quinta-feira, 6 de agosto de 2020

João Pereira Coutinho Cancelamento está mais próximo do fascismo que da democracia, FSP

1. “Cultura do cancelamento”: será que existe? E será que, existindo, é uma ameaça para a liberdade de expressão?

Estou confuso. Sobretudo depois de ler o texto confuso que Milly Lacombe escreveu para esta Folha. Que nos diz a autora?

Basicamente, que a “cultura do cancelamento” existe (oba!, já é um progresso). Mas não é uma ameaça à liberdade de expressão porque o objetivo é “cancelar” ideias e atitudes, não pessoas.

Lamento, Milly, não é o que tenho visto. Quando falamos em “cultura do cancelamento”, não estamos apenas a “cancelar” ideias ou atitudes (“apenas” uma ova: se fosse só isso, já seria aberrante). “Cancelamos” pessoas, sim, destruindo reputações e carreiras. E por quê?

Ilustração de homem sendo entrevistado, várias mãos com microfones segurando em direção a ele
Angelo Abu

Porque os “cancelados” revelaram em público ideias ou atitudes que não agradam à fúria irracional das redes sociais. Eis como, partindo de ideias e atitudes, chegamos facilmente às pessoas.

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Mas o texto de Milly Lacombe assenta num erro mais básico: na própria definição de liberdade de expressão. Diz a autora que liberdade de expressão exige prudência, disciplina, respeito pelo outro. Porque as palavras podem ferir ou até matar.

Não duvido. É por isso, aliás, que existem tribunais: para punir abusos da liberdade de expressão, de acordo com a lei. Eu sei disso, até na qualidade de ex-condenado.

O problema é que as redes sociais não são tribunais nem atuam de acordo com a lei; são hordas anônimas que destroem à margem da lei, sem garantir ao acusado nenhum direito de defesa.

Para usarmos a palavra fatal, a “cultura do cancelamento” está mais próxima do fascismo do que da democracia propriamente dita.

Claro que essa conversa sobre a lei e o estado de direito pode parecer trivial para quem participa dos linchamentos virtuais. Também era trivial para os fascistas.

Mas basta imaginar o mundo do avesso para valorizarmos imediatamente essas relíquias: o que diria Milly Lacombe se a “cultura do cancelamento”, que hoje cancela posições mais conservadoras, desatasse a cancelar com a mesma fúria qualquer posição progressista?

Será que a autora diria, com a mesma leveza, que “o que foi hoje cancelado pode ser descancelado — porque a vida é movimento”?

Ou gostaria que a lei pudesse defender quem é atacado selvática e injustamente só porque tem ideias ou atitudes diferentes da norma?

Esse é o problema de aprisionarmos a liberdade de expressão a um imperativo do respeito. Todos temos concepções diferentes de “respeito”: o que para mim pode ser uma verdade necessária é para o meu parceiro a violação de um tabu.

Para respeitar todo mundo, a humanidade ainda estaria nas cavernas. Para evitar ofender, nenhum preconceito seria criticado; nenhuma concessão desumana seria banida; nenhum abuso seria corrigido.

Bem sei que a autora não deseja esse mundo, que no limite seria o suicídio da sua arte e até da sua vontade de contestar “um modo de vida que nos desautoriza e deslegitima enquanto sujeitos”.

Mas até para contestar esse modo de vida é preciso mais liberdade de expressão, não menos. O que significa mais discussão e menos “cancelamento”.

2. Sempre que alguém defende a “cultura do cancelamento” no Ocidente, penso em Joshua Wong. Quem é Wong?

Um dos rostos da luta pela democracia em Hong Kong e autor de “Unfree Speech: The Threat to Global Democracy and Why We Must Act, Now” (da editora Penguin, 288 págs.), uma espécie de autobiografia política.

Parece piada escrever uma autobiografia aos 23 anos. Mas quando lutamos pela liberdade a partir dos 12; quando somos presos pela primeira vez aos 17; quando passamos uma longa temporada no cárcere aos 20; e quando, aos 23, somos impedidos de concorrer às eleições legislativas de Hong Kong porque a ditadura de Pequim nos considera inimigos do regime, percebemos que a idade é um pormenor.

O livro de Wong, que também inclui o seu diário na prisão, é uma defesa dramática de certos direitos ou princípios que as sociedades ocidentais dão por adquiridos —eleições livres, liberdade de expressão, Judiciário independente etc.—, mas que se tornaram artigos ainda mais raros depois de a China aprovar a nova lei de segurança nacional.

Eis um retrato do mundo: em Hong Kong, jovens como Wong sacrificam tudo pelas liberdades mais básicas. No Ocidente, o sacrifício do momento é mandar calar a boca de quem não pensa como nós.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Os fins e os meios nas reformas do Estado, Antonio Delfim Netto, FSP (definitivo)

Quando dois ou três economistas sentam para dialogar, sempre se chega a quatro ou cinco opiniões diferentes.

Hoje a situação está tão complicada que lhes impõe um diagnóstico comum: o de que o Brasil necessita de duas reformas; 1º) a da "administração do Estado", para dar mais eficiência a seus "gastos correntes" que aumentam o bem-estar da sociedade e garantem um nível adequado de investimento em infraestrutura e 2º) a "tributária", para dar maior eficiência ao instrumento que o Estado usa para subtrair recursos do setor privado com o mínimo de distorção sobre o sistema de preços relativos para não destruir os "sinais" que o levam a alocar seus recursos com maior produtividade.

Infelizmente, entretanto, o "diagnóstico" comum que no fundo objetiva aumentar a produtividade do trabalho (a definição própria para desenvolvimento econômico) não leva a uma recomendação única de como obtê-la.

É preciso lembrar que o economista não tem o poder político para determinar os objetivos da sociedade. Não é ele quem pode dizer qual deve ser o nível das despesas governamentais ou se a prioridade deve ser a "saúde", a "educação" ou os "gastos militares". Nem lhe cabe propor diminuir as desigualdades de renda ou de riqueza. Por quê? Porque o seu poder político restringe-se ao seu voto no universo de todos os cidadãos que podem votar.

Ele tem que aceitar que seu importante papel é o de encontrar os meios mais econômicos para atingir os objetivos políticos expressos pela sociedade nas eleições.

Nas repúblicas democráticas pluripartidárias constrangidas por uma Constituição, eles podem ser engessados (como é o nosso caso) ou deixados para serem decididos pelos governos eleitos periodicamente, o que responde melhor à evolução demográfica e identitária que se processa naturalmente com as novas necessidades sociais e econômicas trazidas pelo "espírito do tempo".

Seu papel é mostrar, qualitativa e quantitativamente, as consequências --e às vezes as inconsequências-- das propostas do Legislativo e do Executivo, que frequentemente confundem os "meios" com os "fins" desejados (como agora na decisão sobre o Fundeb).

Parece que a sociedade introjetou que a reforma do Estado e a reforma tributária são obstáculos que precisam ser removidos para que voltemos a um crescimento mais robusto depois de 30 anos de regressão relativa em comparação com o mundo.

É hora de Legislativo e Executivo, apesar da pandemia, juntarem esforços para tocar as duas ao mesmo tempo. Está nas mãos do presidente Rodrigo Maia e do ministro Guedes abrir as portas de um melhor 2021 para o nosso Brasil.

Antonio Delfim Netto

Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.

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