domingo, 31 de março de 2013

Coluna do Elio Gaspari falando de Delfim Netto

Veio do professor Antonio Delfim Netto a boa resposta aos sábios que defendem uma freada na economia. Numa breve declaração à repórter Gabriela Valente, ele disse o seguinte:

—A empregada doméstica virou manicure ou foi trabalhar num call center. Agora, ela toma banho com sabonete Dove. A proposta desses “gênios” é fazer com que ela volte a usar sabão de coco aumentando os juros.

Aos 84 anos, com treze de ministério, durante os quais mandou na economia como ninguém, mais vinte de Câmara dos Deputados, Delfim diz que o Brasil vive um “processo civilizatório”. Graças ao restabelecimento do valor da moeda por Fernando Henrique Cardoso e ao foco social expandido por Lula, Pindorama passa por uma experiência semelhante à dos Estados Unidos durante o governo de Franklin Roosevelt. Em poucas palavras: ou tem capitalismo para todo mundo ou não tem para ninguém.

Ao tempo dos gênios, um ministro do Trabalho disse que o Brasil não tinha desemprego, mas gente sem condições de empregabilidade. Em 2002, havia no país seis milhões de desocupados. Entre eles, estivera o engenheiro Odil Garcez Filho. Em 1982, quando Delfim era ministro do Planejamento, ele fora demitido, decidiu abrir uma lanchonete na Avenida Paulista e a batizou de “O Engenheiro que virou Suco”. No vidro da caixa colou seu diploma. Garcez morreu em 2001 e não viveu uma época em que faltam engenheiros no mercado.

A doméstica que virou manicure da metáfora de Delfim Netto não tem identidade, mas é um contraponto ao Brasil de Garcez, de uma época em que os gênios viriam a atribuir a falta de absorventes femininos a um “aquecimento da demanda”, como se o Plano Cruzado tivesse interferido do ciclo biológico das mulheres. Com seu sabonete Dove, a manicure de Delfim entrou num mercado de higiene pessoal que em 2012 faturou mais R$ 30 bilhões.

O “processo civilizatório” incomoda. Empregada doméstica com hora extra e acesso à multa do FGTS, o sujeito de bermuda e chinelo no check-in do aeroporto, cotistas e bolsistas do ProUni na mesma faculdade do Junior são um estorvo para a ordem natural das coisas. Como o foram a jornada de oito horas, os nordestinos migrando para São Paulo e o voto do analfabeto.

Quando Roosevelt redesenhou a sociedade americana, a oposição republicana levou décadas para entender que estava diante de um fenômeno histórico. Descontando-se os oito anos em que o país foi presidido pelo general Eisenhower, ela só voltou verdadeiramente ao poder em 1968, com Richard Nixon, 36 anos depois.

Feliciano e as patrulhas de desordeiros

Quem viu os constrangimentos a que foi submetida a blogueira cubana Yoani Sánchez em sua passagem pelo Brasil deve um cumprimento ao pastor Marco Feliciano. Ele deu voz de prisão a dois manifestantes que integravam uma patrulha de desordeiros se manifestando dentro da sala em que presidia uma reunião da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Yoani Sánchez foi hostilizada em cinco cidades. Em Salvador, precisou de escolta policial e as patrulhas impediram a exibição de um documentário. Em São Paulo, foi obrigada a cancelar uma noite de autógrafos. Calar os outros no grito é falta de civilidade, mas tumultuar uma sessão de trabalho na Câmara dos Deputados é violação do regimento da Casa.

Admita-se que a presença de Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos é um contrassenso, mas ele não chegou à cadeira no grito. Está lá porque foi eleito com 211 mil votos e preside a comissão pelo voto de seus pares.

Manipulação

O Itamaraty informou que a viagem da doutora Dilma a Roma custou R$ 324 mil à Viúva.

Só se ela e sua comitiva foram a pé.

Faltou computar o custo do voo do AeroLula. Por baixo, mais R$ 120 mil.

Domésticas

Deirdre McCloskey é uma economista americana, ex-assistente de Milton Friedman, ao tempo em que ela era o professor Donald. Afora essa peculiaridade, publicou em 2011 o segundo volume de sua magnífica série de exaltação ao burguês. Chama-se “Bourgeois Dignity” e está na rede por por US$ 9,99.

Para quem se incomodou com a ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos brasileiros, vale a pena relembrar dois trechos.

Num ela verifica que as casas da classe média alta brasileira e sul-africana estão sempre limpas. É o serviço da mão de obra barata. E acrescenta:

“Se explorar gente pobre de cor fosse boa ideia, os brancos brasileiros e sul-africanos de hoje viveriam melhor que portugueses, alemães e holandeses que estão nos países onde viviam seus ancestrais”.

PetroPT

A queda da Bolsa poderá acelerar os ventos de mudança no aparelho que o comissariado instalou na Petrobras.

Mãozinha

A doutora Dilma não estaria satisfeita com o desempenho público da Comissão da Verdade.

Pode até ter razão, mas a bola está na sua quadra. Bastaria pedir aos comandantes militares que evitassem fornecer à Comissão informações indecifráveis.

Por exemplo: cadê os nomes dos oficiais que serviram regularmente nos DOIs? Pode-se desprezar aqueles que iam para lá num sistema de rodízio e ficavam poucos dias.

Golpe

Vai dar bolo um truque posto em prática pelas empreiteiras de grandes obras e serviços para a Copa do Mundo e a Olimpíada.

Os doutores contratam a obra, atrasam no prazo e avançam nos custos. Como os compromissos têm datas inflexíveis, vão às conhecidas autoridades e pedem contratos de emergência, sem licitação. Nessa hora, fazem a festa.

Por exemplo: em aeroportos saturados, já há gente querendo oferecer gatilhos emergenciais e provisórios. Se os atrasos fossem reconhecidos hoje, esse serviços poderiam ser contratados a preços de mercado. Em cima da hora, sairão pelo preço que a esperteza cobrar.

Chafurdemos

Chafurdando na notícia, o repórter Felipe Recondo descobriu que em 2012 aconteceram as seguintes gracinhas no Conselho Nacional de Justiça:

- Em 2012, o CNJ gastou mais de R$ 1 milhão com mudanças de servidores e juízes.

- A conta da Bolsa Moradia pulou de R$ 355 mil em 2008 para R$ 900 mil no ano passado.

- No mesmo período, as despesas com diárias de viagens quintuplicaram, chegando a R$ 5,2 milhões. As despesas com passagens (R$ 2,3 milhões) duplicaram.

Noves fora o fato de três ex-conselheiros se servirem de carros oficiais. (Na Corte Suprema dos Estados Unidos, só quem tem essa mordomia é o presidente da Corte, no exercício do cargo.)Há poucas semanas o ministro Joaquim Barbosa, que assumiu o CNJ em novembro passado e portanto nada teve a ver com isso, mandou Recondo “chafurdar no lixo, como você faz sempre”. Depois, desculpou-se, por intermédio de sua assessoria.

Chafurdemos todos.

Visita inevitável - MÍRIAM LEITÃO


O GLOBO - 31/03
Eu era menina ainda, mas já gostava de notícia. Grudei no rádio e fiquei ouvindo as informações da movimentação das tropas do general Olímpio Mourão Filho. O que eu não podia imaginar, por ser tão criança, é que aquele 31 de março era o começo de um tempo terrível que tiraria vidas da minha geração, produziria dor e obscurantismo, e que 49 anos depois ainda seria difícil revisitar.

Um professor americano me perguntou outro dia porque só agora o Brasil faz a sua Comissão da Verdade, já que a ditadura acabou em 1985. Eu respondi que o Brasil tem problemas de encarar seu passado, é meio atávico esse defeito. E que, de vez em quando, pintamos o cenário com outras cores para aceitar nossos erros, e daí decorrem teses como as da " mild slavery " (escravidão suave). Mas que, felizmente, estamos mexendo no que ficou congelado por um tempo excessivamente longo.

Na mesma semana me ligou Rosa Cardoso, que integra a Comissão da Verdade. E o que ela tinha a contar era muito. Naquele fim de semana (o último) haveria o encontro da Panair para ouvir, pela primeira vez em quase 50 anos, o que houve com a empresa que por perseguição política teve todas as rotas canceladas pelo governo e foi à falência. Ainda assim, os funcionários se reúnem frequentemente, vão com seus crachás para se reconhecerem tanto tempo depois. A empresa pagou todas as dívidas trabalhistas.

A Comissão da Verdade de São Paulo se preparava para ouvir - ouviu na semana passada - o depoimento de Inês Etienne dentro do capítulo de ditadura e gênero. Inês, que sobreviveu à Casa da Morte, tinha sido chamada, junto com outras pessoas, para falar das sevícias sexuais que atingiram tantas prisioneiras.

O corpo de João Goulart será exumado. Os especialistas ouvidos disseram que, talvez, os exames não sejam conclusivos, porque ele pode ter sido morto por um remédio que afeta o coração e que, tanto tempo depois, pode não ter deixado vestígios. A suspeita permanece.

Não há um único torturador que tenha passado um único dia na prisão pelo crime cometido, de tortura, morte e desaparecimento, como o do deputado Rubens Paiva, do estudante Alexandre Vanucchi, do líder Honestino Guimarães, do jovem Stuart Angel, do jornalista Vladimir Herzog, do operário Manoel Fiel Filho. São tantos. É difícil nomeá-los. Esquecê-los, impossível.

Ainda assim, os militares aposentados se reuniram nos seus clubes e acusaram quem hoje busca informações de ser "totalitário". Repetem a tese de ter havido dois lados. Pois é. Um lado era a juventude encurralada. O outro, o Estado com o poder exercido de forma ilegítima pelos militares, usando a sua força contra quem ousou discordar.

A Comissão da Verdade se descentralizou, outras vão se formando para investigar os vários eventos desse tempo que prometeu ser breve e se prolongou por 21 anos. O que fazer com as instalações onde pessoas sofreram e heróis perderam a vida? O antigo Dops do Rio é hoje o Museu da Polícia. Cheio de armas dos vários tempos. Impossível conviver com um memorial de presos políticos que deveria ter. O antigo DOI-Codi funcionava no quartel da Polícia do Exército na Barão de Mesquita, na Tijuca. Lá morreu Rubens Paiva, lá inúmeras pessoas foram torturadas, como Arthur Poerner, que narrou o que viveu num livro com o sugestivo nome de "Nas profundezas do inferno". Angel foi morto na Base Aérea do Galeão. A tortura foi disseminada, foram muitos os locais de sofrimento.

O passado deve passar. Eu, hoje, avó de meus netos, sei quanto tempo me distancia da menina grudada ao rádio em Caratinga naquele 31 de março. Mas minha convicção profunda é que, antes, é preciso cumprir o ritual da dolorosa visita ao passado

Um mistério na selva - EDILSON MARTINS



O GLOBO - 31/03
A Comissão Nacional da Verdade tem, desde outubro último, um abacaxi graúdo para descascar. O Exército está sendo acusado de ter eliminado 2 mil índios da nação waimiri-atroari, no Amazonas.

A Comissão tem um relatório com documentos, organizado pelo Comitê da Verdade, do Amazonas, com relatos de índios, militares, funcionários da Funai, entre outros testemunhos. Eliminar inimigos de ditaduras, militares ou civis, os chamados subversivos e terroristas, nunca foi novidade, mas exterminar índios em estado de cultura pura, caso proceda a denúncia, é um novo paradigma na história do país.

A psicanalista Maria Rita Kehl, da Comissão da Verdade e indicada para apurar a questão, revelou ao repórter Guilherme Balza, do portal UOL, que "os indígenas não estavam resistindo no sentido político, já que não sabiam exatamente o que era uma ditadura. A resistência era no sentido de garantir suas terras".

A pergunta é: o que fizeram para sofrer essa violência? Estávamos em pleno governo militar e as terras desses índios ficavam na conexão do Brasil com o Caribe. Uma rodovia ligando o Amazonas a Caracas (Venezuela) precisava ser construída.

E mais: o governo decidiu construir uma hidrelétrica (Balbina), inundando mais da metade das terras indígenas. Essa barragem foi um dos maiores desastres ecológicos em todo o século XX, destruindo fauna e flora.

Balbina inundou uma área equivalente à cidade de São Paulo, produz 35 vezes menos energia do que Tucuruí e seu lago é maior que o dessa hidrelétrica. Os confrontos com castanheiros e tropas da PM já aconteciam, mas os índios sobreviveram. No enfrentamento com as tropas do Exército, durante a construção da BR-174 nos anos 70, eles perderam.

Se a Comissão ratificar a denúncia, o número de vítimas da ditadura, hoje na ordem de 457, vai assustar o país. Os índios Parwé e Wamé recordam o lançamento de bombas, naqueles anos, incendiando suas aldeias, não ficando vivo ninguém próximo. No início do século XX, eles viviam a 50 km de Manaus. Foram empurrados pelas frentes (BR-174, Balbina). Hoje algumas aldeias distam até 400 km da capital.

Há um relatório assinado pelo general Gentil Paes, produzido em parceria com a Funai, à época subordinada ao Exército, determinando "demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite". Corria o ano de 1974.

Outro general, Altino Berthier, num livro de memórias compara as ações militares às dos alemães na II Guerra. "Tive o privilégio de perceber, sentir e registrar os efeitos daquela blitzkrieg (tática dos nazistas) sobre território desconhecido, enxotando um povo perplexo, que reagia violentamente ante a desestruturação de sua célula familiar e de seu universo telúrico."

Confirmada a acusação, a memória de Cândido Rondon terá sido arranhada. O Exército de Caxias e de Deodoro, que sempre se orgulhou de não ter reproduzido o que fizeram as tropas americanas na conquista do Oeste, sairia maculado. Rondon, ele próprio descendente dos bororo, militar que integrou o Brasil com a implantação das linhas de telégrafo no século passado, na relação com essas culturas, cultivava a máxima; "Morrer, se preciso for; matar nunca."

Apesar da diáspora, sobreviveram e exibem uma das mais bem-sucedidas experiências com o mundo civilizado, mas lutam contra a aculturação. Desenvolveram a própria escrita, estudam português e matemática, e só; o resto é o aprofundamento da cultura walmiri-atroari. Em seu território inexistem armas de fogo, não se mata um animal selvagem e não se derruba uma árvore sem justas razões. É uma experiência única no país.