domingo, 21 de julho de 2013

O fantasma da órfã - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O GLOBO - 21/07

A propalada truculência da presidente está virando folclore e em lugar de força, mais parece denunciar exasperação impotente



Atribuem ao presidente Kennedy a observação de que a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Melancólica verdade, sobretudo na política, que sempre a confirma sem perdão, bastando ver como as mãos políticas que hoje afagam são as mesmas que ontem apedrejavam e vice-versa. Em nosso caso, temos ainda uma tradição de adesismo por que zelar, bem como a prevalência do Sonho Brasileiro, que é descolar uma mamata vitalícia em algum lugar do governo ou do estado, porque aqui governo e estado são a mesma coisa. Entra um governo novo e declara “o estado é nosso e só faz o que nós queremos”. Isso torna impossível a realização do sonho sem que o sonhador abandone o inditoso derrotado e passe para o lado do futuroso vencedor. Suponho que devemos encarar essas coisas com compreensão e até caridade, pois o pessoal está apenas querendo sobreviver e subir na vida, é natural.

Vários outros princípios e paradigmas de conduta estão também envolvidos na questão, entre os quais sobressai o “farinha pouca, meu pirão primeiro”, farol ético que parece nortear nossa formação coletiva, tal o vigor com que se evidencia no comportamento de nossos governantes. Às vezes penso que a frase devia constar de algum emblema nacional, é muito injusto que não receba o reconhecimento merecido. No momento, a farinha ainda não está propriamente pouca, mas há sempre os previdentes, que não querem deixar seu pirão aos cuidados do acaso. Melhor tratar de farejar os ares e descortinar por onde anda a temível assombração da derrota, para ir-se afastando dela quanto antes. Não sei se já começou a debandada, mas acho que pelo menos há alguns sinais dela, difusos nos noticiários e comentários políticos.

O moral do governo não parece andar muito alto. O saco de gatos dos ministérios é um espetáculo triste, desanimado, desarvorado e sem aparentar saber muito para onde ir, ou o que fazer. Ninguém — arrisco-me a dizer que nem mesmo a presidente — é capaz de lembrar todos os ministérios e muito menos todos os ministros. Sabe-se que muitos destes se esgueiram obscuramente pelos corredores e salas dos fundos do poder, sem sequer terem a chance de dar um bom-dia à presidente, quanto mais de despachar alguma coisa. Fica aquela pasmaceira, interrompida por momentos de falatório vago e repetitivo, que não prenunciam nada de importante. E há, seguramente, ministros que, se perguntados de surpresa, não saberão bem o que fazem suas pastas, acrescido o pormenor de que vários ministérios, ou grande parte deles, não fazem nada mesmo, a não ser dar despesa.

A reação às manifestações de rua mostrou um esforço atarantado para manter a aparência de calma, equilíbrio e controle da situação, quando era visível que não havia nada disso e estava todo mundo de olho arregalado e sem saber o que dizer ou, pior ainda, fazer. Comentou-se em toda parte que, como já teria acontecido antes com frequência, a presidente peregrinou ao ex-presidente, para saber dele como agir, porque ela mesma não fazia ideia, o que vem sublinhando a imagem de despreparo e insegurança mal articulada que ela cada vez mais projeta. Ouvidos também os vizires do momento, saiu do Planalto uma voz chocha e pouco inspiradora, naquele tom de professora repetindo uma aula decorada a contragosto e sem nenhum entusiasmo ou até confiança, propondo absurdos, tentando espertezas quase amadorísticas e, em última análise, mostrando a incompetência do esquema que a rodeia.

A tal governabilidade, que tanto mal tem produzido, tão pouco bem tem causado e nunca funcionou direito, servindo basicamente para o intricado jogo das nomeações, colocações, favores e outros objetivos dos nossos homens públicos, está cada vez mais caindo pelas tabelas. Todo dia um cai fora, outro proclama dissidência e independência, formam-se alas e subalas, o rebuliço surdinado é grande. A turma da base aliada, que sempre deu trabalho e aporrinhação e nunca agiu pelos belos olhos da nação, começa a enxergar um governo fraco e a querer distância dele, ainda mais com as ruas pressionando. A corte continua lá, o ex-presidente continua lá, mas é de se acreditar que, de agora em diante, a solidão da presidente vai agravar-se.

A inflação está voltando e as negativas e bravatas das autoridades não convencem, diante da realidade dos preços. As declarações otimistas do ministro da Fazenda são recebidas quase com deboche. O crescimento é minguado, e a economia cambaleia cada vez mais e o governo caracteriza seu comportamento por ações meramente conjunturais e pontuais, respondendo de forma superficial e casuística aos problemas que aparecem. Os índices de popularidade da presidente desabaram e mesmo um antes improvável segundo turno nas eleições já está sendo previsto. Até uma surpreendente vaia de prefeitos ela tomou em Brasília. Tudo isso com certeza provoca inquietude na alma e comichões nos pés de quem quer ficar longe da órfã derrota.

Para completar o quadro, o governo não dispõe de um Big Bang para apresentar, no encerramento destes seus quatro anos. Nenhuma grande obra, nenhum grande passo, nenhum grande marco. Inflação subindo, PIB baixando, educação alarmante, saúde escangalhada, infraestrutura desmantelada, transporte urbano infernal, segurança pública impotente, estrutura fiscal pervertida, ferrovia Norte-Sul em descalabro, transposição do São Francisco roubada e sucateada — nada a apresentar, nada a trombetear, nada a comemorar. A propalada truculência da presidente está virando folclore e em lugar de força, mais parece denunciar exasperação impotente. Cara de derrota para o governo e ninguém vai querer ser o pai dela. Mas receio que não terão dificuldade em apontar a mãe.

Sobre o humanismo - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO


ESTADÃO - 21/07

Há quem diga que o único humanista autêntico é o canibal. Seu amor pela humanidade é o mesmo amor que temos por um bom bife, e é sincero. Já o humanismo, na sua forma não antropofágica, é mais difícil de classificar. O que é, afinal, um humanista? A própria palavra humanismo tem interpretações e conotações diferentes. No dicionário, ela é descrita como uma doutrina segundo a qual o ser humano é o criador dos seus próprios valores morais. O que não ajuda muito.

Melhor, ou mais simples, seria dizer que para um humanista o ser humano é, ou deve ser, a medida de todas as coisas, e assim como o sistema métrico que mede o mundo teve origem nas dimensões do corpo humano, todos os sistemas éticos e morais do mundo devem obedecer à primazia do humano. Ou seja: ser humanista é não reconhecer nenhum determinante metafísico, nenhuma interferência divina, no ser humano e nas suas circunstâncias.

Mas estas interpretações não cobrem todos os significados de “humanismo”. A própria história do humanismo é discutível. Sua origem seria na Renascença, quando as trevas da Idade Média retrocederam diante da redescoberta do mundo clássico e não só as pinturas e esculturas de Michelangelo, Leonardo e os outros glorificaram o corpo humano redescoberto como a glória da Grécia antiga, berço da democracia e da filosofia, também voltou à luz do dia depois da noite medieval.

Mas a arte da Renascença foi toda feita em louvor e com o subsídio da Igreja, seus temas predominantes eram os santos, os mártires e os mitos da Igreja e dificilmente se encontraria um humanista, mesmo camuflado, entre os seus praticantes. E antes de se exaltar a Grécia antiga como um ideal de virtudes cívicas e civilização, é bom não esquecer que aquela era uma sociedade escravocrata, também um mau exemplo de humanismo.

O humanismo autêntico seria então um subproduto do Iluminismo do século 18, e sua origem estaria no pensamento iconoclasta de alguns magníficos hereges como Voltaire, Diderot, Descartes, aquela turma. Mas até hoje se debate a ligação direta entre o Iluminismo e o terror que se seguiu a revolução francesa, e se a idade da razão não gerou um monstro em vez de uma sociedade iluminada. O mesmo pode-se dizer de Marx e dos outros filósofos dedicados a mudar o mundo e a História em vez de apenas entendê-los, e cuja generosa proposta de igualdade e fraternidade universal desaguou no totalitarismo e no terror stalinista.

O escritor e satirista Karl Kraus, talvez o mais vienense de todos os vienenses, escreveu certa vez que na Áustria, nos estertores do império austro-húngaro, estava acontecendo um ensaio do fim do mundo. Na verdade, o que tomava forma em Viena no começo do século 20 era um novo mundo. O colapso do império dos Habsburg coincidiu com duas novidades de certa forma opostas no espírito europeu e na História: o fascismo e a psicanálise. Dizem que a história do mundo teria sido outra se Hitler tivesse se tratado com seu contemporâneo e conterrâneo Freud, mas infelizmente o encontro nunca se deu.

Freud era um humanista, mas assim como suas teorias sobre patologia e neuroses coletivas nada fizeram para deter o pesadelo nazista que se iniciava, suas descobertas sobre o inconsciente humano em nada ajudaram o humanismo. Pois o que ele dizia era que o ser humano não devia sua existência e seu destino à interferência divina, mas era regido por forças imateriais, quase que por uma metafísica interna, que desconhecia tanto quanto desconhecia os desígnios de Deus. O ser humano não era a medida de todas as coisas. O ser humano, seus recônditos obscuros e os mistérios do seu ego, eram a medida de todas as coisas.

O que significa ser um humanista hoje? Ao contrário dos canibais, que sabem do que gostam, não temos muita certeza que a humanidade nos apeteça, depois de tudo que ela aprontou. Continuamos preferindo a lógica e a razão a qualquer tipo de superstição ou pensamento mágico, mas com a consciência de que cada vez mais humanos preferem o contrário.

A divisão entre ricos e pobres aumenta, uma superprodução de alimentos convive com a fome endêmica no mesmo planeta há anos, a intransigência e o fanatismo religioso conflagram regiões inteiras - tudo prova que o humanismo está longe das sedes do poder e dos princípios da maioria. E muito longe de ser uma doutrina viável, ou mesmo um sonho para um outro tempo.

A solução talvez seja o humanismo se reconciliar com a metafísica e pedir ajuda à providência divina, para não desaparecer.

Beatriz e os sans-cullotes


Boda por boda, a da Princesa dos Ônibus perdeu feio em simpatia para a da Noivinha da Pavuna

20 de julho de 2013 | 15h 42

Sérgio Augusto
Maio já foi, entre nós, o mês das noivas. Agora é dezembro, para tirar proveito do 13º salário. Fugindo ao lugar-comum, Beatriz Barata e Chiquinho Feitosa marcaram casamento para julho. Desprestigiado no calendário nupcial, julho é um mês mais adequado para revoluções e proclamações de independência, não para proclamas e matrimônios.
D. Baratinha pensou que achou um tostão, mas era uma manifestação - Luiz Roberto Lima/Estadão
Luiz Roberto Lima/Estadão
D. Baratinha pensou que achou um tostão, mas era uma manifestação
Abusando da originalidade ou da distração, Beatriz e Chiquinho programaram o casório para a véspera do 14 de julho. Como toda festa de casamento vai além da meia-noite, a do jovem casal começou na noite de sábado e terminou na madrugada de domingo, em pleno aniversário da Revolução Francesa. Tal coincidência seria irrelevante se Beatriz e Chiquinho não tivessem pais tão ricos, poderosos e visados. Não tão ricos quanto os Bourbons, mas o bastante para bancar uma boda de R$ 2 milhões.
No ranking das núpcias nababescas oficiadas no País, as de Beatriz e Chiquinho talvez não figurem entre as primeiras colocadas em luxo, originalidade, pompa e circunstância, mas nem se tivessem custado a metade ou um terço daquela dinheirama caberia agendá-las para um momento tão conturbado. Os Baratas e os Feitosas não são apenas bilionários, eles enriqueceram empalmando o serviço de transporte urbano, cujos descalabros foram o estopim da revolta popular que há semanas incendeia as ruas do Rio, São Paulo e outras capitais.
Jacob Barata, avô da noiva, não tirou na rifa o epíteto de "Rei dos Ônibus". Ao seu império de coletivos (20 empresas do ramo no Estado do Rio, mais concessões em outros seis Estados) anexou um banco, operadoras de turismo, hotéis, hospitais, imóveis, desde 1958 capitaneados por Jacob Barata Filho, pai de Beatriz. No Ceará os Baratas são sócios numa empresa de vale-transporte do pai do noivo, o ex-deputado federal pelo PSDB Francisco Feitosa.
Também prestigiada pela grã-finagem de Fortaleza, a bênção dos nubentes, na Igreja do Carmo, no centro do Rio, foi uma protofonia de ostentação, provocações e bate-bocas. Pais, noivos e padrinhos chegaram em reluzentes Mercedes com 22 multas vencidas em seu prontuário. Sob a proteção de PMs, convocados para manter a distância a centena de indignados que até lá acorreu para protestar contra o oligopólio dos transportes no Rio e tirar um sarro da "Dona Baratinha", apelido de instantânea adesividade pespegado em Beatriz Barata, a "Princesa dos Ônibus".
Princesa e, desde novembro de 2010, bacharel em direito. Sua monografia de graduação pela Fundação Getúlio Vargas, disponível na internet, é uma exaltação às empresas de transporte fluminenses ("que têm aprimorado cada vez mais seus serviços"), centrada nos ajustes supostamente feitos na viação Útil S.A. "para transformar positivamente a realidade, respeitando o meio ambiente, seus consumidores e as determinações do órgão regulador". Uau!
A "exemplar" viação Útil S.A. pertence ao Grupo Guanabara, da família Barata. Se fosse julgada pelos usuários dos ônibus que circulam no Rio e arredores, a monografia de Dona Baratinha levaria um rotundo zero. E ela seria apenas uma princesa herdeira ao cruzar o adro da igreja do Carmo, uma noivinha constrangida, que ainda mais acabrunhada ficou depois que alguns de seus convivas começaram a revidar, com aristocrático escárnio e debochada violência, aos insultos e gozações dos sans-culottes que à festança no hotel Copacabana Palace deram um certo ar de Versailles no 14 juillet de 1789. A mídia se regalou no dia seguinte, mas nada que fizesse sombra à cobertura das bodas de Leni Orsida Varela, a Noivinha da Pavuna.
Esse sim foi um casamento histórico, uma festa de arromba prestigiada por todas as classes sociais—e em cadeia nacional. Moça pobre, criada no modesto subúrbio carioca da Pavuna, na zona norte do Rio, Leni viveu em público uma história de contos de fadas. Sem dinheiro para comprar um vestido de noiva, apostou sua sorte numa gincana de conhecimentos animada por J. Silvestre no programa Show Sem Limite, da extinta TV Tupi, respondendo sobre a vida e a obra do poeta português Guerra Junqueiro.
Sabatinada ao longo de 14 semanas, Leni virou pop star. Assediada pelos fãs, a certa altura, nem mais de ônibus podia andar em paz, o que levou uma transportadora, muito possivelmente do império Barata, a conduzi-la de graça da Urca (onde ficava a TV Tupi) até a Pavuna. O coroamento dessa saga foi seu casamento diante das câmaras, em 15 de setembro de 1969, com J. Silvestre de padrinho e um coral sinfônico a entoar o samba Na Pavuna. Vestida com o cobiçado vestido de noiva que sua tenacidade conquistara, Leni foi assunto de todas as colunas sociais e até capa da revista O Cruzeiro. De presente ganhou uma casa, lua de mel na Europa e um samba de João Roberto Kelly.
Depois, a sorte virou. Leni perdeu tudo, até o marido. Formada em fisioterapia, casou de novo, mudou de vida, mas nunca deixou de ser fiel ao subúrbio de onde saiu para uma glória que o dinheiro não pode comprar.