domingo, 1 de dezembro de 2024

PEDRO ESTEVAM SERRANO E FERNANDO HIDEO LACERDA Não cabe aos criminosos golpistas escolher quem os julgará, FSP

 

mas à figura institucional

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Pedro Estevam Serrano

Advogado e doutor em direito do Estado, é professor de direito constitucional e de teoria do direito (PUC-SP)

Fernando Hideo Lacerda

Doutor em direito, é professor da Escola Paulista de Direito

No editorial "Suspeitas graves exigem tanto rigor como equilíbrio" (20/11), esta Folha sugere a existência de "casos em que Alexandre de Moraes figura simultaneamente como supervisor e vítima em potencial", o que dá margem a argumentos recorrentes no sentido de que ele deveria se declarar impedido de exercer a jurisdição no inquérito que apura os atentados contra o Estado democrático de Direito e a tentativa de golpe no Brasil, por ter sido alvo de atos do plano golpista para manter Jair Bolsonaro no poder.

Embora a preocupação com a imparcialidade seja legítima, esse argumento revela uma compreensão equivocada do princípio do juiz natural em face da própria natureza dos crimes em apuração.

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O ministro Alexandre de Moraes, em sessão do Supremo Tribunal Federal após atentado na praça dos Três Poderes - Pedro Ladeira - 14.nov.24/Folhapress

atentado contra o ministro Moraes não foi um ataque à sua pessoa, mas à figura institucional que desempenhava papel central no funcionamento do Estado democrático de Direito enquanto presidente do Tribunal Superior Eleitoral durante as eleições e relator do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal. Afastá-lo da relatoria seria conceder aos investigados o poder de manipular a jurisdição, violando o princípio constitucional do juiz natural.

Admitir tal afastamento equivaleria a permitir que criminosos escolham seus julgadores. Essa possibilidade criaria um precedente que ameaça a independência do Judiciário e fragiliza a democracia. A questão é ainda mais relevante no contexto atual, em que se apura uma clara tentativa de ruptura institucional.

Diferentemente do episódio ocorrido no aeroporto de Roma, no qual Moraes e familiares foram agredidos, o atentado aqui não se deu em face do indivíduo, mas contra a figura institucional que desempenhava um papel decisivo no equilíbrio democrático durante as eleições e na responsabilização dos ataques golpistas.

As investigações da Polícia Federal revelaram que o atentado contra o ministro Alexandre de Moraes foi uma etapa de um plano estruturado e coordenado, com múltiplos núcleos de atuação, para subverter a ordem democrática e dar um golpe de Estado, que tinha por objetivo final impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e manter Bolsonaro no poder.

Não se tratou de meras idealizações: minutas de decretos para anular o resultado das eleições, planos e faixas golpistas impressos no Palácio do Planalto, reuniões ministeriais com teor golpista, acampamentos diante de quartéis, transmissões em redes sociais incitando ataques às instituições, mobilização de forças como a Polícia Rodoviária Federal para prejudicar o processo eleitoral, paralisação de rodovias, atentado à bomba, invasão e depredação das sedes dos três Poderes: tudo isso são exemplos concretos de ações planejadas e orquestradas, que culminariam com a consolidação do golpe de Estado mediante o assassinato de Lula, Moraes e Geraldo Alckmin.

Esses atos compõem uma progressão criminosa com encadeamento lógico, envolvendo autoridades civis, militares e integrantes do governo, com propósito deliberado de ruptura da ordem democrática e deposição violenta de um governo legitimamente constituído. A tentativa de ruptura foi cuidadosamente planejada, com o objetivo de abolir o Estado democrático de Direito e instaurar um regime autoritário. É nesse contexto que o atentado contra Alexandre de Moraes deve ser interpretado: não como uma agressão pessoal, mas como parte do ataque à própria democracia.

Sob a perspectiva dogmática, a tese de impedimento do ministro também não encontra respaldo no Código de Processo Penal. O artigo 256 prevê que o juiz não será considerado suspeito quando a parte, de propósito, agir para criar a relação de inimizade. Essa regra é crucial para impedir que investigados ou réus manipulem o processo e escolham o juiz do próprio caso.

Além de individualizar condutas e responsabilizar os envolvidos, este caso é uma oportunidade de reafirmar a força das instituições democráticas. Afastar o ministro Alexandre de Moraes seria enfraquecer o Poder Judiciário, subverter a legislação processual penal e abrir caminho para que criminosos golpistas escolham quem os julgará —cenário inconcebível em um Estado democrático de Direito.

A costura a inferno aberto do golpe, Muniz Sodré ,FSP

 Quando do atentado do Riocentro, 40 e tantos anos atrás, dirigíamos a TV-E, ao lado de um colega universitário. Recebemos então visitas, uma delas do coronel-ministro. Ele recomendou cautela no noticiário, pois "agimos abertamente, enquanto a direita age embuçada". A conversa, jogo de cena para encobrir censura, valeu uma resposta sorrateira: "Será mesmo, ministro, é difícil validar essa hipótese..." E ele "como assim, então não acham que seja coisa da direita?" Retrucamos: "se estão embuçados, como saber o que são?"

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) fala à imprensa sobre o pedido de indiciamento da PF contra ele e aliados - Pedro Ladeira - 25.nov.24/Folhapress

O diálogo enviesado ficou na memória, pois naquele instante já estava claro que o atentado provinha do sistema. Logo, só eles próprios saberiam quem estava encapuzado. O regime militar estertorava (daí, aliás, a razão do terrorismo), já não mais se invadiam residências de cidadãos inocentes como o ex-deputado Rubens Paiva, mas ainda era tempo de cautela.

O incidente ganha pertinência no quadro das 37 pessoas acusadas de sedição, o núcleo de governo do ex-presidente Bolsonaro, cujos crimes atribuídos podem chegar a 28 anos de prisão. Além das já conhecidas tentativas de abolição violenta do Estado de Direito, estarrece o intento de assassinar as mais altas autoridades da República recém-eleitas.

Há de velho e novo nisso tudo. Nova é a transparência do mal à luz do dia. Meio século atrás, algo se embuçava nas trevas dos porões. Mas a trama centralizada no Planalto sempre transpareceu no regurgitamento verbal do mandatário, nos acampamentos, nas ações terroristas, nos documentos e nos celulares dos mandantes. Crime organizado, com delinquentes agindo a inferno aberto.

Conspiração às claras é estranho fruto de uma realidade paralela, com espionagem semioficial e forma espectral de vida criada pelas redes. A massa arrebanhada trafegava num planeta imaginário feito de celulares, enquanto uma quadrilha empoderada, os mentores da trama, surfava na mesma impunidade sonhada pelos escritórios do crime, despercebido substrato do assassinato de Marielle Franco. Ao lado, inédita lógica tabajara: o golpe seria acionado por vivandeiras acampadas, nada de tanques desmoralizados por fumaça. Era, na autodefinição de um dos generais sediciosos, um "alopramento da rataria, com ética abaixo da cintura".

Ações toscas, linguagem sórdida de submundo, mas com a coerência sádica explicitada por M. Blanchot como o cerne da moral sadiana: "A única regra de conduta é que eu prefira tudo que me afeta com felicidade e que eu tenha como nada tudo que em minha preferência possa resultar de mal para o outro" (em "Lautréamont e Sade"). Nenhuma razão política, apenas o gozo de lesar o próximo.

Na derrama de ficções, a única verdade é a traição. Valeria para todo golpe de Estado. Mas, no caso, o álibi fantasioso do anticomunismo deu lugar a uma modalidade extrema, moralmente intolerável e sádica de agarramento ao poder. Nada, como no passado, de matar ideias de esquerda. O que esteve mesmo em pauta foi o desejo confesso por parte de chefetes e vivandeiras, de exterminar fisicamente o outro de si mesmo, o vizinho pensante. Razoável agora é a perspectiva de que as "quatro linhas" traçadas com água suja se convertam nas quatro paredes sólidas da punição.

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