domingo, 4 de fevereiro de 2024

Elio Gaspari- Moro subirá ao patíbulo com cinzas da Lava Jato nos arquivos do Judiciário, FSP

 Girolamo Savonarola (1452-1498) foi um frade florentino que saltou da obscuridade para a fama em poucos anos. Começou a pregar contra a corrupção da Igreja e de Florença em 1490, quando Leonardo da Vinci conheceu seu namorado. Em 1495, quando um escultor de segunda quebrou o nariz de Michelangelo, o frade radicalizou seu discurso, ameaçando a autoridade do papa Alexandre 6° (Rodrigo Borgia, feito cardeal aos 25 anos, foi pai de pelo menos quatro filhos).

Dois anos depois, Savonarola era dono da cidade de Maquiavel e Sandro Botticelli. Pregando contra o luxo, queimou baralhos, poesias, esculturas e quadros numa grande "fogueira das vaidades".

Eram muitos seus inimigos. Savonarola foi excomungado em 1497 e desafiado em março de 1498. Preso e torturado, confessou-se doido. Foi enforcado e queimado na linda praça de Florença. Dele, restam sermões, alguns retratos e sua cela no convento. Uma pequena placa no chão marca o lugar de sua execução. Do outro lado do mundo, o português Vasco da Gama conhecia a banana.

Sergio Moro em sessão da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania - Roque de Sá - 7.nov.23/Agência Senado

Só em 1517, longe da Itália, outro frade, o alemão Martinho Lutero, deu início a uma reviravolta nas relações com o Papado, abrindo o cisma do protestantismo. De Savonarola resta pouca coisa. Espremendo, quase nada. Por tê-lo ouvido, Sandro Botticelli queimou alguns de seus quadros e nunca mais pintou direito.

Pindorama do século 21 nada tem a ver com a Florença do 16. Faltam-lhe Leonardo, Maquiavel e Michelangelo. Sergio Moro, contudo, fez um percurso semelhante ao de Savonarola. Em poucos anos foi da obscuridade de uma vara de Curitiba para a fama da Operação Lava Jato. Como ele, tornou-se dono da cidade encarnando o combate a uma corrupção escrachada, provada e confessada.

Moro fez muitos inimigos. O tempo passou, e o juiz de Curitiba, excomungado pelo Supremo Tribunal Federal, elegeu-se senador e está a caminho da perda do mandato na praça do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Esteve perto do julgamento, mas a montagem do patíbulo foi adiada, enquanto suas prédicas são esfareladas. Sua Lava Jato vem sendo meticulosamente desmontada e agora entrou na fase das indulgências pecuniárias.

O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, abriu a temporada suspendendo a multa de R$ 10,3 bilhões dos irmãos Batista, da J&F. Na semana passada, suspendeu o acordo e a multa da Novonor (ex-Odebrecht).

Com duas canetadas, empresas receberam a expectativa de um alívio de algo em torno de R$ 15 bilhões, ervanário equivalente ao custo mensal do programa Bolsa Família, que ampara mais de 40 milhões de pessoas. Com ventos tão bons, Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, anunciou que recorrerá ao ministro. Ele não será o último da fila, pois há muitos outros conversando com seus advogados.

Com suas razões, Toffoli suspendeu multas que resultaram de um acordo feito pelas empresas, em busca de leniência por conta de ilícitos que, confessadamente, haviam praticado.

Pela Odebrecht, assinaram 77 executivos da empresa, inclusive o patriarca Emílio e seu filho Marcelo. O poderoso herdeiro foi condenado a 19 anos de prisão por Moro em 2016. Com a colaboração, teve a pena reduzida para dez anos e o Supremo baixou-a para sete anos e meio. Está livre.

Na Florença do século 16, os efeitos das prédicas do frade Savonarola só começaram a ser extirpados depois que ele foi queimado e suas cinzas atiradas no rio que corta a cidade. Em Pindorama do 21, Moro subirá ao patíbulo com as cinzas da Lava Jato guardadas nos arquivos do Judiciário.

As semelhanças entre Savonarola e Moro apagam-se diante do tamanho da diferença posterior às prédicas de ambos contra a corrupção. Chamado pelo papa Borgia, o frade não foi a Roma. Chamado por Bolsonaro, Moro foi para o Ministério da Justiça do país de Macunaíma. Mais tarde, integrou-se à sua corte durante os debates da sucessão de 2022.

Mulheres na Abin

Lula nomeou cinco mulheres para chefiar departamentos da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. Quem acha que mulheres nessas posições podem significar refresco, engana-se.

Donald Trump colocou a primeira mulher à frente da Central Intelligence Agency, a CIA. Funcionária de carreira, Gina Haspel chefiou uma prisão clandestina da agência na Tailândia e passou pela central de interrogatórios de Guantánamo. Ao contrário de muitos marmanjos de Brasília, ela não participa de redes sociais. Três outras funcionárias da CIA foram decisivas para a localização do terrorista Osama Bin Laden em 2011.

Isso para não mencionar a inglesa Daphne Park (1921-2010), que se tornou a baronesa Park de Monmouth em 1990. Ela rodou o mundo e estava no Congo em 1961, quando o ex-primeiro-ministro Patrice Lumumba foi assassinado. Pouco antes de morrer, ela teria revelado a um colega da Câmara dos Lordes que "fomos nós".

Parece que não. Saiu há poucos meses o excelente livro "The Lumumba Plot", de Stuart Reid, editor da revista Foreign Affairs. Na cena do fuzilamento de Lumumba estavam um pelotão de congoleses e quatro policiais belgas.

Celso Rocha de Barros - Debate sobre industrialização é bem-vindo se não substituir foco em reformas institucionais, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

No último dia 22, o governo anunciou o programa Nova Indústria Brasil (NIB), que busca retomar a industrialização brasileira, interrompida nos anos 80 do século passado.

NIB foi recebida com desconfiança por quem lembra do fracasso de políticas intervencionistas de governos anteriores, como a tentativa de criar "campeões nacionais" ou as isenções fiscais do governo Dilma. Essas coisas foram caras, não reverteram a tendência de declínio do setor industrial brasileiro e falharam como tentativa de "pacto entre capital e trabalho": terminaram com os patos da Fiesp na rua. Um desastre.

Os críticos da NIB têm, portanto, lá suas razões. Mas não é o caso de descartar a NIB por princípio. Muitos países fazem política industrial com sucesso.

Lula e Alckmin durante apresentação da nova política industrial, no Palácio do Planalto - Gabriela Biló - 22 jan. 2024/Folhapress

Em entrevista à Folha, o diretor de Planejamento e Estruturação de Projetos do BNDES, Nelson Barbosa, disse que os erros do passado não serão repetidos: a taxa dos empréstimos para o setor privado será a de mercado, ao contrário do que ocorreu no governo Dilma. Os empréstimos com taxa direcionada seriam voltados para setores que podem produzir externalidades positivas, como a conversão ecológica da economia ou a inovação tecnológica.

É uma diferença importante, e positiva. Mas o governo ainda precisa nos contar muito mais detalhes sobre o que pretende fazer, em especial quando nos couber pagar os impostos de alguém que ganhará isenção.
      
Tampouco me pareceu claro como será a integração das universidades e centros de pesquisa nos projetos de inovação tecnológica, e a própria ideia de "digitalização" (missão 4) me pareceu vaga (talvez por ignorância minha). Não achei suficientemente demonstrado que as medidas propostas bastem, por exemplo, para que indústrias de supercondutores se instalem no Brasil.

Concordo inteiramente que incentivar a inovação deve ser uma prioridade. Mas ainda não entendi no que o novo plano é melhor, nessa área, do que iniciativas anteriores, como a Lei do Bem, de 2005, que a NIB propõe atualizar de maneira ainda não muito clara.

Na verdade, parte importante da NIB está fora do que se convencionou chamar de política industrial: a conversão ecológica da economia (missão 5 da NIB) e os investimentos em infraestrutura urbana (missão 3), por exemplo, parecem mais investimentos em infraestrutura do que política industrial, e são duas boas ideias.

Por fim, devemos nos perguntar quem coordenará o imenso esforço de integração ministerial previsto na NIB. Em um texto produzido a pedido do governo brasileiro ("Innovation-Driven inclusive and sustainable growth: challenges and opportunities for Brazil"), a economista Mariana Mazzucato notou uma certa sobreposição de políticas: a Fazenda tem a conversão ecológica, a Casa Civil tem o PAC, o MDIC propôs as missões da NIB, o BNDES tem seus próprios projetos.

Mazzucato sugeriu a centralização do controle na Casa Civil ( pág. 9) ou no Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (pág. 14). Duvido que essa disputa seja pacífica.

Enfim, se o governo tiver consciência de que política industrial pode complementar, mas não substituir, reformas institucionais e investimento em capital humano, o debate é bem-vindo.

José Henrique Mariante - Desistir, verbo intransitivo, FSP

 No último domingo (28), o jornal americano The Boston Globe estampou em sua Primeira Página um título elegante em capitulares: "Dying on Lynda’s Terms", morrendo nos termos de Lynda. Na foto, em cinco colunas, o marido se emociona ao colar o rosto no de Lynda, acamada, no amanhecer do dia em que ela vai morrer. Lynda Bluestein, 76, enfermeira aposentada com câncer terminal, levou meses para conseguir um suicídio assistido em Vermont, pois seu estado natal, Connecticut, proíbe a prática.

A reportagem é uma descrição desses meses com médicos, advogados e angústia. Começa com a chegada a Vermont, na véspera da data marcada, "após uma viagem que pareceu que nunca acabaria", um lide engenhoso que parte do banal para sugerir alívio. A matéria ganha outros contornos, porém, pois acompanhada de uma nota da editora-executiva: o autor do texto, Kevin Cullen, se envolveu pessoalmente com a história que narrou, falta grave em qualquer manual de ética jornalística, mas ainda assim o Globe decidiu bancar a publicação.

Integrante do time do jornal que ganhou o Pulitzer em 2003 por denunciar abusos sexuais dentro da Igreja Católica (episódio retratado no filme "Spotlight", de 2015, vencedor de dois Oscars), Cullen assinou um documento, durante a apuração da reportagem, atestando que Lynda tinha plena consciência do que fazia quando pediu a eutanásia. A lei em Vermont exige que duas pessoas que não sejam da família e não tenham relação com o processo sejam testemunhas da sanidade mental do solicitante diante de ato tão grave. O jornalista não explicou por que cruzou uma fronteira tão óbvia da profissão.

Relatar alguém abrindo mão da própria vida com a dignidade possível não é tarefa simples. Envolver-se emocionalmente com o fato é mais do que perder a objetividade, é torná-lo pessoal, transferir para si uma questão que não é sua. Cullen se tornou a notícia, talvez até guiado por compaixão, mas a história era só de Lynda.

Nela se percebe um extremo do exercício de desistir, tema, por coincidência, de uma série incomum que a Folha publica desde meados de janeiro. Desistir de coisas difíceis, notadamente da ideia até aqui generalizada de que não continuar implica fracasso.

Um jovem de costas escreve a palavra desisto como um grafite sobre um fundo marrom.
Folhapress

Tem a ver com saúde mental, tanto que uma das primeiras reportagens fala de Simone Biles (uma pena o foco não ter ido para Naomi Osaka, a primeira a chutar o balde no cruel esporte de alto rendimento), tem a ver com os chavões da sociedade (faculdadetrabalhoamor romântico etc). Tem a ver com uma geração mais aberta à discussão, que prefere ter consciência das próprias limitações, não escondê-las.

PUBLICIDADE

Talvez soe como autoajuda, item que sobra na Folha, nas livrarias e nas redes sociais. A diferença está na radicalidade da proposta, nada prosaica, refletida não apenas em uma pauta, mas em uma família de reportagens. Ideia que há alguns anos não passaria pelo crivo de muitos editores, de gerações anteriores, como a deste ombudsman, em que desistir era quase sempre covardia. É bom sinal, sinaliza certa renovação do produto. Ou que a ousadia, marca de projetos históricos deste jornal, pode tomar formas distintas.

Curiosamente, a série "Eu desisto" brota de outra iniciativa da Folha, o Todas, que vincula "conteúdo voltado para mulheres" com uma campanha de assinaturas. A descrição tem um ar de revista feminina dos anos 90, mas uma passada no cardápio do site revela assuntos de interesse e boas reportagens. Razões comerciais parecem fazer o jornal insistir em certos formatos, como o das séries, algumas interessantes, outras nem tanto. Boas ideias prevalecem, desde que os formatos não atrapalhem.

FACE, 20

A rede social completa duas décadas neste domingo (4) com muitas reportagens, polêmicas e contas a pagar. Uma delas apareceu na mesa de Mark Zuckerberg, na quarta-feira (31). Os barões da alta tecnologia eram inquiridos no Senado dos EUA sobre o estrago das redes sociais em crianças, quando o chefão da Meta foi instado a se dirigir às famílias presentes à audiência. Pais e mães mostravam fotos de filhos que perderam para o bullying patrocinado pelos algoritmos. Zuckerberg se levantou e, muito constrangido, pediu desculpas. Imagem e manchete dos grandes jornais americanos no dia seguinte, a notícia não chegou ao impresso da Folha e virou nota no site.

FOLHA, 103

No próximo dia 18, véspera do aniversário de 103 anos da Folha, a coluna do ombudsman, em edição especial, trará uma entrevista com o Diretor de Redação do jornal, Sérgio Dávila. Os leitores ficam convidados a enviar questões, assim como críticas e sugestões, através do email da seção, ombudsman@grupofolha.com.br. Só não vale perguntar se a Folha "endireitou". Essa já está na lista.