domingo, 1 de dezembro de 2024

Turma do golpe tentou jogar o 8 de janeiro no colo de Lula, Elio Gaspari, FSP

 As mil páginas dos dois relatórios da Polícia Federal provaram à exaustão que Jair Bolsonaro e um punhado de oficiais palacianos armaram um golpe de Estado em 2022 para cancelar o resultado da eleição vencida por Lula.

Caberá à Justiça estabelecer as responsabilidades pela trama de dezembro de 2022 e dos possíveis atentados contra Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes.

Outra questão será estabelecer a responsabilidade desses golpistas no 8 de janeiro de 2023.
Os relatórios da Polícia Federal não cuidam dos acontecimentos desse dia. Mostram apenas como a turma do golpe tentou jogar o 8 de janeiro no colo de Lula e do então ministro da Justiça, Flávio Dino. É pouco.

Um homem de cabelo grisalho e barba branca está falando em um microfone. Ele usa um terno escuro e gesticula com a mão. Ao fundo, estão as bandeiras do Brasil e do governo. Há um copo de água em uma mesa à sua frente.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - Pedro Ladeira/Folhapress

Àquela altura, Lula já estava no governo. Todas as armações de 2022 ficaram no condicional. Bolsonaro não instaurou o estado de defesa, a campana de Alexandre de Moraes foi abortada e os "kids pretos" ficaram no quartel.

No dia 4 de janeiro, trocando mensagens com um coronel que lhe perguntava se "ainda tem algo para acontecer", o tenente-coronel Mauro Cid respondeu duas vezes, mas apagou os textos. O coronel voltou a perguntar: "Coisa boa ou horrível?". Então Cid respondeu: "Depende para quem. Para o Brasil é boa".

No 8 de janeiro foram invadidos e depredados o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal e o Congresso. Coisas aconteceram e não foram adiante porque Lula, num lance instintivo, salvou o regime recusando-se a assinar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem.

Se tivesse assinado, daria poderes a militares e só Asmodeu sabe o que aconteceria. A ideia da GLO circulou entre ministros de Lula. Além disso, foi enunciada (às 17h10) pelo general da reserva Hamilton Mourão, senador eleito e ex-vice-presidente de Jair Bolsonaro.

O 8 de janeiro seria o "evento disparador" de que falava em novembro o general da reserva Mario Fernandes. Tardio, não disparou coisa alguma.

O tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, acompanhava o ex-presidente nos Estados Unidos e lá recebeu fotos do que acontecia em Brasília naquele domingo. De lá, escreveu: "Se o Exército Brasileiro sair dos quartéis... é para aderir".

Os relatórios da Polícia Federal mostram que o general da reserva Mario Fernandes, secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência durante o governo de Bolsonaro, havia frequentado o acampamento montado em frente ao QG de Brasília . Tratava com o caminhoneiro Lucão e cuidava dos interesses dos acampados que foram para a praça dos Três Poderes, convocados para a "Festa da Selma".

UMA VINHETA

Nos anos 70 não existiam as Forças Especiais. Os paraquedistas eram vistos como uma tropa de elite. Certo dia, Heitor Ferreira, secretário do presidente Ernesto Geisel, viu que o general Golbery, chefe da Casa Civil, havia recebido um coronel paraquedista encrenqueiro.

Heitor, velho protegido de Golbery, resolveu cobrar a esquisita gentileza.

A imagem mostra um homem sentado em uma mesa, levantando o braço direito e apontando para cima, enquanto sorri. Ele está vestido com um terno escuro e uma gravata. Ao fundo, há um homem com um boné, observando. Outro homem está em pé, segurando um microfone em direção ao homem sentado. O ambiente parece ser uma sala de conferências ou uma coletiva de imprensa.
Em 1961, o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, comanda a Campanha da Legalidade e fala no microfone da Rádio montada no porão do Palacio do Piratini, em Porto Alegre - Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Golbery explicou-lhe que, na sua função, recebia pessoas para inflar-lhes os egos, ao que Heitor perguntou-lhe o que o coronel queria.

— Ele disse que estava organizado um comando para ir ao Uruguai e sequestrar o Leonel Brizola. (Brizola vivia exilado no Uruguai desde 1964.)

— E o que o senhor disse?

— Disse que fosse, Heitor.

Diante da perplexidade do amigo, Golbery explicou:

— Se eu dissesse para não ir, ele iria para a rede de vôlei e pelo resto da vida diria que havia organizado um comando para sequestrar o Brizola e eu não deixei. Liberado, ele nunca mais vai tocar no assunto.
E assim foi.

Celso Rocha de Barros - Programa de Haddad vai na direção certa, FSP

 Lula surpreendeu o mercado anunciando o pacote fiscal e a reforma do Imposto de Renda no mesmo dia. Do ponto de vista econômico, criou ruído em um momento em que o quadro internacional é instável. Do ponto de vista político, faz sentido.

O pacote fiscal trouxe medidas que sacrificam o eleitorado pobre que venceu as últimas eleições presidenciais com Lula e, ao fazê-lo, livrou o Brasil do autoritarismo.

Pelas novas regras, o salário mínimo vai continuar tendo crescimento acima da inflação (só no governo Bolsonaro não teve), mas crescerá mais lentamente. O abono salarial, atualmente disponível para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos, será pago apenas para os que, após um período de transição, ganharem 1,5 salário mínimo.

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) durante evento da Febraban (Federação Brasileira de Bancos) - Zanone Fraissat /Folhapress

Foi muito, muito difícil vender essas medidas dentro de um governo liderado pelo partido dos sindicatos.

Era importante, portanto, mostrar para o eleitorado de Lula que o ajuste não seria feito apenas em cima dele. A proposta de isenção para os que ganham menos que R$ 5.000 e de mais imposto para os que recebem acima de R$ 50 mil foi a maneira de transmitir essa mensagem.

Afinal o Congresso não deixou que Lula tivesse muitos sacrifícios de rico para mostrar. Se os legisladores tivessem aprovado o fim dos subsídios empresariais, como Haddad propôs, a conta fecharia muito mais fácil.

Por exemplo: os deputados Kim Kataguiri (União Brasil-SP), Pedro Paulo (PSD-RJ) e Júlio Lopes (PP-RJ) apresentaram uma proposta de emenda constitucional que faria um ajuste fiscal bem mais duro que o de Haddad. Estão no seu direito.

Mas, em 23 de abril deste ano, o mesmo Kataguiri foi ao X comemorar a manutenção do Perse, um programa que Haddad tentou extinguir. O Perse foi feito para que os empresários do setor de eventos não pagassem impostos durante a pandemia. Sim, a pandemia que acabou faz alguns anos. Custa bilhões.

A princípio, a reforma do Imposto de Renda não deve afetar o ajuste fiscal, nem para melhor nem para pior.

Os cálculos do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP sugerem que o aumento do Imposto de Renda sobre os ricos (na verdade, uma alíquota efetiva mínima para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês) deve compensar a perda de arrecadação com o aumento da isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5.000.

Haddad disse, na entrevista em que anunciou o plano, que a isenção para os com renda de até R$ 5.000 só passa se também passar o aumento de imposto para os que ganham acima de R$ 50 mil. Mas o mercado teme, com uma certa razão, que o Congresso mande o governo pastar, aprove a isenção, mas não o aumento de imposto.

Ouvi de gente inteligente que talvez fosse melhor aumentar menos a faixa de isenção e, ao mesmo tempo, colocar uma alíquota mínima para os ricos ainda maior do que a proposta por Haddad. Suspeito que estejam certos, mas que a proposta de Haddad seja o compromisso possível entre o presidente que quer isentar mais de um lado e o Congresso que quer taxar menos do outro.

Junto com cadeia para golpistas, ajuste fiscal com imposto para ricos é uma das bandeiras preferidas desta coluna. As críticas são legítimas, mas o programa de Haddad vai na direção certa. Torço para que o Congresso só o mude se for para melhor.


Alexandra Moraes - Ombudsman Pauladas no pacote e diversidade de ideias, FSP

 "Governo tropeça no pacote", "pontos soltos do pacote", "pacote desastroso", "governo desperdiça bônus", "pacote foi decepcionante e anúncio, desastroso, diz banqueiro", "pacote esquálido". Esses foram títulos opinativos que a Folha apresentou a seus leitores a respeito do anúncio que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez, misturando o que seriam cortes de gastos com a criação de outros, na figura da isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5.000 por mês.

A Folha é o jornal do contraditório, do "outro lado", do benefício da dúvida, é o que está enunciado em seu Manual da Redação. Tudo bem que, quando até Haddad e a ministra do Planejamento, Simone Tebet, se mostram publicamente contrariados com os rumos do próprio pacote, pode ficar mais complicado encontrar quem o defenda por inteiro.

O anúncio mexeu negativamente com aquilo que é conhecido como o mercado, mas já havia também feito torvelinho no governo e no Partido dos Trabalhadores. Onde estarão seus defensores intransigentes para além de Lula e do comando do PT? No jornal apareceram pouco e mal.

Entre os especialistas e as entidades com autoridade para calibrar impressões, não havia vozes na Folha para advogar a favor das medidas como vieram ao mundo. Diante da enésima paulada de colunistas e entrevistados, seria necessário buscar ajustar o placar de opinião sobre o tema, que é o que acontece com tantos assuntos e coberturas.

Uma balança que pesa de um lado um cérebro e do outro, um coração.
Ilustração de Fernando Carvall para coluna da Ombudsman - 1º de dezembro de 2024 - Fernando Carvall/Folhapress

(Na rádio CBN, a comentarista e repórter Renata Agostini fez uma exposição oportuna sobre o dilema de avaliar um desastre anunciado como o pacote desta semana: "Quando nós fazemos uma análise de que o pacote é insuficiente, não é porque nós desejamos —ou eu, no caso— que haja um corte no salário mínimo, que haja um corte no Bolsa Família. A questão é que as coisas estão relacionadas. E o governo está [cansado] de saber disso. Quando há uma alta do dólar, é porque o mercado —mercado este de que o governo depende porque tem que vender títulos da sua dívida para se refinanciar— está descrente dos compromissos fiscais do governo".)

Note-se que a Folha publicou ponderações e análises sóbrias, que não se ocupavam apenas de detonar o projeto —ou o detonavam com a devida explicação. Mas reações mais entusiasmadas a favor dele, inclusive de ex-colunistas do jornal menos inclinados à ortodoxia, ficaram de fora.

Há, e não só na Folha, uma certa ojeriza das correntes de pensamento econômico que encontram eco sobretudo na esquerda, e a fuga da ortodoxia pode ser percebida como flerte com o terraplanismo. Mas a Folha é ou deveria ser o ambiente em que ideias diferentes podem circular livremente (foi, aliás, seguindo esse princípio que o jornal deu espaço para Jair Bolsonaro publicar sua redação sobre democracia).

A queixa de leitores sobre o que seria uma leitura antiesquerda na cobertura econômica da Folha não é novidade. Com o pacote, ela voltou à carga.

"Sou leitor fiel do jornal mas a cobertura econômica está enviesada demais", afirma um leitor, que reconheceu melhorias e alguns ajustes de rota no segundo dia pós-pacote. Outro indagou, ainda na era pré-pacote: "O que é o mercado? Banqueiros? Analistas de corretoras?".

Acaba sendo necessário retornar periodicamente a esquadrinhar essa figura (o "mercado") convenientemente incógnita entre várias faces e humores. Para a cobertura, fazê-lo pode soar óbvio demais, mas para quem lê há diferença.

Outra leitora, ainda em outubro, deu sugestão mais radical: "Seria interessante saber o patrimônio estimado de cada entrevistado que vem dar palpite sobre gastos e finanças públicas. Algo na linha: Zezinho, diretor de investimentos da consultoria tal e com patrimônio estimado em R$ 25 milhões, defende corte de gastos públicos na saúde e Previdência. Acho que é razoável que nós, leitores, possamos entender qual é a posição financeira dessas pessoas que estão tão preocupadas com as contas públicas".

Resta evidente que não é o jornal (nem nenhum jornal) que vai parar a briga do PT e do governo entre si ou com "o mercado". Mas dedicar-se a explicar incansavelmente o que está por trás dessas e de outras refregas constitui uma das funções em que o jornalismo ainda é insubstituível. Até porque as cobranças para que medidas de saúde fiscal —e social— sejam implementadas só podem ser realizadas a partir desse conhecimento.