domingo, 4 de março de 2012

Capital e Trabalho unidos


Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo
Em 10 de fevereiro de 1979, Luiz Inácio, o sindicalista, ao contemplar a galera nas arquibancadas e gerais do Estádio do Morumbi, teve um estalo: fazer uma assembleia-geral de trabalhadores num campo de futebol. Assistia, ao lado de companheiros, a uma partida entre Corinthians e Ponte Preta pelo Campeonato Paulista - 2 x 0 para o Timão.
Março do mesmo ano, 80 mil metalúrgicos em greve acorreram ao gramado do Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, para ouvir o líder, sem microfone, gritar refrãos que a massa repetia. Os trabalhadores queriam 34,1% de aumento para repor as perdas salariais. Velhos e doloridos tempos.
Surfando nas ondas de sofrimento e alegria proporcionadas pelo seu time do coração, e depois de décadas de tenaz esforço para organizar o movimento sindical e ingressar no caminho da política, Lula alcançou os píncaros da glória. Galgou ao mais alto posto da Nação, o de presidente da República, de onde se retirou, após oito anos, sob o reconhecimento de que seu governo acelerou a dinâmica social e deu rumo seguro à economia. Novos tempos.
A folhinha registra fevereiro de 2012. Atento ao cenário institucional, o ex-presidente fez a conta: entre o fevereiro de ontem e o de hoje, 33 anos se passaram.
Por que esse registro, cheio de simbolismos?
Porque na imponente sede da Avenida Paulista que abriga a Fiesp, onde Lula começou a praticar as artes da locução e da negociação, as maiores centrais sindicais - entre elas a CUT, entidade que criou para ser o braço sindical do seu partido, o PT - e empresários dos mais diversos segmentos da indústria praticaram, na semana passada, uma liturgia em nada semelhante à que ele comandava em tempos idos. Ali, representantes de trabalhadores e patrões exercitaram um ritual entoando o mantra: "Nesta causa, estamos unidos; todos por um, um por todos". O jogo da união momentânea - até porque seria ingênuo supor que as peças daquele tabuleiro nunca mais litigarão - tem nome: desindustrialização. Que se traduz pela perda relativa do emprego e do valor adicionado da indústria. Fundamentos explicam-na, entre eles o forte crescimento da produtividade no setor industrial em comparação com os demais, fator que acarreta queda nos preços das manufaturas e a consequente redução da participação da indústria no valor agregado e no emprego total.
O estiolamento das cadeias produtivas ocorre desde a década de 90, na esteira da política macroeconômica. De lá para cá milhares de postos de trabalho foram fechados por aqui. O painel não deixa dúvidas: se a indústria manufatureira registrava participação no PIB de 27,2% em 1985, esse índice despencou para 15,8% em 2010. A queda do emprego na indústria entre setembro de 1985 e setembro de 2010 foi de 28%, já a participação dos manufaturados na pauta de exportações baixou de 55% em 2005 para 39,4% em 2010. O rosário de lembranças registra um passado em que a pauta de exportações abrigava aviões, automóveis, confecções, aparelhos, etc. Hoje tais itens são marginais. Mas a pauta de importações engorda a olhos vistos. Em 2003 o coeficiente de importação era de 12,5%; no segundo trimestre do ano passado, 22,9%.
Não por acaso, Paulo Skaf, o anfitrião do encontro de trabalhadores e empresários na Fiesp, pinçou, no meio das estatísticas, o dado que calou fundo: de cada quatro produtos consumidos hoje no País, um é importado. Fechando o pacote de perdas, o presidente do Grupo Marcopolo, a maior fabricante brasileira de carroceria de ônibus, José Antônio Fernandes Martins, fez o desabafo: "Meu custo de produção na Índia é de R$ 14 por hora; no Brasil, R$ 52". Conclusão: o Brasil apresenta-se como a alternativa menos confortável entre os sete países que abrigam o grupo, fruto dos males que afligem a indústria: concorrência predatória de outros países, câmbio flutuante, alta taxa de juros, pesada carga tributária e logística "podre". A peroração, recheada de mágoas e decepção com o governo, ganhou força com os adjetivos das centrais sindicais, que acenam com a mobilização de massas nos Estados até o mês de maio.
O que esperam o capital e o trabalho depois da missa pela integração de propósitos? Que o governo encontre mecanismos para fazer face ao esvaziamento das fábricas, permitir às empresas enfrentar o tsunami das importações e incentivar a política de exportação de manufaturas. Talvez por não ter o que oferecer, o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, decidiu não comparecer ao conclave. Seria tarefa complexa comprometer-se com ajustes na política que se adota há duas décadas, centrada na taxa de câmbio sobrevalorizada, que reduz drasticamente as exportações de manufaturados e propicia intenso processo de substituição de produtos domésticos por importados.
O fato é que qualquer mexida no caldo econômico não pode deixar de considerar a moldura das economias contemporâneas, sob a qual se expandem fenômenos como a internacionalização das redes produtivas, a mudança na forma de gestão das empresas, a expansão do sindicalismo de classes médias, o fortalecimento do agronegócio ou a nova divisão internacional do trabalho. O painel industrial mudou: tradicionais polos de produção se esvaziam, enfraquecendo cadeias como as de siderurgia, a têxtil, de vestuário, de estaleiros, etc.
O fecho da história de arrefecimento da indústria mostra as curvas do tempo. A classe trabalhadora ganhou impulso na expansão do chão de fábrica. Agora definha pelo estreitamento das plantas industriais. A greve era, outrora, a arma dos trabalhadores para abrir negociações. Hoje trabalhadores procuram empresários para dialogar. Ontem a turba desfilava na Paulista apontando seu aríete contra a pirâmide da indústria, a Fiesp. Hoje centrais sindicais fazem passeata de mãos dadas com os industriais. Antigos adversários se unem. Cena incrível, porém verdadeira. Capital e trabalho comendo no mesmo prato.  
JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO 
TWITTER: @GAUDTORQUATO

'Ministra fraca leva Código a um desastre'


PABLO PEREIRA - O Estado de S.Paulo
A tramitação do Código Florestal com ministro de Meio Ambiente fraco é um desastre. A avaliação é do professor do Instituto de Relações Institucionais da USP, José Eli da Veiga. Acompanhando o processo de feitura no Congresso da nova legislação ambiental do País, em análise na Câmara, ele acredita que a presidente Dilma Rousseff está mal assessorada no assunto, diz que a ministra Izabela Teixeira é "fraca" politicamente e acrescenta que o Planalto pode acabar aprovando uma lei que vai causar prejuízos ambientais, econômicos e institucionais ao País. Segundo Veiga, o texto contém avanços em relação ao que foi aprovado no ano passado, mas precisa de mais discussão. Leia trechos da entrevista:
Qual é a sua impressão sobre esse movimento na Câmara sobre o texto do novo Código Florestal?
Já não é mais uma impressão. Está absolutamente confirmado que o governo, o Executivo, com acordo do principal partido, o PT, queria que aquilo que foi aprovado no Senado já se tivesse promulgado. O grande atropelo, na verdade, foi no Senado. E foi uma pena porque o Senado acabou melhorando e muito, mas com atropelamentos que acabaram por anular os avanços. E o Senado atropelou muito porque a ordem era que o Congresso liquidasse a fatura até dezembro. Mas houve surpresa na Câmara. Os ditos ruralistas racharam e acabaram não aprovando em dezembro. Tudo ficou para a retomada, que ocorre agora.
O governo mudou de posição?
O governo continua exatamente na mesma posição. Diz que o substitutivo do Senado não é a melhor das coisas, mas que é o possível neste momento. E que tem de aprovar agora. A nova ordem é que o assunto não pode entrar no mês de Abril.
Por que a pressa?
Por causa da Rio+20. Há um grande temor que o Brasil tenha seu desempenho prejudicado na Rio+20 pela reação que pode haver por parte de todos os que, de fato, já assumiram essa cultura do desenvolvimento sustentável. A reação não se restringir aos movimentos socioambientais brasileiros. Então há o temor de que isso possa desmoralizar o compromisso do Brasil com o desenvolvimento sustentável. E o Itamaraty está muito apreensivo com esse risco. O Itamaraty vem dizendo à presidente que esse assunto é perigoso para o desempenho no Brasil na Rio+20.
E qual é a sua opinião?
Será muito melhor para a democracia brasileira se houver mais tempo para um exame bem mais cuidadoso dos imensos riscos, incertezas e desastres embutidos no texto aprovado pelo Senado. Mas, se continuar no atropelo, por força de um jogo complexo de interesses muito mesquinhos e também pelo fato de a matéria ser muito complexa, será uma tragédia. Como não chegou a se formar uma opinião pública sobre questões tão difíceis quanto delicadas, há alto risco de que, inadvertidamente, os deputados voltem a votar sem conhecimento de causa. Em vez de tomarem conhecimento da matéria, os deputados do PMDB podem apostar no "quanto pior melhor" só por estarem muito insatisfeitos com o PT, principalmente devido ao rolo da eleição municipal da cidade de São Paulo, mas também pela nomeação do senador Crivella para o ministério do "pesque e pague" sem qualquer consulta ao vice-presidente Michel Temer. Pior, a presidente está sendo confundida e iludida. Principalmente pela ministra do Meio Ambiente, que é muito fraca, e que tem um assessor que afirma exatamente o contrário do que dizem os principais especialistas, como mostram os posicionamentos da SBPC e conjunto com a ABC. Além disso, o Código Florestal vai ser substituído por uma lei que nem será mais Código.
Como assim?
Na verdade, o Código é de 1934. Em 1965 foi aprovado o "Novo Código". Tanto o projeto da Câmara quanto o substitutivo do Senado preveem sua revogação sem que seja substituído por outro.
O que é colocado no lugar?
A nova lei tratará única e exclusivamente das regras de conservação da vegetação nativa dentro das propriedades privadas. Essa é a diferença. Os códigos não se restringem a uma parte. Código de Trânsito, Penal etc, não são pedaços. Tratam do conjunto das regras. Os dois códigos florestais (1934 e 1965) incluíam todas as regras de conservação florestal. Agora, não. Florestas públicas e terras indígenas, por exemplo, serão tratadas por outras leis. Não haverá mais Código Florestal, por mais que se diga que ele está sendo "reformado".
Isso é um equívoco? O País deve ter um Código?
Não. Mas é preciso entender que essa lei só trata do que toca às fazendas. E, nisso, há um triplo retrocesso no substitutivo do Senado. Infelizmente. Embora tenha havido avanços. Mas no que sobrou, é retrocesso ambiental, retrocesso econômico brutal, e, talvez o pior, retrocesso institucional. É incrível que muitas pessoas não estejam percebendo. Como é assim, a única interpretação que posso ter é que a presidente está muito mal informada. Particularmente pela ministra, que é muito fraca. E a própria ministra está sendo iludida por gente que faz avaliação de que, apesar de tudo isso, a reconstituição de algumas coisas que já foram desmatadas, quando se calcula a área a ser regenerada, em termos de hectares, isso seria muito. Falam de recuperação de 18 milhões de hectares. E como muito poucos países têm essa possibilidade de recuperar 18 milhões de hectares, pode até parecer bom. Mas, veja, a Itália fez imensa recuperação florestal nas últimas décadas. Muita gente nem sabe disso. Mas, mesmo que a Itália recuperasse todo seu território, seria impossível fazer comparações de tamanho com o Brasil. Por isso, qualquer comparação desse tipo teria que ser em percentuais. E aí, em percentuais, a cantilena do MMA é uma farsa. Vejamos só uma questão: as Áreas de Preservação Permanente (APP). É unânime entre técnicos e cientistas que as APP são algo, a palavra talvez nem seja apropriada, mas APP deve ser entendida como sagrada. As APP são santuários da prudência econômico-ecológica. Quanto mais avança o conhecimento científico, mais evidências confirmam essa já antiga constatação.
E a reserva legal?
Reserva legal é bem diferente. É outra discussão: se é conveniente ou não, que tipo, qual é a porcentagem, por bacia ou por bioma, com que critérios, etc. Há uma série de questões discutíveis. Mas entre pessoas que têm o mínimo de formação nas ciências naturais, todos concordam que não deve haver transigência quando se fala de APP. E é brutal a redução de APP que vai haver com a aprovação de qualquer dos projetos até agora aprovados pela Câmara e pelo Senado. Há imagens claríssimas, elaboradas pelo departamento técnico do Ministério Público. Imagens que comparam como são as atuais APP e como elas ficariam se as regras previstas nesses projetos se tornarem lei. Todas têm reduções brutais e algumas simplesmente desaparecem. E mais uma questão muito séria: a presidente Dilma, entre o primeiro e segundo turno da eleição, mandou uma carta para a então senadora Marina Silva. Há um parágrafo sobre o Código Florestal que diz que ela não toleraria redução de áreas de preservação permanente, redução de reserva legal e, com muita ênfase, não aceitaria nenhum tipo de anistia para desmatadores. Agora, o substitutivo do Senado reduz APP, reduz reserva legal e, pior do que anistia, dá indulto a crimes cometidos a partir da lei de crimes ambientais.
Mas a presidente poderia vetar esses pontos no substitutivo e recuperar aquela intenção manifestada na carta?
Tudo indica que isso será impraticável. O texto está montado de tal forma que não vejo como ela poderá exercer vetos cirúrgicos. Não é o caso de um ou outro artigo. Pelo seguinte: veja uma das questões-chave, a tal data que separa o passivo do que vai vigorar a partir das novas regras, julho de 2008. É a data daquele decreto que desencadeou a grande revolta. E quero falar disso também porque muitas vezes as reclamações são legítimas. Tenho receio de que as pessoas subestimem a bronca dos agricultores, sem distinguir entre o que é legítimo e os oportunismos enfiados nos dois projetos. O que era legítimo foi muito bem aproveitado e desvirtuado pelas lideranças que se dizem ruralistas. Essas lideranças manipularam uma espécie de rebelião contra o decreto. A data é um retrocesso institucional porque ignora a Lei de crimes ambientais, que foi uma lei duríssima de ser aprovada. A rigor, até a Constituição, quem desmatou ilegalmente tem de ser perdoado. Pelo seguinte: apesar do Código desde 65, todos os governos, na ditadura militar, mais os patéticos Sarney e Collor, incentivavam o agricultor a desmatar, com crédito, até com competição. Quem foi levado para as áreas de fronteira agrícola, agricultores que migraram para Rondônia, Acre, Mato Grosso, foram muitas vezes quase obrigados a desmatar ilegalmente, tanto as APP como o que deveria ser reserva legal.
Então, até 88 é justificável?
Não porque a Constituição foi forçosamente muito genérica, e previa regulamentação. Ela tramitou durante dez anos. Só em 98 é que foi promulgada a Lei de Crimes Ambientais. Não é possível que uma lei nova simplesmente ignore a existência dessa lei. Quem desmatou sem licença a partir de 99 cometeu crime. E aí não se deve usar nem a palavra anistia, que é resgate, uma coisa positiva. Neste caso, é indulto, muito pior. Esse é um dos aspectos do retrocesso institucional. No caso de eventual veto, que estávamos tratando, no caso da data, que aparece em vários artigos, mesmo que ela vetasse os artigos, não poderia colocar outra data. A data correta seria 99. Mas não seria possível introduzi-la, pois veto só suprime, não acrescenta.
E não pode haver emenda agora, na Câmara, que ajuste esses pontos, como a questão da data da anistia?
Não. Os deputados só podem mudar com emendas de redação. Esse é um ponto incontornável. Se fizerem a desgraça de mandarem esse texto para a presidente, vão emparedá-la. Ela vai ser encurralada.
Qual seria a solução? A ideia de aprovar o que tem e rever daqui a cinco anos?
Também não, porque os estragos aumentariam tanto nesses cinco anos que teríamos uma revisão ainda mais complicada, como está acontecendo com a Rússia neste momento. Os cientistas que foram desprezados quando a Rússia flexibilizou sua legislação de conservação florestal passaram a ser vistos como heróis nacionais depois dos inúmeros incêndios que eles previram. O melhor seria, como fazem com muita frequência os técnicos do basquete: pedir um tempo. Precisamos de uma parada como apelo à sensatez. Uma parada para recomeçar a discussão no Congresso a partir do texto do Senado, que avançou, mas para rever as questões que estou levantando, e outras. A saída seria uma Medida Provisória que garantisse completa segurança jurídica aos agricultores, mas não aos especuladores, e que fosse muito mais enxuta do que o imenso e bizantino substitutivo do Senado. Com isso, os parlamentares das duas casas teriam tempo para estudar o assunto com mais calma em vez de votarem outra vez apenas por disciplina partidária, sem um mínimo conhecimento de causa.
Então o tema ficaria para o segundo semestre?
O trabalho técnico não precisaria esperar, pois ele é feito pelas assessorias. Quanto à decisão final, provavelmente seja impossível antes das eleições, mas poderia ocorrer, com maturidade e sensatez, logo depois, ainda neste ano. O que não é razoável é que se faça de afogadilho uma lei que vai ter repercussão ambiental, econômica, institucional por muitas décadas, quando se sabe que o texto será um triplo retrocesso, com devastadoras consequências econômicas e socioambientais. O relator Paulo Piau repete ad nauseum que só divulgará seu relatório na véspera da votação. Como é possível, em matéria complexa, que os deputados votem sem terem tempo de conhecer o texto? Foi o que aconteceu na Câmara com a desgraça de maio 2011. Os deputados votaram sem conhecer o texto. Foi uma vitória incrível, mais de 80% dos deputados votaram a favor. Eu procurei deputados aqui de São Paulo, que tinham votado a favor, para perguntar por que votaram e eles não souberam me dizer por que votaram. Eles não sabem. E mais: pelo regimento da Câmara, o relator pode reformular o relatório até durante o processo de votação. É absolutamente antidemocrático, embora possa ser regimental. O prazo de votação tinha de ser marcado em função do conteúdo do relatório. Com um tempo para que as assessorias dos deputados possam dar ao menos uma olhada. Só então avisarem os líderes que a votação seria viável.
Como está encaminhado, isso não vai acontecer?
Não. Vai ser uma derrota da democracia. Mais uma vez.
Quais seriam os prejuízos econômicos?
Se for aprovado como está, será um tremendo prêmio à especulação, imobiliária ou fundiária, e não à produção. Veja, se você tem um terreno na cidade de São Paulo, você pode montar uma empresa, uma atividade produtiva, no terreno. Você estaria usando o terreno para produzir, não estaria especulando. Os economistas calculam aí o que se chama de custo de oportunidade. Por exemplo, tenho que levar em conta que o aluguel, se ele não estiver sendo utilizado. É um custo da minha empresa. Mas se eu não quero ter atividade no terreno. Vou alugar, arrendar, para um estacionamento porque estou de olho na valorização imobiliária. Imagine se fosse na Vila Madalena. A gente sabe da valorização. Então, vou dar então esse terreno para estacionamento, para vender lá na frente, ou até deixar para meus filhos venderem. O lucro patrimonial que será obtido no momento da venda supera muitas vezes o lucro que possa ter em qualquer empreendimento que use o terreno. Isso é especulação imobiliária. O que aconteceu no Brasil foi que grande parte da fronteira agrícola, do Centro-oeste e do Norte, tem essa lógica. Por que o pessoal do mercado financeiro tem tanta fazenda na Amazônia? São produtores agrícolas?
É reserva de valor.
A expressão reserva de valor é insuficiente. Pode significar apenas proteção contra a inflação. Mas não é só isso. Quando se compra terra com intuito de segurá-las por 20 anos, está-se mirando no lucro patrimonial. O que interessa é o lucro patrimonial obtido com a valorização fundiária, muito mais que os rendimentos obtidos com eventuais atividades produtivas. O grosso da agricultura tem muito mais lucro patrimonial do que rendimentos da atividade econômica. E nas chamadas fronteiras agrícolas, essa lógica especulativa chega a ser dominante. Então, respeitar as APP sempre constituiu uma séria limitação para esse mercado de grandes domínios. Se há que se respeitar as APP, os compradores vão preferir procurar as que estejam mais livres desse tipo de condicionamento. Isto é, será premiada uma imensa fatia dos 44 milhões de supostas "pastagens" que invadiram áreas de APP. Áreas que o substitutivo do Senado considera "consolidadas". São cálculos feitos na Esalq com ajuda de imagens de satélite. Sumiram 55 milhões de hectares de APP. Pouco mais de 10 milhões são de agricultura, e aí não tem tanto problema, porque embora tenham desrespeitado as APPs, o verdadeiro agricultor tende a ser muito cuidadoso. É o caso do arroz, no Rio Grande do Sul. Grande parte de lá está em área de APP. Mas está lá há muitas décadas, com práticas conservacionistas que garantem a própria sobrevivência da atividade. O arrozeiro não vai deixar assorear. Isso é completamente diferente da maior parte das pastagens de uma imaginária pecuária de corte, que foram formadas somente com olho na especulação. Na verdade são terras travestidas de pastagem. Qualquer pessoa que viajou por estas regiões de avião nem vê boi. O que vê é pastagem tão degradada que mais parece uma coleção de erosões e voçorocas. Os proprietários só estão esperando a valorização. E a lei vai valorizar brutalmente estas terras. Vai haver um brutal aumento no preço da terra, que favorecerá quem teve essa iniciativa especulativa nos melhores momentos e agora torce para que seja aprovado algum dos dois projetos. Claro, de tabelinha, em princípio também favorece agricultores, pois um dia também serão realizados os seus lucros patrimoniais. A diferença é que os agricultores estão interessadíssimos na rentabilidade corrente de seus empredimentos. Não apostam apenas na valorização patrimonial. Para o verdadeiro produtor, isso interessa menos. Isso só é prêmio mesmo para o especulador. Principalmente para aquele os que se fazem passar por pecuaristas de corte. Não é o caso dos pecuaristas de leite. Esses são heróis, que muitas vezes nem alcançam a rentabilidade corrente média dos negócios agrícolas. E ainda tem outro prêmio para a especulação: é o que assimila a agricultura familiar a todos os imóveis com até quatro módulos fiscais. Também é retrocesso institucional porque há uma lei da agricultura familiar. E tem ainda a questão do imóvel rural e do estabelecimento agrícola.
Qual a diferença?
Uma coisa é o imóvel rural, outra é o estabelecimento agrícola. No estabelecimento agrícola, quem faz o censo é o IBGE. Se você se declara produtor agrícola, ele te pergunta sobre a sua atividade. Pode ser sua propriedade, arrendada etc. Vai falar da empresa. Imóvel rural é completamente diferente. É terreno, que não está na zona urbana. Pois bem, os dois projetos tratam de imóveis em vez de estabelecimento agrícola. O corte é o imóvel de até quatro módulos. É imensa a diferença entre a área dos estabelecimentos de agricultores familiares e a área dos imóveis rurais de até quatro módulos. É um hiato de 56 milhões de hectares, dos uns 40 milhões não abrigam empreendimentos produtivos. E não são grandes propriedades. São áreas para sítios, que têm, em média, uns 100 hectares. Isso vai aquecer brutalmente o mercado dos sítios de recreio. Então, com intuito de favorecer ou proteger a agricultura familiar, usaram esse dispositivo de falar em imóvel e usar os tais quatro módulos de tamanho. Isso vai premiar a especulação em mercado bem diferente daquele dos grandes domínios. Como a presidente é economista, queria fazer uma aposta: ela certamente faria o papel do técnico que pede tempo se viesse a ser informada de que os projetos do Congresso premiam muito mais os especuladores do que aliviam os agricultores. Coisa que certamente não ouviu dos assessores que até podem entender muito de meio ambiente, mas que não entendem nada de economia. O pessoal da Fazenda, que eventualmente poderia chamar a atenção dela para essas coisas, nem se interessa por Código Florestal. E os técnicos do Ipea que estudam estas questões não têm acesso às altas esferas do poder. Então, vamos ter prejuízo econômico brutal por falta de assessoramento da presidente na área da economia agroambiental.
Professor, o senhor me falava da questão da segurança jurídica.
É. Tem também essa questão. Entendo que muitos agricultores não vão concordar comigo quando peço mais calma, mais tempo, porque eles estão aflitos, há muito tempo, com isso. Eles estão ansiosos por uma segurança jurídica, que uma nova lei pode dar. Esse é o grande ponto que favoreceu que eles fossem manipulados pelo pessoal da especulação imobiliária. Foi oportunismo no processo no Senado, inclusive de muitos parlamentares que descaradamente estão legislando em causa própria. Só alguns devem ter grandes domínios no Centro-Oeste e no Norte, mas a grande maioria possui imóveis rurais de até quatro módulos que não são estabelecimentos agrícolas. Não querem respeitar as APP, como são hoje obrigados.
O que o senhor espera da presidente?
Pelo pouco que conheço dela, de sua trajetória, tenho imenso respeito. Li o livro do Ricardo Amaral, um livro maravilhoso, e qualquer pessoa que ler esse livro só poderá nutrir ainda mais respeito por ela. Mas, infelizmente, na questão do Código Florestal, ela está muito mal informada, muito mal assessorada. Se tivesse procurasse ouvir os economistas do Ipea, em vez de confiar cegamente na equipe do MMA, já teria percebido o perigo que está correndo em deixar que haja essa atropelada votação prevista para os próximos dias. Para piorar, o PT está subestimando muito a armação dos especuladores. Então, a presidente será encurralada a promulgar um "monstrengo" que contraria os três compromissos que ela própria assumiu na carta-resposta que enviou à ex-senadora e ex-ministra Marina Silva pouco antes do segundo turno das eleições de 2010. O "monstrengo" reduz brutalmente as APP, também reduz muito as reservas legais, além de conceder indulto generalizado a todos os que desmataram ilegalmente depois de 1999.
O senhor diz que há também prejuízos ambientais. Não há nada de bom no substitutivo?
Eu acho que o principal prejuízo é de APPs. Tem a questão da beira rio, áreas úmidas. E a dos manguezais, os apicuns. É uma formação muito específica que fica na foz dos cursos d´água. Você tem os manguezais e os apicuns, uma formação que aflora, que normalmente seria uma ilha, que é usada para a criação de camarão ou salinas. A ciência diz que há um conjunto, um ecossistema. Não se pode tratar o dito apicum, ou salgueiro, como se fosse separável do manguezal. A contaminação vai afetar o manguezal. Isso foi golpe no Senado. Foi na calada da noite. O nobre deputado Paulo Piau me disse isso. Na calada, com a votação confusa, os assessores entram e fazem o que eles, na gíria, chamam de "foi feito no tapa", quer dizer, ninguém sabe direito o que foi votado e aí os assessores legislativos é que fazem o texto. Mas o mais grave nem é isso. Quem enfiou no texto essa barbaridade dos apicuns foi um senador que nunca tinha aparecido em nenhuma discussão sobre o Código Florestal, que é do Rio Grande do Norte e líder de seu partido, o nobre senador Agripino Maia. Em dado momento fez um panegírico sobre a questão dos apicuns, sobre a qual os demais senadores presentes provavelmente nunca tinham ouvido falar. Como os relatores precisavam de aliados na oposição para conseguir votar até novembro, concordaram em acomodar essa questão, que acabou constituindo principal pérola da incompetência de técnica legislativa que também é a marca do apressado substitutivo. É bom lembrar que esse senador foi exatamente o que chamou a presidente de mentirosa. Há um vídeo na internet que precisa ser revisitado. Ela, ainda como ministra, foi fazer depoimento em comissão do Senado e ele abriu a sessão perguntando se valeria a pena ouvi-la, já que era uma reconhecida mentirosa, pois tinha mentido sob tortura. É belíssimo, porque a atual presidenta deu uma grande aula de ética ao justificar sua atitude de não ter entregado seus companheiros à repressão ditatorial. Ao senador Agripino Maia, por incrível que pareça, nem havia ocorrido o grau de heroísmo que foi mentir em tais circunstâncias.
E tem coisa boa?
Sim, tem uma série de coisas boas. A SBPC lançou uma segunda carta aberta na segunda-feira, 27 de fevereiro, que começa com uma lista dos avanços no Senado. Por exemplo, no tal texto aprovado na Câmara em maio, que é chamado por deputados de "monstrengo", os manguezais deixaram de ser APP. Sempre foram, e ainda são. Mas o tal "monstrengo" tentou liberar todos os manguezais de qualquer restrição conservacionista. Um grande crime, quando se sabe que esses ecossistemas são absolutamente fundamentais para uma série de funções ecológicas, além de serem essenciais para a regulação do clima. O Senado reintroduziu os manguezais nas APP. Mas não há várias outras coisas positivas. No primeiro relatório do senador Luiz Henrique, ex-governador de Santa Catarina, que foi relator de três comissões, coisa muito rara, repetiu o tal "monstrengo" com poucas alterações. Mas houve uma importante audiência de juristas. Estava lá ministro Nélson Jobim, contratado para dar parecer de inconstitucionalidade. E também o ministro Herman Benjamin, do STJ, que talvez seja no Brasil a pessoa da área jurídica que mais entende da questão ambiental. Então, o senador Luiz Henrique ali na audiência foi convencido a mudar várias coisas fundamentais. Para começar, no texto da Câmara havia uma transferência de competência aos estados. Os estados é que iriam legislar. O ex-ministro Jobim alertou: isso vai criar uma guerra ambiental parecida com a guerra fiscal. E o senador Luiz Henrique imediatamente percebeu que estava errado. Houve aí um grande ganho. A lei que sair, seja qual for, será federal. Os estados têm de respeitar e adaptar.
Foi um avanço, então?
Com certeza. Depois, o ministro Herman Benjamin disse que um dos principais defeitos do texto era de que ele misturava disposições transitórias com definitivas. Ou seja, criava uma confusão entre o passivo e as novas regras, algo péssimo em termos de técnica legislativa. E também convenceu. O senador Luiz Henrique pediu tempo, apesar da pressão para que o Senado resolvesse tudo antes de Novembro. Era um problema, mas ele pediu adiamento. E reapresentou um relatório que separa o passivo das regras para o futuro, além de retirar a questão da autonomia estadual, que ele próprio, como governador, até tentou impor na marra. Dois avanços imensos, portanto.
E no caso dos rios? O tal debate da metragem.
O ideal seria que não tivesse regra fixa de metragem. Quando foram feitos em 1934 e 1965, o conhecimento não tinha avançado o suficiente para dizer que há como mapear as áreas a serem preservadas. No entanto, hoje se dispõe de instrumentos rápidos, graças a novas tecnologias de interpretação das imagens de satélite. Basta ir ao Inpe e consultar o pesquisador Antonio Donato Nobre sobre o sistema que montar para prever enchentes. Pode-se prever até onde a água irá, até em cheias excepcionais. Todavia, como os parlamentares preferiram a inércia institucional, seus projetos insistem em critérios métricos fixos, que até eram razoáveis em 1934 e 1965, mas que hoje não passam de pura burrice. Então, ao menos deveriam ter considerado como referencia o registro da cheia máxima, ou, ao menos, uma média das cinco maiores cheias. Mas hoje nem isso é necessário. O Inpe tem condições de mapear qual é a área inundável e essa área, em princípio, é APP. Se quisessem escutar a ciência, teríamos zoneamento agroecológico para demarcar as APP em vez dessas regrihas burras. Com as regras fixas de metragem, a lei pode estar exagerando para mais do que necessário ou para menos. Mas isso a gente está dizendo há mais de ano. E ninguém quer ouvir.
Então não seria melhor fazer passar logo a lei e depois aprimorar? Ou o prejuízo é irrecuperável?
Se a ideia fosse estabelecer um mínimo de regras que garantam a segurança jurídica para depois discutir com calma essas complicações técnicas, eu até estaria de acordo. Mas não disso que se fala em Brasília. E não estão percebendo que a aprovação de algum dos projetos das duas casas do Congresso certamente aumentará os conflitos no campo. O exemplo mais escandaloso é o dos manguezais, mas há muitos outros. Vai ser uma loucura para o fiscal, do Ibama, ou do órgão estadual, saber o que deve ser considerado legal ou ilegal. Pior: vai aumentar a farra dos advogados. Nada disso quer dizer, é claro, que os dispositivos do Código não precisem de modernização. Não tenho a menor dúvida de que tem de modernizar. A lei é de 65 e houve alterações, várias vezes por medidas provisórias. Não pode ficar como está. Se fosse para ouvir a ciência, elaborar um texto enxuto, e depois regulamentar, seria o melhor dos mundos. Mas aconteceu está ocorrendo exatamente o contrário. O texto do Senado é seis vezes maior do que o da Câmara. Vai ser camisa de força, aumentar os conflitos e expandir a farra dos advogados.
Porque o senhor diz que a ministra é fraca?
Os ministros anteriores tinham mandato. Foram eleitos por terem reconhecida militância política nessa área. É o caso de Marina Silva e de Carlos Minc, mas também Zequinha Sarney, por exemplo. Na tramitação do Senado, por exemplo, teriam evitado muitos desastres, pois não se intimidariam frente às chantagens dos especuladores, dando assim um bom suporte aos vários senadores mais ligados às questões da sustentabilidade. Ocorreu exatamente o contrário. Os senadores comprometidos com as causas socioambientais ficaram, várias vezes, "pendurados na brocha", como se diz. Por incrível incapacidade da atual ministra. Em vez de alertar os relatores para as manobras oportunistas dos especuladores, ela, ao contrário, foi muito conivente com eles. Favorecendo a banda podre do Senado, em vez de enfrenta-la, como teriam feito os três ex-ministros já citados. Houve um momento, por exemplo, que a proteção das encostas havia sido muito bem disciplinada pelo relator final. Assim que soube, a senadora Kátia Abreu, lá da sede da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), fez uma forte chantagem ao governo. Se tal dispositivo não fosse retirado, os ditos ruralistas iriam obstruir votações, tanto na Câmara, como no Senado, de projetos que eram fundamentais e urgentes para o governo. Era um "super-blefe", mas que gerou recuo imediato do MMA. Nem é preciso dizer o resto. A manobra surtiu efeito, já que os senadores e a assessoria palaciana deixaram de ter razões para "pagar para ver".
A ministra da pasta não teve força para manejar a aliança de sustentação do governo neste ponto, é isso?
É mais do que isso. Ela não tem a capacidade de interlocução com os senadores. É diferente do Minc, da Marina ou do Zequinha. Quando um parlamentar fala com outro parlamentar é uma coisa totalmente diferente de quando fala com um simples mortal, como nós dois. Nós não temos o tal "cacife". Então, é inteiramente diferente quando falam com um ministro que tem. Até a tramitação do Código Florestal, eu não tinha má impressão da ministra. Conheço um pouco a história porque sou muito amigo do Minc e sei como ele a escolheu. Era secretária executiva dele. Foi um desastre o Código Florestal tramitar num contexto em que o MMA é conduzido por um suposto bom técnico. É como querer usar um gato em "briga de cachorro grande".

Ainda as privatizações


Fernando Henrique Cardoso - O Estado de S.Paulo
A recente e tardia decisão do governo federal de enfrentar o péssimo estado da infraestrutura aeroportuária deu margem a loas de quem conhece a precariedade de nossos aeroportos e a justificativas envergonhadas por parte de dirigentes petistas, segundo os quais "concessões" não são privatizações, como se ambas não fossem modalidades do mesmo processo.
Passados tantos anos das primeiras privatizações de empresas e concessões de serviços públicos, e dada a sua continuidade em governos controlados por partidos que se opunham ferozmente a elas, a relevância ideológica da discussão é marginal. Só o oportunismo eleitoral pode explicar por que insistem num tolo debate que sustenta ser "patriótico" manter sob controle estatal um serviço público, ao passo que concedê-lo à iniciativa privada, com ou sem a venda da propriedade, é coisa de "entreguista".
Esvaziar o Estado de funções econômicas não passou pela cabeça dos constituintes, nem dos congressistas ou dos governos que regulamentaram ou modificaram a Constituição para adequá-la às transformações da realidade produtiva. Ainda no final dos anos 80 houve privatização de empresas de menor importância que se haviam tornado estatais porque o Estado as tinha salvado da falência, nas chamadas operações-hospital do BNDES.
No começo dos anos 90, já regulamentadas em lei, as privatizações ganharam corpo. Alcançaram, por exemplo, o obsoleto parque siderúrgico do País, que desde então passou por imensa modernização, com apoio do BNDES, não mais na função de socorrer empresas falidas, mas de promover a atualização do setor produtivo. Na segunda metade dos anos 90, quando se tratou de atrair o capital privado para os investimentos que o Estado já não podia fazer na oferta de telecomunicações, energia, petróleo, etc., flexibilizaram-se monopólios estatais e se criaram as agências reguladoras para assegurar a competição nesses setores, evitando o surgimento de monopólios privados. O governo atuou não apenas para aumentar a concorrência nos leilões - e, portanto, o ágio recebido pelo Tesouro -, mas também para apoiar, por meio do BNDES, o investimento privado que se seguiu à desestatização.
No caso do petróleo, depois da quebra do monopólio, em 1997, a Petrobrás transformou-se numa verdadeira empresa moderna, menos sujeita a influências político-fisiológicas, que hoje se insinuam novamente. Diziam que o governo queria privatizá-la, quando, na verdade, estava comprometido a fortalecê-la. Mantida sob o controle da União, mas submetida à competição, tornou-se uma das cinco maiores petrolíferas do mundo. A participação acionária do setor privado na companhia, existente desde o período Vargas, foi ampliada, até com a possibilidade de uso do FGTS para a compra de ações por parte dos trabalhadores. As contas da empresa tornaram-se mais transparentes para o governo e para a sociedade. A quebra do monopólio veio acompanhada de uma política de indução ao investimento local na indústria do petróleo, com a fixação de porcentuais de conteúdo nacional já nas primeiras licitações realizadas pela ANP. Medida adotada, no entanto, com o equilíbrio necessário para evitar aumento nos custos dos equipamentos e atrasos em sua produção, como agora se verifica.
Nas telecomunicações houve uma combinação de privatização e concessão de serviços. No caso da telefonia celular poucos foram os ativos transferidos, pois ela praticamente inexistia no País. Estamos vendendo vento, brincava Sérgio Motta, então ministro das Comunicações, que sonhava com o dia em que celulares seriam vendidos em todo canto. Pena ter morrido antes de ver seu sonho realizado. Hoje existem no Brasil mais celulares do que habitantes. Na desestatização do Grupo Telebrás houve transferência de ativos. A divisão da holding em várias empresas foi classificada de esquartejamento, quando pretendia assegurar a competição no setor. Graças a esse novo ambiente e às regras estabelecidas pelo governo, as empresas privatizadas foram obrigadas a fazer pesados investimentos para acompanhar os avanços tecnológicos e ampliar o acesso às linhas, inclusive à internet, deixando-nos sem saudades do antiquado sistema de telefonia pré-privatização.
Já no caso da Vale do Rio Doce, assim como da Embraer, houve privatização pura e simples, com a ressalva de que, nesta última empresa, o governo manteve uma golden share, com direito a veto; e o BNDES adquiriu e manteve uma posição importante, de cerca de 20%, no controle da mineradora. Para não falar na participação dos fundos de pensão das empresas estatais. Na privatização da Vale, os críticos diziam que o governo estava alienando o subsolo nacional - uma afirmação descabida, já que este era e continuou a ser propriedade da União, conforme manda a Constituição. Falavam também que a empresa terminaria "desnacionalizada", com número menor de empregos - retórica que os fatos posteriores desmentem sem margem à contestação. Ainda se escutam murmúrios do surrado argumento de que a mineradora, que hoje vale muito mais do que o bom preço por ela pago à época, foi vendida por valor vil (não foi o que se viu no leilão, vencido por um grupo nacional que ousou no preço bem mais do que o considerado razoável pelos demais concorrentes). Ora, se hoje a Vale tem valor em bolsa da ordem de US$ 100 bilhões, é porque, liberta das amarras estatais, pôde chegar aonde chegou.
Os que criticam as privatizações são os mesmos que se gabam dessas empresas e de sermos hoje a quinta economia do mundo. Esquecem-se de que isso se deve em muito ao que sempre criticaram: além das privatizações, o Plano Real, o Proer, a Lei de Responsabilidade Fiscal, enfim, a modernização do Estado e da economia. Mas atenção: não basta fazer concessões e privatizar. É preciso fazê-las com critérios predefinidos, elaborar editais claros, exigir que se cumpram as cláusulas das licitações e evitar que as agências reguladoras se transformem em balcões partidários.
Esperemos para julgar o que ocorrerá com os aeroportos.    
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA