digestion), a tecnologia é capaz de usar uma grande variedade de dejetos orgânicos, tem uma taxa de digestão rápida e elevada produção de energia.
“Também destrói patógenos presentes no lixo, resultando na produção de biofertilizantes”, disse a pesquisadora, que dirige o Centro de Pesquisa em Biogás na UC Davis. Durante a pesquisa de Zhang, uma usina piloto foi construída em 2004.
Por estar instalada em um antigo depósito de lixo, que produz naturalmente grande quantidade de metano, a usina também combina o biogás produzido por meio das bactérias com o metano do antigo lixão. O resultado é a capacidade de gerar 5,6 milhões de quilowatts/hora de energia.
Além disso, por transformar os gases em energia, a usina reduz em 13,5 mil toneladas por ano a emissão de gases causadores do efeito estufa. Tanto a energia produzida como os créditos de carbono ficam na UC Davis.
Para a produção de fertilizantes, o Read tem capacidade para gerar cerca de 15 milhões de litros por ano, suficiente para suprir a demanda de cerca de 600 mil metros quadrados de área cultivada.
“É preciso destacar que o sistema de biodigestão não é importante apenas por produzir energia ou fertilizantes, mas também por trazer uma utilização para o lixo que produzimos. Trata-se de uma tecnologia que permite que sejamos mais sustentáveis, tanto econômica como ambientalmente”, disse Zhang, uma das palestrantes da FAPESP Week California, realizada em dois campi da University of California (Berkeley e Davis) de 17 a 21 de novembro.
O evento contou com apoio do Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington.
Mais informações sobre a FAPESP Week California www.fapesp.br/week2014/california