terça-feira, 20 de março de 2012

Contardo Calligaris - Micróbios dominadores


Os micróbios que vivem no nosso corpo podem influenciar nosso comportamento 


Em 2010, nos "Annals of Epidemiology" (http://migre.me/8ftEa), li uma pesquisa que achei inquietante: ela confirmava uma dúvida que me assombrara por um bom tempo, a partir dos meus oito anos. 
Com essa idade, aprendi que, mesmo sem estarmos doentes, somos habitados por bactérias, vírus, parasitas e fungos, que prosperam dentro de nosso organismo.

E me interroguei: esses micróbios, além de fazerem (eventualmente) com que a gente adoeça, não estariam dentro de nós como pilotos numa imensa espaçonave? Apesar de acreditarmos em nossa autonomia, quem sabe eles não estejam, de fato, no volante de nossa vida?

Justamente, os autores da pesquisa, Chris Reiber, J. Moore e outros, queriam saber se um vírus pode mandar em nós -não só alterar nosso humor, mas realmente influenciar nosso comportamento. 
Eles descobriram que os infectados pelo vírus da gripe, durante o período da incubação (em que são contagiosos, mas não apresentam sintomas), tornam-se especialmente sociáveis. Em outras palavras, os infectados parecem agir no interesse do vírus, que é o de contagiar o máximo possível.

Claro, não é que os micróbios se sirvam da gente para levar a cabo um "plano" maquiavélico. Mas se entende, com Darwin, que um vírus que nos torne sociáveis durante a incubação só pode se dar bem na seleção natural, pois ele se espalhará facilmente. Ou seja, os micróbios mais eficientes seriam os que conseguem nos usar em seu interesse próprio, os que nos transformam em seus súcubos. 
O que sobraria de nossa "autonomia" se todos os micróbios enquistados no nosso organismo influenciassem (silenciosamente) nossos pensamento e comportamento?

Kathleen McAuliffe, na "The Atlantic" de março (http://migre.me/8fwvb), conta a história de Jaroslav Flegr, um cientista que, há 20 anos, pretende que um parasita, o Toxoplasma gondii, manipule e transforme os que ele infecta.

O hospedeiro definitivo do Toxoplasma gondii é o gato, em cujo corpo o parasita se reproduz sexualmente. Seu hospedeiro intermediário típico é o rato, que se infecta ao ingerir o Toxoplasma (direta ou indiretamente) nas fezes do gato e, logo, ao ser comido por um felino, leva o parasita de volta para seu hospedeiro definitivo.

Agora, o Toxoplasma pode infectar qualquer mamífero, enquistando-se no tecido muscular e no cérebro. Nos humanos, ele é presente em 55% dos franceses (comedores de carne crua -claro, de boi infectado) e em 10 a 20% dos norte-americanos. Em tese, pouco importa, pois o Toxoplasma só seria perigoso na gravidez, quando produz malformações fetais. Mas será que esse é seu único efeito?

Há mais de uma década, descobriu-se que o Toxoplasma altera o comportamento dos ratos infectados, tornando-os atrevidos e fãs do cheiro da urina de gato (de que normalmente eles fugiriam). Ou seja, o Toxoplasma transforma o rato numa presa mais fácil para o gato, no estômago do qual o parasita quer acabar sua viagem.

Outra surpresa. Nos ratos (e só neles), o parasita pode ser transmitido por via sexual; ora, verifica-se que os ratos machos infectados são inexplicavelmente mais desejáveis aos olhos das fêmeas. 
Um parasita capaz de influenciar o cérebro do rato, seu hospedeiro intermediário preferido, não teria efeito algum quando se instala no nosso cérebro?

Para começar, o Toxoplasma parece produzir em nós alguns efeitos parecidos com os que ele produz nos ratos: por exemplo, muitos humanos infectados passam a achar agradável o cheiro da urina de gato. Nada dramático: a gente é raramente comido por gatos (mas resta a pergunta: se você adora gatos, é porque gosta mesmo ou porque carrega o Toxoplasma gondii no seu cérebro?).

Há mais: a presença do Toxoplasma gondii no cérebro alavanca a produção de dopamina, um neurotransmissor cujo excesso é um dos fatores no conjunto de causas possíveis da esquizofrenia (http://migre.me/8fxYX). 

Enfim, o fato é que estamos começando a descobrir que os micróbios aparentemente inócuos que vivem no nosso corpo podem influenciar nosso comportamento. 
Não acredito que sejamos os títeres de germes, parasitas, fungos e vírus, mas, certamente, o ambiente que nos constitui e determina não é só o das interações com nossos semelhantes. É também o de interações misteriosas com seres que sequer enxergamos. Inquietante, hein?

ccalligari@uol.com.br
@ccalligaris

Luiz Felipe Pondé - A síndrome de Schmidt


Apesar das modas, as mulheres temem a subjetividade masculina como o diabo teme a cruz


Não, não se trata de uma doença nova, caro leitor. Apenas de um filme cujo título é "As Confissões de Schmidt", do diretor Alexander Payne, o mesmo de "Os Descendentes", que concorreu ao Oscar neste ano, mas muito melhor do que esse.

Para começar, Schmidt é Jack Nicholson, o que já garante metade do filme. Mas o filme vai muito
além desse grande ator.

Síndrome de Schmidt, nome que eu inventei, descreve o quadro de total melancolia em que se encontra o personagem central, um homem de 60 anos, após a aposentadoria e morte repentina da sua mulher. Mas qual é o diagnóstico diferencial com relação a outras formas de melancolia? Vejamos.
O filme abre com um discurso de um colega em sua homenagem, quando Schmidt se aposenta da companhia de seguros em que trabalhou a vida inteira (no caso, companhia de seguros carrega todo o peso de viver para ter uma vida segura).

Logo após a morte da sua mulher, ele descobrirá que ela fora amante do colega que discursou em sua homenagem em sua cerimônia de despedida da "firma". A cena da descoberta é feita com requintes de crueldade, porque Schmidt está imerso nas roupas da mulher morta, buscando sentir seu "doce aroma" e assim matar a saudade que sente dela.

Schmidt tem uma filha que casará com um sujeito horroroso, de uma família brega que se julga especial: você conhece coisa pior do que festa de Natal em família? Sim: uma festa de Natal em família em que os presentes são frutos da criatividade ridícula dessa família, como no caso da família do genro de Schmidt.
Schmidt fazia xixi sentado como menina porque sua mulher o proibia de fazer xixi como menino, a fim de não sujar o banheiro.

Esse é sintoma diferencial da síndrome de Schmidt: esmagar-se (mesmo sua fisiologia) para deixar tudo em seu lugar, sem conflitos, amar a paz e o bom convívio em detrimento de si mesmo. No caso
específico, não há "questão de gênero" (já que banheiros estão na moda nesse assunto, vale salientar que aqui não é o caso).

Primeiro porque eu não acredito em questões de gênero, só em questões de sexo. Depois, porque não se trata de falarmos em homens vítimas da opressão feminina (ainda que se trate de alguma "opressão" nesse caso, já que, afinal, sua mulher o obrigava a fazer xixi como menina e o traiu), mas sim de falarmos de alguém que descobre que sua vida foi e é vazia, apesar de ter sido um pai e esposo dedicado, e não um desses canalhas que saem com mulheres fáceis por aí.

A síndrome de Schmidt pode e afeta também mulheres, portanto não é uma questão do sexo masculino. Mas no filme é uma questão masculina (o sexo masculino "suja banheiros") e o é antes de tudo porque, como se sabe, homens trabalham, às vezes até brincam com os filhos, mas são as mulheres que detêm o monopólio da subjetividade e da sensibilidade.

Mulheres "conhecem a si mesmas", homens não. Schmidt é uma caricatura do homem que acreditou que, cumprindo seu papel, estaria a salvo da devastação da falta de sentido da vida e do amor. Apesar das modinhas, as mulheres temem a subjetividade masculina como o diabo teme a cruz.

Homens não sabem falar de si mesmos. E, no fundo, é melhor que continuem assim (pensam as mulheres e os filhos): vivendo como Schmidt, no silêncio da função paterna e marital. Isso muitas vezes é objeto de piadas nas quais homens são comparados a carroças, enquanto mulheres são comparadas a grandes jatos.
Na realidade, a vida comum das famílias supõe que os homens continuem a trabalhar sem crises existenciais; qualquer coisa que se diga ao contrário disso é mais uma mentira da moda.

Isso não significa que não existam exceções, mas essas são apenas exceções. Homens com crises existenciais ficam sozinhos.

No caso de Schmidt, tudo que sua filha quer é seu cheque, e não sua presença. O filme é bom o bastante para mostrar que talvez nessas famílias "normais" não haja mesmo possibilidade de grandes relações entre pais e filhos, muito menos entre pai e filhos.

Talvez esse venha a ser um dos debates do século 21: o que fazer quando os homens começarem a falar?

ponde.folha@uol.com.br

Francisco Daudt - A lucidez, na FSP 19/3/'12


Se apenas ser observado por uma mulher perturba o raciocínio de um homem, que dirá o estado da paixão? 


QUEM VIU o ótimo filme argentino "O Filho da Noiva", com Ricardo Darín (ah, a inveja dos bons roteiristas hermanos), sabe que ele trata de uma senhora com demência, que já vive com seu marido há décadas, mas que ainda sonha com um casamento na igreja, desejo que seu filho se empenha em realizar. 
No entanto, a família se depara com um obstáculo: o pároco consultado diz que não pode realizar aquele casamento, pois o sacramento do matrimônio só é dado às pessoas com completos discernimentos e lucidez de escolha, coisas que faltam à velha senhora.

O filho retruca, irritado: "Padre, eu me casei com 21 e me divorciei aos 25. O sr. acredita que fiz aquela escolha em estado de plenos discernimento e lucidez? Acredita realmente? Meus pais vêm reiterando a escolha de um ao outro, que fizeram há mais de quarenta anos, e porque minha mãe sofre de Alzheimer, o sr. vem dizer que ela não pode se casar?"

O diálogo -pleno de discernimento e lucidez que o diferem do senso comum- é um dos pontos altos do filme. Afinal, é aceitável, no senso comum, que um rapaz de 21 anos esteja em condições para fazer essa escolha (casar-se) em pleno uso de suas faculdades mentais.

Não à toa, um jesuíta, renomado conhecedor do direito canônico, concluiu que cerca de 90% dos casamentos católicos poderiam ser anulados, a se levar seriamente esta cláusula de impedimento, e registrou sua opinião em livro que não li, mas me foi assegurado por um amigo católico que o leu, e que, por ser advogado, se interessa muito por tais questões. O autor: Pe. Jesus Hortal, antigo reitor da PUC-RJ. Se algum leitor tiver conhecimento do contrário, por favor, me avise.

Pois bato os olhos na revista "Scientific American" deste mês, em que o holandês Sanne Nants escreve um artigo que vem dar base à nossa percepção intuitiva. Estamos cansados de saber que os homens, em interação com uma mulher que lhes desperta muito interesse, se comportam como bobos, sem saber o que dizer, como se seus cérebros estivessem rateando.

Ora, na pesquisa, ele relata o enfraquecimento cognitivo que nos acomete antes e depois de interagir com uma mulher atraente, e que acontece com a simples antecipação mental de um encontro desses. 
O teste de Stroop foi aplicado. Ele exige rapidez cognitiva diante de um truque gráfico. Homens e mulheres o fizeram com a informação de que estariam sendo observados (através de uma câmera) por um homem ou por uma mulher, de quem eles só sabiam os nomes.

As mulheres não mostraram diferenças nas respostas, não importando o gênero do observador. Mas os homens... A despeito de não interagirem com a observadora, mostraram grande dificuldade com o teste, só de imaginar que uma mulher os observava!

Por essas e outras, tenho feito campanha para que os casais só tenham filhos (uma sociedade que não se desfaz) quando passar o estado de paixão. Veja: se o simples saber-se observado por uma mulher é capaz de perturbar o raciocínio de um homem, que dirá a paixão, que é um estado de insanidade transitória? 
fdaudt2@gmail.com