segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Nem só de eleições vivem as democracias, FSP

 Mônica Sodré

ientista política e diretora-executiva da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade)

José Álvaro Moisés

Cientista político e professor titular da USP

Floriano Pesaro

Sociólogo, é ex-secretário de Desenvolvimento Social de São Paulo (2015-2018, governo Geraldo Alckmin) e ex-deputado federal pelo PSDB-SP (2015-2019)

A crise econômica causada pela pandemia encontra outra enfrentada por parte do globo nos últimos 20 anos: a democrática. Pela primeira vez neste século, a maior parte do mundo não é uma democracia. Isso não se explica apenas pelas suas dificuldades em locais nos quais já estava consolidada —como nos EUA e na Europa ocidental—, mas também pelo surgimento de regimes híbridos, que mantêm os aspectos eleitorais enquanto suprimem liberdades de imprensa e de expressão, caso de Hungria e Filipinas.

Sua retração global é sentida em disputas eleitorais enviesadas, vulnerabilidade a rupturas, manifestações populares, desrespeito à oposição, censura à imprensa, esvaziamento dos partidos e dos Parlamentos e perseguições.

Regimes democráticos não se realizam somente com a garantia de eleições livres, regulares e justas. Sua realização envolve o entendimento cotidiano de seus valores, incorporados em suas normas e comportamentos, e a existência de condições, inclusive materiais, que assegurem aos cidadãos a capacidade de interferir nos rumos do país e da política.

Sua superioridade frente a outras formas de organização da vida coletiva se justifica por três aspectos: é a única na qual os direitos de existência, expressão e participação das minorias são respeitados e preservados, as decisões são consideradas vinculativas por excelência e, por fim, na qual se pressupõe aceitação às regras do jogo.

Há, ainda, um aspecto pouco usual, mas que não deve nos escapar: regimes autoritários têm o resultado de seu processo político como algo dado e, portanto, a certeza como seu elemento norteador. São as democracias, no entanto, os regimes nos quais estando o próprio processo político em aberto, estão também seus resultados, permitindo que haja a esperança de que o amanhã possa vir a ser melhor, de que a esperança —o amanhã— venha brindar os filhos de uma maneira que não foi permitido aos pais usufruir.

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No Brasil, nosso período democrático mais longevo completou 30 anos e nossa democracia liberal encontra-se sob risco permanente e com gradativa morte de seu vigor.

Morre todos os dias, quando há estímulo da violência por parte de quem ocupa postos de poder. Quando os que ocupam tais posições reivindicam para si a representação exclusiva do povo e seus interesses. Quando os limites entre público e privado ficam quase invisíveis. Quando há esforço para refundar o passado e brigar com a ciência. Quando a desinformação vira arma e as instituições passam a ser orientadas por uma visão que tem como finalidade esvaziá-las de capacidade. Quando a inserção internacional e, portanto, a capacidade de cooperação e relacionamento externos são comprometidas. Quando não há mais imagem externa a zelar.

Hoje, o vigor da nossa democracia morre também porque, além das mais de 100 mil vítimas fatais de uma nova doença, condenamos o futuro de muitas gerações. Nossa incapacidade de garantir a preservação da renda, de apresentar um plano crível de recuperação econômica, de aliarmos a retomada ao desenvolvimento sustentável, de enfrentarmos as históricas e agora mais profundas desigualdades, condenam ao âmbito das certezas a expectativa de vida, a esperança e o futuro de toda uma nação.

Ruy Castro - Morreu o inventor do mouse, FSP

 

Chamava-se William English e só agora sabemos que ele existiu

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Se, neste momento, você estiver manipulando um mouse, deve isso a um sujeito que morreu outro dia: o engenheiro e pesquisador americano William English, aos 91 anos. Só agora soube que ele existia, e foi pena. Tenho fascínio por pessoas que criaram ou ajudaram a criar ferramentas que se incorporaram à nossa vida e que, de tanto usá-las, passamos a achar que sempre existiram. Quem inventou, por exemplo, o abridor de lata? A espátula para calçar sapato? O coça-costas? A gravata-borboleta? A vitamina de abacate?

Você dirá que essas coisas são irrelevantes e não se comparam às façanhas da tecnologia. Do que discordarei, argumentando que todas são ou foram da maior importância para mim, inclusive a gravata-borboleta, que usei em certa fase. Mas é claro que a tecnologia sempre levará vantagem. É mais fácil descobrir o inventor do desintegrador de partículas que o da batedeira de bolo. Mesmo assim, duvido que, mesmo entre os que passam o dia com um mouse na mão, muitos soubessem de William English.

Ou de Douglas Engelbart, que, em fins dos anos 50, perguntou-se por que os computadores tinham de ser aqueles trambolhos, que trabalhavam com cartões perfurados e ocupavam salas inteiras. Engelbart concluiu que a solução era uma tela com imagens manipuladas por um cursor. Mas como chegar a isso? English, seu colega no Instituto de Pesquisa de Stanford, na Califórnia, entendeu o que ele queria dizer —o mouse— e fabricou-o para ele.

A primeira demonstração foi num auditório em San Francisco, em 1968. Donde o mouse surgiu 15 anos antes que Steve Jobs pusesse um computador na nossa mesa —o que ele não poderia ter feito sem o mouse.

English precisou morrer para que os jornais falassem dele. Em breve, alguém inventará outra coisa e o mouse ficará tão pré-histórico quanto os cartões perfurados. Os quais, na minha opinião, tinham muito mais charme.

O QUE A FOLHA PENSA No meio, parado

 

País é firme no pacto democrático, mas não abre caminho para o desenvolvimento

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Moradores caminham por passarela em frente à favela da Rocinha, no Rio de Janeiro - Lalo de Almeida - 13.mai.19

O desenvolvimento de uma nação é um processo paulatino, determinado pelas escolhas organizacionais da sociedade ao longo de gerações, impulsionado pela inventividade, avaliado pelos graus de prosperidade material e de compartilhamento de riqueza e poder político e sujeito a paralisia e reversão.

Por vias diversas, a investigação acadêmica nas últimas décadas tem convergido para essas conclusões. Enfraqueceram-se teorias que enfatizavam fatores geográficos, religiosos e culturais, as que enxergavam na riqueza de um país a pobreza de outros e as que previam a decadência do capitalismo.

Dentre as obras mais bem-sucedidas na divulgação do resultado dessa safra de pesquisas inovadoras está “Por Que as Nações Fracassam” (2012), parceria entre o economista Daron Acemoglu e o cientista político James Robinson.

O livro continha apreciação positiva do Brasil. A ascensão do Partido dos Trabalhadores, a redução da pobreza e o crescimento econômico foram considerados indicadores da emancipação, de um padrão oligárquico de apropriação do poder para um modelo aberto.

Oito anos depois, Acemoglu revela frustração. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, atribuiu a quebra de expectativas à corrupção escancarada no governo petista, à gestão Michel Temer (MDB) e à ascensão de um presidente com viés autoritário, Jair Bolsonaro.

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A democracia próspera do livro teria agora o futuro ameaçado.

A solução do dilema parece assentar-se na correção do viés excessivamente otimista da obra e, também, do demasiadamente pessimista da entrevista. O Brasil não estava tão bem nem está tão mal —em que pese a tragédia das 100 mil mortes pela Covid-19.

Problemas que remontam ao passado mais distante continuam presentes. A produção por trabalhador tem sido praticamente a mesma há 40 anos. A educação, apesar da injeção de recursos, condena a maioria da população à baixa renda.

O apetite por privilégios mantém-se excitado, como se vê no incipiente debate da reforma tributária.
De outro lado, o edifício da democracia consolidada no pacto constitucional de 1988, submetido a desafios, dá seguidos exemplo de solidez. Demonstra cotidianamente aos incitadores da truculência que esse meio não terá guarida.

Perde-se tempo e dissipa-se energia cívica, é fato. A facilidade com que presidentes põem-se a destruir consensos técnicos na condução das finanças públicas, da educação e da saúde amplia o nosso atraso e o fardo das gerações subsequentes.

Parado, no meio do caminho entre o grupo de nações pobres e o clube dos ricos, mas firme no compromisso democrático —assim está o Brasil, e não é de hoje.

editoriais@grupofolha.com.br