terça-feira, 6 de agosto de 2024

'Doping corporativo': a venda ilegal de remédio para TDAH que invadiu a Faria Lima, BBC News FSP

 Giulia Granchi

Londres | BBC News Brasil

Marta lutava contra o cansaço no dia a dia. Sem foco para enfrentar atividades do trabalho, numa grande empresa em São Paulo, e ganhando peso, ela achou uma boa ideia quando recomendaram um endocrinologista famoso que poderia ajudá-la.

"A consulta custou R$1.200 e durou apenas 5 minutos. Eu e meu marido saímos com a mesma receita: Ozempic para emagrecer e Venvanse para ter foco — uma combinação que ele aparentemente prescreve para todos."

Ela conta que tentou argumentar se aquele caminho, medicamentoso, seria o único possível para resolver suas queixas. Mas acabou seguindo a receita.

Receitas falsas usadas para comprar medicamentos ilegalmente são vendidas via Telegram - Getty Images

"A experiência com o Venvanse foi a mais impactante. De amor e ódio, eu diria. No primeiro dia, senti um hiperfoco e bem-estar incríveis, fui mais produtiva e motivada, mas sabia que isso era efeito do remédio."

Os comprimidos, prescritos para TDAH e compulsão alimentar, aumentam a liberação dos neurotransmissores dopamina e noradrenalina nas sinapses, que são as conexões entre os neurônios.

Essas substâncias, deficientes em quem tem os quadros citados, são cruciais para a regulação do humor, atenção e comportamento impulsivo.

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"Mas em organismos onde os níveis já são adequados, o aumento pode causar efeitos indesejáveis, como insônia, ansiedade, irritabilidade, impaciência e até agressividade. Casos mais graves incluem convulsões e problemas cardiovasculares", diz Marcos Gebara, psiquiatra e professor convidado do curso de Pós-Graduação de Psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

"Em pessoas predispostas a problemas psíquicos, esses efeitos podem piorar significativamente."

Gebara e outros médicos consultados pela reportagem afirmam que o uso dos comprimidos por pessoas sem diagnósticos que o justifique tem sido cada vez mais comum, e que muitos usuários não sabem ou ignoram que o Venvanse contém anfetamina, uma substância que pode causar dependência.

"O uso requer um acompanhamento médico, sempre. A dependência é um risco, especialmente se a pessoa aumentar as doses sem indicação."

Com medo justamente de que pudesse ficar dependente da ‘sensação de superpoder’, Marta expressou suas preocupações, mas o médico insistiu que o uso era seguro.

"Foi aí que busquei outro profissional, que me ajudou a parar com o remédio, entendendo minha preocupação com os efeitos a longo prazo. Foi difícil aceitar a vida sem Venvanse. Me senti deprimida por algumas semanas."

Amanda também teve acesso ao remédio por prescrição médica e sem ter nenhum dos diagnósticos para os quais a droga é indicada.

Foi ela que, se sentindo esgotada e incapaz de dar conta dos dois empregos que levava, pediu a uma nutróloga que receitasse Venvanse. Ela conta que a médica pediu exames, e com os resultados em dia, forneceu a receita.

"Eu usava os comprimidos esporadicamente, apenas nos dias em que precisava de um desempenho melhor no trabalho. Percebi que me dava um foco e energia extras, mas no dia seguinte estava extremamente cansada e precisava dormir mais para compensar."

Depois que as últimas caixas acabaram, Amanda cogitou pular a fase da consulta médica e comprar os comprimidos direto no mercado ilegal.

"Tinha colegas que me indicaram os caminhos: por grupos nas redes sociais e até com esquemas diretamente com farmácias de rua", conta.

Mas por fim, assim como Marta, ela também relata ter parado de usar o remédio por medo de uma dependência da qual não conseguisse mais voltar atrás.

'Doping corporativo'

Ambas as mulheres têm mais de 30 anos e trabalham em grandes empresas – do ramo de tecnologia e comércio – em São Paulo. Elas relataram que o uso de Venvanse ‘off label’ – com e sem receita médica – é algo comum no ambiente corporativo.

"É mais banalizado do que eu imaginava, e o uso desses remédios cria uma competição desleal, já que levam a um desempenho melhor."

"Trabalho em uma empresa com cultura americana, onde a competição é intensa, e sei que sou comparada a colegas que usam esses medicamentos. Isso aumenta a pressão para ter alta performance, um dos pontos que me levou a tomar", diz Marta.

Os psiquiatras ouvidos pela BBC News Brasil reiteram que há uma ‘onda’ de busca por maior produtividade no trabalho, e o medicamento tem sido usado sem rigor.

Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), explica que, embora quem tome sem ter TDAH ou compulsão alimentar possa ter uma sensação de melhora na produtividade, o efeito é ilusório.

"A sensação de estar mais alerta e produtiva é subjetiva – a pessoa não fica mais inteligente nem necessariamente produz mais. Testes cognitivos mostram que o desempenho de uma pessoa sem transtorno de atenção não é superior com o uso do Venvanse."

Ana, também empregada em uma grande empresa de tecnologia, acabou desistindo da ideia, mas conta que considerou tomar Venvanse ao observar o desempenho dos colegas.

"Eu digo que era um doping corporativo. Eu via a diferença nas pessoas que conhecia; quem usava realmente parecia mais focado no trabalho. Não falavam abertamente porque não era muito bem visto, mas depois de um tempo a conversa fluía, e eu percebi que eram muitas pessoas usando", lembra.

Para o psiquiatra Dartiu Xavier de Silveira, esse uso de Venvanse por quem não precisa realmente do remédio reflete a procura desenfreada por performance na sociedade atual.

"Há uma pressão constante para se destacar e ser bem-sucedido, e pressão, muitas vezes, leva as pessoas a colocar a produtividade à frente da saúde, o que considero um reflexo de um ideal de sucesso muito doentio", avalia.

E as queixas de quem faz o uso indiscriminado podem não ser resolvidas com o remédio para TDAH ou até pioradas por ele.

"Muitos dos pacientes que usam dizem usar porque estão desanimados e querem melhorar a performance", complementa Silvia Brasiliano, psicóloga e coordenadora do Programa da Mulher Dependente Química (PROMUD) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

"Eu sempre os encaminho a um psiquiatra para avaliar se realmente precisam do medicamento. Venvanse não é para qualquer um, não é um remédio que melhora a performance de qualquer pessoa sem efeitos colaterais. Pode causar ansiedade e dificuldade para dormir, por exemplo."

Brasiliano afirma que o uso tem se tornado cada vez mais comum. "Busco explicar que essa droga pode causar dependência e deve ser usada especificamente para transtorno de atenção. Se alguém está desmotivado, pode ser um quadro de depressãoburnout... Para cada situação, é necessário um tratamento diferente."

A psicóloga afirma, ainda, que há pouca informação na literatura científica sobre o abuso de Venvanse. "Há alguns alertas e estudos americanos, mas faltam dados sobre o contexto brasileiro."

Outro uso indevido que tem se tornado cada vez mais comum, de acordo com os médicos, é o recreativo. Por ser um estimulante, há quem compre o Venvanse para usar em festas.

"Venvanse com álcool ou outras drogas estimulantes, como cocaína ou MDMA, é uma combinação muito perigosa. Os riscos incluem problemas cardíacospressão alta, derrame e quadros psicóticos", alerta Silveira, que é um dos fundadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD).

A reportagem da BBC News Brasil encontrou grupos no Telegram onde caixas do remédio são vendidas por mais do que o dobro do preço legal e onde até prescrições médicas falsas são oferecidas.

Como funciona a venda ilegal de Venvanse

Conversa de chat do telegram que mostra vendedores ofertando remédios controlados
Conversa de chat do telegram que mostra vendedores ofertando remédios controlados - BBC

Em farmácias, com uma receita legal, o Venvanse já tem um preço considerado alto em comparação a outros remédios psiquiátricos.

De acordo com as regras da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que limita o preço máximo de medicações no Brasil, uma caixa de 28 comprimidos de 30mg de Venvanse deve custar, na maioria dos estados brasileiros, no máximo R$ 365,38.

Para as versões de 50mg e 70mg, o valor pode chegar a R$443,07.

Em um grupo de Telegram onde se vendem, ilegalmente, caixas de Venvanse e outras substâncias controladas, como diferentes remédios psiquiátricos e até drogas anabolizantes, o remédio chega a custar R$850 na dosagem mais alta.

A BBC News Brasil perguntou ao Telegram se a plataforma estava ciente e se tomariam medidas para tentar evitar o comércio ilegal, mas não recebeu retorno até o momento da publicação desta reportagem.

Os atendentes do canal também oferecem ajuda para falsificar receitas amarelas, o tipo exigido em farmácias para o Venvanse.

A falsificação de receita médica é crime previsto no art. 298 do Código Penal com pena de um a cinco anos e multa. Nesses casos, o risco todo fica a cargo de quem vai tentar usar o documento falso na farmácia.

Para ter acesso ao receituário amarelo, os profissionais – sejam eles médicos, veterinários ou cirurgiões-dentistas – devem se cadastrar previamente na Autoridade Sanitária local.

Após o cadastro, o órgão de vigilância fornece ao prescritor um talonário com uma quantidade específica e numeração dos receituários. Estes profissionais precisam estar devidamente inscritos nos seus respectivos Conselhos profissionais.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirmou à reportagem que há 15 dossiês investigativos relacionados ao comércio ilegal, em sites sem a devida autorização e sem receita médica, do Venvanse.

A agência reitera que todos os seus canais de atendimento podem ser usados para denúncias de venda ilegal.

A única responsável pela produção de Venvanse atualmente, a farmacêutica Takeda, afirmou à reportagem que "firmemente rechaça qualquer iniciativa que estimule o uso de medicamentos sem prescrição médica. Por isso, os medicamentos da Takeda são vendidos exclusivamente nos canais devidamente autorizados."

Venvanse para quem precisa de Venvanse

O Venvanse passou a ser comercializado no Brasil em 2010, a princípio recomendado apenas para quem tem diagnóstico de TDAH, um dos distúrbios mentais mais comuns, de acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde).

O transtorno afeta de 5 a 8% das crianças, principalmente meninos, e frequentemente persiste na vida adulta.

As causas exatas ainda não são totalmente compreendidas, mas alguns fatores que podem desempenhar um papel incluem: genética, já que o TDAH pode ser hereditário; experiências traumáticas significativas na infância; nascimento prematuro; lesão cerebral; além de a mãe fumar, consumir álcool ou sofrer de estresse extremo durante a gravidez, ou ser exposta ao chumbo durante a gestação.

O diagnóstico é principalmente clínico.

"É baseado em sintomas principalmente do período da infância, atentando para déficit de atenção, hiperatividade e impulsividade e considerando o contexto familiar de cada um", afirma o psiquiatra Luiz Sperry, de São Paulo.

Além do Venvanse, a Ritalina é outro remédio bastante comum para o transtorno.

"Ambos aumentam a dopamina na região frontal do cérebro. Algumas pessoas se adaptam melhor a um do que a outro. A principal diferença é que o tempo de duração do efeito da ritalina é curto, cerca de 4 horas, enquanto o Venvanse dura de 8 a 12 horas", afirma Dartiu Xavier da Silveira.

Dez anos depois, em 2021, o Venvanse também passou a ser indicado para compulsão alimentar, um quadro caracterizado por episódios de ingestão excessiva de alimentos em pouco tempo, acompanhados por sensação de perda de controle e seguidos por sentimentos de culpa e vergonha.

"Para esses casos, o remédio também pode ajudar porque é a anfetamina presente no comprimido reduz o apetite. Dá a sensação de saciedade, como se a pessoa tivesse comido há pouco tempo", diz Sperry.

A droga não substitui, no entanto, outros tipos de tratamentos que podem ser recomendados para o quadro, como acompanhamento com psicólogo e psiquiatra.

Quebra de patente

Atualmente, a farmacêutica Takeda detém a patente do Venvanse, o que impede a produção de versões genéricas (com a mesma formulação, mas sem a marca) por outras empresas.

A quebra da patente estava prevista para 2024, mas a Takeda pediu uma extensão, alegando que a Anvisa demorou mais do que o previsto para conceder a patente no passado. A decisão está em processo judicial.

Com o vencimento da patente, espera-se maior disponibilidade do tratamento para quem precisa - mas, com o preço mais baixo, também é possível que o uso indiscriminado aumente, segundo especialistas.

 

São Paulo

transporte público por ônibus perdeu quase metade de seus passageiros na última década no Brasil.

Entre os motivos apontados estão o crescimento do trabalho remoto e das vendas online, sem que haja necessidade de deslocamento, além do aumento na utilização de veículos individuais, como carros e motos, e os efeitos da pandemia que não foram recuperados pelo sistema.

Em abril de 2013, cerca de 381,1 milhões de pessoas usaram os coletivos urbanos. No mesmo mês do ano passado foram 204,5 milhões, queda de 46%.

Na comparação entre os meses de outubro de 2013 e de 2023, a quantidade de passageiros transportados passou de 398,9 milhões para 223 milhões (44% a menos).

A imagem mostra uma fila de pessoas aguardando para embarcar em um ônibus em uma estação. O ônibus está estacionado próximo à plataforma, e várias pessoas estão na fila, algumas já entrando no veículo. Ao fundo, há árvores e uma estrutura coberta que abriga a estação. O ambiente parece movimentado, com um dia claro.
Passageiros embarcam em terminal de ônibus no Tatuapé, zona leste de São Paulo; capital paulista é uma das cidade brasileiras que paga subsídio às empresas operadoras do transporte público - Zanone Fraissat - 17.dez.23/Folhapress

Os dados fazem parte da edição 2023-2024 do Anuário produzido pela NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), que será apresentado na manhã desta terça-feira (6) em um evento do setor na cidade de São Paulo.

A série histórica do anuário compara sempre os meses de abril e outubro.

Os sistemas monitorados incluem Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, que representam 33% da frota nacional, atualmente em 107 mil veículos, e 34% da quantidade de passageiros transportados no país.

Outros números mostram que em 2023, os ônibus urbanos levaram 19,1 milhões de pagantes a menos por dia, em relação a 2014.

"Estamos em um momento de transição. O setor vem se recuperando da dramática crise da Covid-19 e os dados mostram que a demanda dificilmente retornará aos níveis pré-pandemia sem a adoção de novas políticas públicas, como um novo marco legal, priorização para o transporte público e incentivos governamentais", afirma em nota Francisco Christovam, diretor-executivo da NTU.

Em média, nos meses de abril e outubro de 2023, o transporte coletivo por ônibus registrou um índice de 1,54 passageiro transportado por quilômetro, retornando ao mesmo patamar analisado entre 2016 e 2019.

O estudo aponta que a quantidade de viagens realizadas por passageiros pagantes caiu 1,9% no ano passado, na comparação com o ano de 2022.

Conforme o relatório, nas últimas décadas outros setores, como o transporte individual, receberam ondas de investimentos, enquanto a mobilidade urbana pública e coletiva acumulou problemas crônicos de sustentabilidade financeira e operacional, com reflexos na perda de usuários.

A idade média da frota de ônibus no ano passado era de 6,5 anos —o ideal, aponta o anuário, é de cinco anos.

Conforme o estudo, desde 2011, a idade média dos coletivos só aumenta. "O que afeta a qualidade dos serviços", diz o texto, que aponta a fraca demanda como responsável por impactar o caixa das empresas operadoras, o que leva ao adiamento de investimentos, "com reflexos na renovação das frotas de ônibus urbanos".

As passagens tiveram aumento médio no país de 6,6% no ano passado, com preços entre R$ 5 e R$ 6,50.

"O período recente foi marcado pelo início do aporte de subsídios aos passageiros do transporte coletivo por ônibus", diz o anuário.

De acordo com o levantamento, atualmente 365 cidades têm algum subsídio na política tarifária do transporte coletivo por ônibus. Esse grupo é formado por 135 municípios que adotaram a tarifa zero.

A amostra pesquisada pela NTU afirma que a média dos subsídios aplicada atualmente no Brasil é de 30% do custo total dos serviços, "ainda abaixo do patamar aplicado internacionalmente, em média 55%"

Em 2023, o índice de frota total usada ficou praticamente estável diante dos dados do ano anterior, com queda de quase 3% quando se comparara os meses de abril, e alta de 2% na comparação entre os meses de outubro.

Entre as causas, destacam-se a estagnação da oferta de transporte coletivo por ônibus e também a redução da inauguração de novos projetos de infraestrutura de mobilidade coletiva (BRT, corredores de ônibus e faixas exclusivas), segundo a NTU.

Os valores de salários de motoristas, praticados em todas as capitais brasileiras, aumentaram 11,8%, no comparativo dos meses de dezembro dos anos de 2022 e 2023 —a inflação no mesmo período foi de 4,62%, segundo o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo).

O anuário aponta para promessas feitas em ano eleitoral, que podem ser engavetadas com após a votação —em 2024 serão escolhidos prefeitos e vereadores no Brasil—, como o aumento de gratuidades no transporte urbano ou a ampliação de linhas e frotas.

A qualidade e a eficiência do transporte coletivo, diz o documento, não podem ser aprimoradas tendo como base apenas medidas pontuais (e eleitoreiras).

"É necessário um conjunto de iniciativas bem planejadas, de longo prazo, que envolvam idealmente as três esferas de governo (União, estados e municípios) e permitam aos proponentes e executores das políticas de mobilidade definir responsabilidades e firmar compromissos viáveis para a execução de programas de infraestrutura, renovação da frota e garantia de tarifas módicas e acessíveis, que tenham consistência e continuidade", afirma.