sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Hélio Schwartsman A Lava Jato morreu?, FSP

Nós gostamos de xingar corruptos e amaldiçoar a corrupção, mas ela é a segunda melhor forma de organização da sociedade. É obviamente menos eficiente do que um sistema no qual tudo funcione direitinho, segundo regras impessoais previamente estabelecidas, mas é superior a um regime no qual empreendimentos e a prestação de serviços possam ser bloqueados apenas pelo capricho de autoridades ou, ainda pior, um no qual as “concorrências” e outras disputas se resolvam à bala. É por ser razoavelmente eficaz —e lucrativa para gente influente— que é tão difícil acabar com ela.

Lava Jato foi uma tentativa de fazer com que o Brasil passasse do estágio da corrupção disseminada, que marca os países menos desenvolvidos, para um em que ela fosse mais contida. É um objetivo importante, que foi em alguma medida cumprido. Bilhões de reais desviados foram restituídos aos cofres públicos e dezenas de políticos e empresários, que já nos acostumáramos a ver como intocáveis, foram julgados e condenados.

Não há, porém, como defender os erros cometidos pela força-tarefa de Curitiba e pelo ex-juiz Sergio Moro, que, em várias ocasiões, desvirtuaram a interpretação da lei para alcançar seus propósitos condenatórios. Penso que há elementos para anular algumas das sentenças do braço curitibano da operação.

É preciso, porém, muito cuidado para que a necessária correção dos excessos da Lava Jato não se transforme num movimento pró-impunidade. A situação de delicado equilíbrio em que vivíamos no último ano, em que um STF dividido arbitrava as questões ora para um lado, ora para outro, pode ter sido rompida agora que a Procuradoria-Geral da República passou a combater mais abertamente a Lava Jato.

O Brasil já desperdiçou tantas oportunidades que é muito possível que não consigamos mais escapar à chamada armadilha da renda média. Espero que o mesmo não ocorra em relação à corrupção.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

PEDRO DORIA A política do ódio, OESP

Quem acha que o ataque contra Thammy Gretchen, por conta da publicidade de Dia dos Pais da Natura, e aquele feito contra a professora Lilia Schwarcz, por sua leitura do filme de Beyoncé, são coisas distintas está se enganando. Claro, do ponto de vista ideológico, vêm de extremos opostos. O primeiro vem de uma direita transfóbica e, o segundo, da militância negra habitualmente à esquerda. Mas a ferramenta é exatamente a mesma: a massa contra uma pessoa. Se fosse na vida real, o nome seria linchamento. Como é nas redes sociais, chamamos cancelamento.

Quando o cancelamento vem da esquerda, há quem argumente que é uma reação social normal contra a opressão. Que historicamente quem é oprimido, uma hora, se ergue e responde. De fato. Desde John Locke consideramos que é um direito reagir à opressão. Só há um detalhe que não é irrelevante. A Revolução Francesa foi contra a Coroa. A Russa, contra o Império. Anarquistas, grevistas, os estudantes da França em 1968 ou os da China em 1989, todos se ergueram contra governos, contra indústrias — não contra indivíduos.

Se fosse na vida real e uma multidão avançasse contra uma pessoa, chamaríamos de covardia. Quando a direita faz — foi o caso de Thammy — é a lei do mais forte contra o mais fraco. Quando a esquerda faz, alguns chamam de justiça. Os exemplos desta semana são exemplos, toda semana há exemplos novos. Porque o que ocorre é sempre o mesmo: um bate, depois o segundo, aí vem a avalanche. Às vezes é provocado, noutras espontâneo.

Quem está tomando a surra aprende lá pela segunda ou terceira vez o truque para lidar quando se é cancelado. É sair da rede. Em geral, uma semana basta. Aí reaparece como quem não quer nada e todo mundo já esqueceu. Recomenda-se não ler as mensagens mais antigas.

Há truque também quando ser cancelado faz parte da rotina. Cada rede tem seus filtros. Um dos jeitos é sair bloqueando pessoas a torto e direito. Outro é emudecer — a pessoa não é bloqueada, pode ler as coisas que você escreve. Mas você não precisa ler os desaforos que vêm como resposta. Em grande parte, funciona.

Há um último truque para os frequentemente cancelados: psiquiatras. A verdade é que ter voz ativa no debate público no mundo de hoje é estar exposto a cancelamentos corriqueiros. Não conheço quem tenha se acostumado. Mas conheço quatro que entraram no tarja preta para aguentar o tranco.

Outro argumento em defesa dos cancelamentos, este usado por esquerda e direita, é de que é o jeito para quem não tem espaço se fazer ouvir. Quem acredita nisso se ilude. Não são ouvidos. Quando se abre a rede e a timeline é um girar e girar o mouse e só vem pancada, nada é lido. É muito possível que existam observações interessantes ali no meio, argumentos que talvez até pudessem levar a mudanças. São perdidos na avalanche de ódio.

O resultado, na verdade, é outro. É calar o debate com violência. Faz parte da minha função, como jornalista, conversar diariamente com cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, historiadores. Está começando a acontecer: ouço uma observação interessante, peço para gravar em vídeo. “Não, isso não posso falar.”

Professores doutores intimidados. Não é só pela direita, não. É pela esquerda também. Não estão sozinhos. O cancelamento, lentamente, vai esganando o debate público. Vai o restringindo a guetos. E aí olhamos para os palácios de governo aqui e alhures e, com cada vez mais frequência, percebemos dentro deles autoritários que chegam ao poder galgando a raiva gerada na internet.

Não são fenômenos separados. São o mesmo fenômeno. E a cada pá nova de ódio vai enchendo esta cova. Lá dentro está o debate que mantemos em público sobre nossos valores e a sociedade. É a democracia.

Daniel Martins de Barros - Fadiga de zoom, OESP

Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo

06 de agosto de 2020 | 03h00

É irônico que muito do que a gente recomendava até março esteja tão diferente. Até o começo desta pandemia, nós insistíamos que era preciso visitar os idosos, manter mais contato com eles, compartilhar refeições, abraçar. Exatamente o que está proibido hoje em dia. E o quanto brigávamos com as crianças para sair da frente do computador e ir brincar lá fora com os amigos? A briga agora é oposta: fique aqui em casa e não tire os olhos do computador porque a professora está falando. E as tão criticadas redes sociais, acusadas de nos afastar das pessoas, em alguns casos, vêm sendo as únicas pontes a nos manter próximos de quem amamos.

Mas é hora de abrir o jogo: essas telas cansam. Mais do que imaginávamos.

Acho que esse efeito não acontecia antes porque não éramos forçados a passar tanto tempo nos comunicando por meio delas. Mas agora que saímos de uma reunião e entramos em outra, realizamos consultas, ligamos para os familiares, fazemos transações comercias, tudo por meio de videochamadas, fica mais claro como ela é antinatural. O que pode ser bem cansativo.

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Manter a atenção durante uma reunião inteira na empresa já não é tarefa fácil. A distância então, olhando para uma tela que ora mostra um, ora outro – ou todos de uma vez, não sei o que é pior –, torna-se impossível. Prestar atenção é erguer barreiras a distrações para tornar mais saliente um objeto, sustentando nele o foco. Quando estamos frente a frente com as pessoas, é menos complicado fazer isso, já que a pessoa ali é mais saliente do que os estímulos concorrentes. Quando ela se torna uma imagem pequena, bidimensional, misturada numa miríade de outras imagens, o esforço para evitar as distrações é muito maior.

Além disso, há um desgaste extra imposto pelo desafio de interpretar as nuances da comunicação. As telas tornam impossível o velho olho no olho. Quando conversamos pessoalmente, os olhos fazem um passeio durante o diálogo, escaneando o rosto do interlocutor. No entanto, as telas para onde olhamos não ficam perfeitamente sobrepostas às câmeras que captam nosso olhar. Com isso, para transmitir a sensação de que estamos olhando para a pessoa, é preciso que olhemos diretamente para a câmera, impedindo-nos de ver seu rosto. Se queremos ver seu rosto, é preciso olhar para a tela, passando a impressão de que estamos desinteressados, já que apareceremos olhando meio de lado. Sem contar que a própria captação dos sinais não verbais, fundamentais para transmitir o tom da conversar, fica bastante limitada mesmo com o mais tecnológico dos aparatos.

E ainda existe o irritante atraso na transmissão do som. O famoso delay, que torna uma aflição qualquer tentativa de encadear um comentário sobre a fala do outro. Quando você ouve o sujeito e acha pertinente dizer algo sobre aquilo, o raciocínio dele já está em outro ponto, e seu comentário sempre chega atrasado. Fazer uma piada, então, é quase impossível. Você diz alguma coisa, espera a reação e ela não vem. Quando já estava aceitando que a piada não teve graça, todo mundo começa a rir. Mas aí você não estava mais sorrindo, e, na hora em que eles estiverem rindo, verão sua cara já séria.

O pior é que não vislumbro solução para esses desafios no curto prazo. Aposto que desenvolveremos as vacinas para a covid-19 antes de conseguirmos desenvolver o ambiente virtual a ponto de ele substituir completamente a comunicação presencial. E aí será tarde demais: quando voltarmos a usar essas tecnologias com moderação, esse cansaço vai passar. Como, aliás, a própria pandemia. Vai passar.