domingo, 30 de setembro de 2012

Procuram-se virgens

Oesp Alias, 30 set 2012

DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNB, PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO - O Estado de S.Paulo
Um leilão de virgens em território global. Foi nesse cenário que Catarina Migliorini, catarinense de 20 anos, se lançou: o espetáculo de ser uma virgem leiloada para um documentário dirigido por um australiano. Já foram feitos 13 lances, o mais alto de US$ 160 mil, oferecido por Jack Miller, americano ainda desconhecido. Catarina será desvirginada em um voo da Austrália para os EUA, estratégia para burlar leis locais que restringem a prostituição ou o comércio do sexo. O site "procuram-se virgens" lista as regras da penetração: brinquedos eróticos e beijos são proibidos; não pode haver filmagem ou audiência; o tempo mínimo de consumo da virgem será de uma hora. O leilão atiça a curiosidade sobre o filme, cujo enredo está a meio caminho de um documentário, reality show e pornografia.
Alexander é o virgem em leilão. Catarina comprovará sua virgindade por exames ginecológicos, mercadoria mais difícil de ser demonstrada no corpo de Alexander. Por isso a aposta nas imagens e na história de vida do rapaz: um tipo tímido que não olha para a câmera, quem sabe um solitário à procura da proteção de uma mulher madura. Sua virgindade vem sendo pouco cobiçada - o lance mais alto foi de US$ 1.200, oferecido por uma australiana. O diretor tentou não ser óbvio no espetáculo do sexo ao incluir um virgem no enredo, mas a audiência resiste à igualdade na exploração sexual de homens e mulheres: Catarina é a mercadoria em disputa e certamente será a protagonista do filme. Alexander, um coadjuvante. Sua utilidade é aliviar a barra com as feministas críticas do comércio do sexo, caso da jurista americana Catharine MacKinnon, para quem a prostituição e a pornografia são danosas às mulheres.
Não sou uma seguidora de MacKinnon na perseguição à pornografia ou à prostituição - desconfio de sua tese de que homens que veem filmes pornográficos violentos buscam reproduzir suas fantasias no corpo de outras mulheres, ou mesmo que proibir o comércio do sexo protege as mulheres da exploração sexual. Mas há algo de inquietante na disputa por Catarina que ressoa da ordem moral em que o sexo das mulheres é uma propriedade masculina. Afinal, o que querem os homens ao leiloar uma virgem? Reanimar o tabu do sexo. Há mulheres em abundância dispostas, por prazer, dinheiro, ou ambos, a manter relações sexuais com homens. Muitas são virgens. O filme nos transforma em audiência de um jogo que não desafia a moral hegemônica; ao contrário, brinca com suas normas.
Uma prostituta é uma mulher disponível no mercado. Uma virgem é uma mulher à espera de um homem. A prostituta é a mulher da rua; a virgem, a da casa. O filme mistura os papéis, joga com as fantasias sexuais: a virgem é, agora, uma prostituta, a mulher que será penetrada em um espetáculo global, mas que não será visto. A câmera acompanhará o casal até a entrada do avião e a cena de sexo será apenas imaginada, como a que ocorre com as virgens na noite de núpcias. Seremos voyeurs de uma mulher que vende seu sexo como em um filme pornográfico, mas o tom documental da história a manterá na redoma protegida das virgens.
O tabu do sexo perturba não apenas nossa moral, mas o estatuto narrativo dos filmes. Por isso há algo de político nesse documentário. MacKinnon persegue os filmes pornográficos porque considera que as cenas de sexo são reais: uma mulher violada em um filme pornográfico é, de fato, uma mulher violada. Catarina será desvirginada - haverá um antes e um depois em seu corpo, segundo as perícias médicas. Mas ela reclama para si o estatuto profissional de atriz e não de prostituta: é uma atriz que venderá sua imagem e seu hímen para um documentário sobre como o tabu do sexo movimenta mercados e audiências.

O injustiçado videogame

OESP, Aliás 30 set 2012
LIDIA GOLDENSTEIN É ECONOMISTA; COLABORARAM TEREZA PEREZ, SANDRA GARCIA E HOMARO LIMA - O Estado de S.Paulo
LIDIA GOLDENSTEIN
O avanço da tecnologia digital vem causando impactos radicais nos processos de produção, distribuição e consumo, consolidando um novo paradigma produtivo que afeta cidades e empresas de todos os tipos e tamanhos, nos mais diferentes setores, tecnológicos ou não, nas mais diferentes economias.
A diferença em relação a outras grandes transformações pelas quais a humanidade já passou não é só a velocidade e intensidade do processo atual. As novas tecnologias vêm permitindo a queda de preços no lado da oferta e gerando consumidores mais ricos, diversificados e sofisticados que sustentam a demanda por bens e serviços de maior valor agregado. E essa agregação de valor é crescentemente determinada pelos investimentos em ativos baseados no conhecimento, os chamados intangíveis: pesquisa e desenvolvimento, design, software, capital humano e organizacional e marcas.
São transformações que impactam não só a forma e locais de produção de "velhos" setores como permitem o surgimento de novos, como o de games, cujo mercado mundial movimentou US$ 56 bilhões em 2010, enquanto o de cinema foi de US$ 31,8 bilhões. Em 2011 o setor movimentou US$ 74 bilhões, e as previsões são de US$82 bilhões em 2015. No Brasil, um dos mercados que mais cresceram nos últimos anos, e visto como um dos com maior potencial, estima-se que já esteja perto de US$ 3 bilhões.
Apesar de ser uma das indústrias que mais crescem, já superando os mercados de filmes e música, os videogames ainda sofrem preconceito, vistos como atividade restrita a jovens que perdem horas de estudo com games violentos. Essa percepção, especialmente por parte de pais, compromete uma avaliação do potencial dos games como setor econômico e ferramenta educacional.
Na verdade, não só os games não são mais exclusivos dos jovens, incluindo crianças, idosos e mulheres no seu mercado, como o setor é portador de uma capacidade de inovar-se continuamente, contribuindo para a inovação do conjunto da economia. Englobando um complexo de atividades criativas e/ou vinculadas às novas tecnologias, vem gerando novos produtos e serviços, processos produtivos e distributivos, que "transbordam" para atividades em outras empresas e organizações dentro e fora do setor, em especial na educação, em pesquisas científicas, treinamento de profissionais corporativos, escolha e desenvolvimento de vocações, construção civil e arquitetura.
Avanços tecnológicos recentes têm contribuído para mudar a indústria de games, seus modelos de negócios, sua audiência e sua visibilidade. A ampliação do poder de processamento dos hardwares e da capacidade gráfica, a expansão da internet e da banda larga móvel permitiram o surgimento de jogos online, interconectando pessoas no mundo todo e incorporando milhões de jogadores de diferentes perfis etários e sociais. Abriu-se espaço para desenvolvedores independentes e pequenas empresas que não dependem mais de capacidade de distribuição física de seus jogos, distribuindo-os virtualmente. Muitos games estão deixando de ser um produto para se tornarem um serviço.
Assim como outros setores das indústrias criativas, a indústria de games necessita de mão de obra altamente sofisticada, multidisciplinar, que combine o conhecimento em ciências, tecnologia, engenharia, física, matemática e artes, o que exige um sistema educacional completamente diferente, que inclua a fusão dos conhecimentos.
E é exatamente por seu uso crescente como recurso pedagógico privilegiado para o desenvolvimento de habilidades e para a construção do conhecimento que o jogo tem sido um dos caminhos para a inovação do sistema educacional, adequando-o às necessidades do novo paradigma produtivo.
Os jogos, quando bem utilizados, especialmente com uma mediação eficaz, ajudam na aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades cognitivas, emocionais, sociais e éticas: raciocínio, resolução de problemas, orientação espaço-temporal, perspicácia, criatividade, autoconhecimento, autodisciplina, autoconfiança, autodeterminação, autoestima, iniciativa, autonomia, segurança, responsabilidades, limites, controle da impulsividade, desenvolvimento psicomotor, linguagem, sentimento de competência. O jogo propicia liberdade de ação, o que implica sujeito ativo, interativo e inventivo. Por meio dos jogos é possível trabalhar em equipe, ter atitude pesquisadora, cooperar, planejar e tomar decisões, refletindo na melhora do desempenho escolar e no relacionamento entre colegas, pais e professores.
Diversas pesquisas indicam que jogar contribui de forma prazerosa para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional. As regras são normas reguladoras e necessariamente respeitadas no processo de interação; caso contrário o contrato ético e moral é rompido imediatamente e o jogo termina. Jogar envolve uma carga emocional significativa, como atacar, cuidar, proteger, controlar, disfarçar, respeitar, desejar. Esses aspectos emocionais interagem por meio do planejamento da sequência de cada jogada e entre jogadas, o fazer antes, durante e depois.
Quando o jogo é inserido no currículo escolar, seu papel ultrapassa as fronteiras do jogar e assume significados amplos. O pensar sobre o jogar permite tomar consciência dos conhecimentos e competências que estão "em jogo". O professor, ao propor o jogo, tem que abandonar o papel de solucionador em favor de um papel de "problematizador", atuando como orientador, mediador, perguntador. No jogo, o professor não pode fazer pelo aluno, pois se o fizer acaba com a graça do jogo. Cabe ao professor mediar essa relação, respeitando o processo de aprendizagem de cada um, valorizando o conhecimento do aluno e a criação de melhores possibilidades de aprendizagem.
Pensar estratégias de longo prazo para a economia brasileira, que abram espaço para o surgimento/fortalecimento de novos setores e novas tecnologias, líderes na geração de renda e emprego no novo paradigma produtivo, só será possível se pensarmos junto uma nova abordagem educacional.

Encruzilhada metropolitana


MARISA SALLES, SÓCIA DA BEI EDITORA; É FUNDADORA, CONSELHEIRA EXECUTIVA DO ARQ.FUTURO - O Estado de S.Paulo
MARISA SALLES, in Aliás
Como conduzir projetos transformadores em metrópoles às voltas com os efeitos do crescimento desordenado? Mais especificamente: o que deve ser feito para superar os entraves que se colocam à renovação estrutural necessária em São Paulo? Essas foram, de maneira sintética, as questões que pautaram os encontros do Arq.Futuro, realizado nos dias 24 e 25 de setembro. As perguntas refletem o processo de amadurecimento percorrido pelo evento: na primeira edição, trouxemos a São Paulo grandes arquitetos que apresentaram suas ideias e obras; na segunda, ocorrida no Rio de Janeiro, convidamos também economistas e urbanistas, que ampliaram o debate de maneira a incluir questões relativas às cidades. Esse tema foi aprofundado nessa terceira edição, que buscou focalizar mais detalhadamente os desafios da organização urbana, propondo temas de grande relevância não apenas para especialistas ligados à arquitetura, mas para todos os cidadãos. Alcançamos, assim, o objetivo que nos havíamos proposto quando idealizamos esse projeto: discutir arquitetura não apenas como expressão artística, mas como elemento de transformação social.
Sob o tema geral de "A Metrópole na Encruzilhada: o Futuro de Caos ou Ordem das Megacidades", propusemos três subtemas: "Tecnologia e Futuro das Cidades", "Espaços Públicos e Centros de Cultura e Lazer" e "Habitação Social e Projetos Imobiliários". A partir daí, desdobraram-se discussões sobre diferentes aspectos relacionados às metrópoles contemporâneas, tais como a recuperação de espaços urbanos degradados, o papel desempenhado pelas novas tecnologias, as soluções para o transporte público e a mobilidade urbana, a criação de habitações sociais de qualidade. A ideia era falar das grandes cidades de forma geral, relacionando as várias experiências à realidade de São Paulo. Para isso reunimos arquitetos de diferentes nacionalidades, como os americanos Tod Williams e Billie Tsien (autores de importantes projetos de museus e instituições públicas) e Thaddeus Pawlowski (responsável por projetos de infraestrutura de larga escala de Nova York), o italiano Carlo Ratti (arquiteto, engenheiro e professor do MIT) e o chileno Alejandro Aravena (conhecido por seus inovadores projetos de habitação social), além de brasileiros conhecidos tanto por seus projetos quanto por sua atuação acadêmica, como Isay Weinfeld, Ângelo Bucci e Fernando Mello e Franco. Otávio Zarvos, incorporador, trouxe a visão do empresário ligado às construtoras. Participaram ainda André Correa do Lago, crítico de arquitetura e design, Karen Stein, escritora e crítica de arquitetura, e Philip Yang, fundador do Instituto Urbem.
Além das palestras e discussões no Auditório Ibirapuera, o Arq.Futuro organizou um encontro no Instituto Insper entre empresários e dois dos candidatos à Prefeitura de São Paulo. Foi significativo que Fernando Haddad e José Serra (Celso Russomanno, também convidado, não compareceu), às vésperas da eleição, abrissem espaço em suas agendas para apresentar seus projetos para São Paulo: evidencia-se o reconhecimento por parte do setor político de que é urgente pensar a cidade. Essa sensação de urgência era compartilhada pela plateia, na qual estavam industriais, banqueiros, construtores, incorporadores, administradores de shoppings, acadêmicos e jornalistas - pluralidade que sublinha a importância crescente que a reflexão urbanística vem tomando.
A apresentação dos candidatos foi seguida por uma conversa entre Alejandro Aravena, Thaddeus Pawlowski, André Corrêa do Lago, Philip Yang, o urbanista carioca Sérgio Magalhães e Cláudio Haddad, economista e diretor do Insper. Os projetos dos candidatos foram analisados criticamente, assim como a forma de atuação de diversos segmentos ali representados. Apesar disso, ou por causa disso, havia um sentimento comum de interesse, de entusiasmo pela organização de um fórum de debate profundo e isento.
A grande contribuição dos encontros, acreditamos, esteve no debate de ideias. Não houve conclusões ou respostas únicas às grandes interrogações impostas pela metrópole. Um dos pontos de consenso foi a necessidade de adensar a cidade, de trazer seus moradores para as zonas centrais, reduzindo a necessidade dos longos deslocamentos, aproveitando as oportunidades de emprego e serviços, criando zonas mistas habitadas por pessoas de todas as classes sociais. Vale lembrar que isso só será possível se for revista a legislação municipal, que atualmente - e esse é outro ponto de concordância - engessa e impossibilita qualquer ação de relevância urbanística.
A questão crucial da mobilidade centralizou-se na dicotomia entre ônibus e metrô; vimos os palestrantes dividirem-se entre priorizar os investimentos em linhas de metrô ou de ônibus, levantando-se benefícios de uma ou outra opção. Os ônibus, embora de custo mais baixo, produzem rupturas no tecido urbano, gerando não apenas maior segmentação social e espacial, mas também prejuízos estéticos; o metrô, por seu lado, exige investimentos maiores, mas ajuda a conter a expansão territorial da cidade e apresenta capacidade de transporte superior à do ônibus. Entre o transporte sobre pneus ou sobre trilhos, destacou-se o estímulo ao uso de bicicletas. A esse propósito, sugeriu-se que as vagas de estacionamento ao longo das calçadas fossem suprimidas de maneira a conseguir-se alargar o passeio e construir ciclovias; os carros poderiam ser guardados em edifícios-garagem construídos e explorados pela iniciativa privada em terrenos desapropriados pela Prefeitura.
A reflexão sobre qualidade de vida na cidade desemboca na segurança pública. Houve uma compreensão generalizada de que uma cidade plural, que ofereça espaços  públicos mais generosos e qualificados e zonas em que se misturem residências, serviços e comércio, será uma cidade mais segura.
Um elemento que atravessa as discussões sobre São Paulo é o desenvolvimento econômico. A metrópole gera 20% do PIB brasileiro, e a resolução de seus problemas é de interesse nacional: "Se a cidade descarrilha, o Brasil descarrilha também", disse um dos participantes. O fato é que a cidade precisa encontrar sua vocação neste momento de transição para uma etapa pós-industrial. Na década de 1990, houve um enorme esforço conjunto para que Nova York recuperasse seu lugar como polo de dinamismo e influência. São Paulo vive agora um momento semelhante - e novamente foi consenso que, se juntarmos nossos esforços com o mesmo objetivo de transformação, sairemos também vitoriosos desse processo.
O Arq.Futuro deixou claro que há muitas ideias e muita vontade de colocá-las em prática. Ele mostrou que as transformações resultam de um processo contínuo de aprendizagem, e só serão efetivas se puderem se consolidar ao longo do tempo, em projetos de longa duração, não em propostas válidas apenas pelos quatro anos de um mandato. Sobretudo, elas só ocorrerão se todos os segmentos da sociedade estiverem determinados a assumir sua responsabilidade nessa construção, discutindo as mudanças necessárias na legislação municipal, acompanhando as decisões tomadas pelos governantes, exigindo o cumprimento de compromissos assumidos - fazendo, enfim, pleno uso de sua cidadania.