domingo, 9 de agosto de 2020

Pandemia da Covid-19 é hecatombe brasileira, Reinaldo Lopes, FSP

 

É preciso ser muito tapado, maluco ou canalha para achar que temos mais é de tocar a vida

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Não existe absolutamente nada de normal no que está acontecendo. É preciso ser muito tapado, maluco ou canalha para achar que temos mais é de tocar a vida. Apenas a mais completa burrice ou desonestidade explica que o supremo mandatário de um país do século 21 não esteja arrancando os cabelos diante da morte de 100 mil pessoas em cinco meses por causa de uma doença infecciosa.

Mesmo numa nação tão desigual e ignorante quanto a nossa, já deveria estar abundantemente claro que algo fora da escala normal das coisas está se desenhando. A gripe espanhola, pior pandemia dos últimos séculos, matou 35 mil pessoas no Brasil (quase certamente uma subestimativa, mas ainda assim eloquente). Em 20 anos, de 1982 a 2002, a Aids ceifou as vidas de cerca de 150 mil brasileiros. Como é perfeitamente concebível que cheguemos a esse número tétrico no começo de 2021, só posso concluir que alguém está tentando justificar um slogan de campanha na linha 20 Anos em Um.

Não é apenas quantitativo. Estamos vivendo também um mergulho qualitativo no abismo. Um dos maiores triunfos da ciência médica em grande parte do mundo foi ter transformado o espectro primordial das doenças infecciosas em algo que, na imensa maioria dos casos, não precisamos mais temer. Vacinas, antibióticos e métodos eficazes de prevenção fizeram com que a morte causada por tuberculose, sarampo ou uma infecção besta na garganta deixasse de ser a regra, como era ainda no começo do século 20, para virar a exceção da exceção em qualquer lugar com algum sistema de saúde (e um mínimo de cérebro para continuar vacinando crianças em massa).

Graças a essa revolução científica e médica, o “normal” hoje é morrer em idade avançada e aos poucos, em especial de doenças cardiovasculares e câncer, as principais causas de morte no Brasil hoje. Mas a Covid-19 já está na terceira posição. De novo: fazia pelo menos um século que uma única doença infecciosa não ocupava esse posto no país.

É óbvio que parte dessa conta deve ser creditada ao fato de que o Sars-CoV-2 acabou de saltar de animais para seres humanos e, portanto, ninguém era imune a ele. Também é óbvio que a população brasileira é grande, o que explica parcialmente o número de mortes. “Ah, mas tem de ver as mortes por milhão de habitantes”, diz o espertalhão.

Mas é justamente o fato de que ninguém tinha imunidade contra o vírus, e o de que muita gente no Brasil ainda não teve contato com ele, que mostram como foi coisa de lunático não ter uma estratégia clara, coordenada nacionalmente e mais dura contra a doença. As ideias de jerico e as declarações que minimizaram a gravidade do problema, as apostas em quimeras farmacêuticas, as máscaras no queixo e as cavalgadas no STF —tudo isso custou vidas. E ainda há de custar dezenas de milhares, na melhor das hipóteses. E aí até a desculpa esfarrapada de “mortes por milhão de habitantes” vai desabar.

Um velho canalha disse certa vez que, se uma morte é uma tragédia, 1 milhão de mortes é só estatística. Isso só acontece, porém, quando a gente tolera esse tipo de raciocínio. E o primeiro passo para evitar que a tragédia vire farsa é jamais esquecer.

Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Antonio Prata - Crônica das 100 mil mortes anunciadas pela Covid-19, FSP

 Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia. Dez vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto.


Era óbvio, mas segue sendo surpreendente que um presidente eleito hasteando a bandeira da morte nos entregue, vejam só, a morte. Prometeu 30 mil cadáveres para resolver o Brasil, nos entregou três vezes isso em meses: e seguimos contando os corpos. Cem mil de Covid, outras dezenas de milhares de bala, de acidente de carro, de burrice, de séculos de descalabros culminando nos desvarios de um ser humano decrépito apavorado com a sombra da própria masculinidade. Um eunuco existencial arrotando priapismo.

O erro da ditadura foi ter torturado e não matado, ele disse. Agora nos tortura e nos mata diuturnamente. Contra o delírio de um complô mundial de foice e martelo, oferece a foice, somente, ceifando. Nossa bandeira jamais será vermelha. Claro que não. Será preta. Já é preta. Não como Preta Gil ou “Preta, Pretinha” ou “um negro norte-americano forte”. Preta como a noite, a floresta carbonizada por Ricardo Salles, os dedos dos pés dos mortos por asfixia na “gripezinha”.

Atrás de mim, na televisão, Caetano Veloso canta cercado pelos filhos. “Tigresa”, “Um Índio”, “Pulsar”, “Odara”. Tudo é “divino, maravilhoso”, mas me soa a um réquiem para um país defunto, de projetos defuntos, de esperanças defuntas, com uma autoimagem defunta. Parece o “Canto do povo de um lugar” há muito extinto. “O sonho acabou, quem não dormiu em sleeping-bag nem sequer sonhou”. “A tristeza é senhora”.

Que país é esse em que vivemos no dia 9 de agosto de 2020? Que gente é essa que se cala diante da morte do João Gilberto, manifesta pesar por MC Reaça e desdém pelo falecimento desnecessário e criminoso de 100 mil? “Careta, quem é você?/ Que não sentiu o suingue de Henry Salvador/ Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô/ E que não riu a risada de Andy Warhol/ Que não, que não”. Que não, que não, que não, que não. Imbecis. Assassinos. Burros. “Coragem é poder dizer sim”.

Assisto à live do Caetano como se fosse o “Sermão da Montanha”. Aguardo um norte. Uma revelação. Mas quando ele canta as incompetências da América católica (ou neopentecostal), onde “cada paisano e cada capataz”, que “com sua burrice fará jorrar sangue demais” e “sempre precisará de ridículos tiranos”, dói. E quando canta as maravilhas do que já aspiramos a ser, do que já pudemos e poderíamos ser —“os hermetismos pascoais, os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais”— dói ainda mais.

Hermeto tocando chaleira. Garrincha driblando os Joões. Os jardins do Burle Marx. A utopia da miscigenação. Nelson Rodrigues. Pixinguinha. Drummond. Grupo Corpo. Machado de Assis. Luiz Gonzaga. Floresta. Água. Sol. Mar. Peixe. Fruta. A Semana de 22. A Tropicália. Tom e Vinícius. Elis. O recuo da bateria na Marquês de Sapucaí. Tudo isso parece ter sido eclipsado por um vespertino policialesco do SBT. Chacrinha perdeu pro Sílvio Santos. Pegou fogo no museu.

Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia. Dez vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto. Caetano canta “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Espero que esteja certo. Que possamos sonhar novamente com “Alto astral, altas transas, lindas canções/ Afoxés, astronaves, aves, cordões/ Avançando através dos grossos portões”. Um minuto de silêncio aos que se foram. Amor e coragem aos que ficam.