quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Em obras, 'trem da República' vai voltar


No interior de São Paulo, ferrovia ligará Salto a Itu, onde aconteceu, há 140 anos, convenção histórica para Proclamação da República

09 de novembro de 2013 | 20h 47

Edison Veiga - O Estado de S. Paulo
Nos trilhos da história do Brasil, trata-se de capítulo dos mais importantes. Há 140 anos, em 18 de abril de 1873, ocorreu o episódio conhecido como Convenção Republicana de Itu - uma reunião de 133 opositores da Monarquia, na maioria cafeicultores, no casarão onde morava Carlos Vasconcelos de Almeida Prado e sua família, no município do interior do Estado.
Grizoto é entusiasta da ferrovia; linha pode ter 7 km - Nilton Fukuda/Estadão
Nilton Fukuda/Estadão
Grizoto é entusiasta da ferrovia; linha pode ter 7 km
Mas por que esse encontro chave pré-Proclamação da República aconteceu em Itu? Pois bem: a elite estava lá justamente porque na véspera houve a inauguração da Estrada de Ferro Ituana, ligando a cidade a Salto. Em 15 de novembro de 1889, enfim, foi proclamada a República, que se comemora na próxima sexta-feira. Para homenagear a convenção e incentivar o turismo, um grupo de ituanos e saltenses estão empenhados na reconstrução da ferrovia.
"É um sonho que alimento desde 2005", diz o turismólogo Fábio Luis Grizoto, hoje funcionário da Secretaria de Turismo de Itu. Na época, ele fazia faculdade e estudava o tema, analisando a viabilidade da reativação da ferrovia-monumento.
Ele articulou um grupo e, em 2008, o projeto de recuperação da ferrovia, que funcionou de 1873 a 1987, e recebeu verba federal de R$ 4 milhões. Foi criado um consórcio intermunicipal e, a esse valor, somaram-se montantes estaduais e das duas prefeituras: um total de R$ 10 milhões. Até 2012, 2 km da ferrovia - que deve ter 7 km quando estiver concluída - foram reconstruídos. Um atraso na liberação de parte dessa verba causou o rompimento do contrato.
Agora, os trilhos estão lá à espera de nova licitação - que deve ocorrer nos próximos meses. "No ano que vem, as obras vão recomeçar", afirma Grizoto. "Difícil cravar quando tudo será concluído, mas tenho esperança de ver isso pronto até o fim de 2014."
O projeto prevê que a ferrovia seja explorada pela iniciativa privada. Quem ganhar a licitação para a operação será responsável por providenciar o trem. "Terão de ser locomotivas a vapor e carros de passageiro de madeira", diz Grizoto.
Os envolvidos no projeto pretendem que a ferrovia sirva principalmente para atrair turistas interessados em conhecer o patrimônio histórico das duas cidades e, claro, sentir como era um passeio de maria-fumaça das antigas. "Será um passeio incrível", afirma o turismólogo.
De certa forma, essa divulgação turística e histórica já começou. Em 29 de setembro, um grupo de fotógrafos profissionais e amadores encarou, a pé, um passeio por parte do trajeto, com o objetivo de fotografar coletivamente o trecho.
Documentário. Interessado nessa história e de olho na movimentação do projeto, o documentarista José Antonio Barros Freire produziu o documentário Trem Republicano 1873. Foram cinco meses de filmagens e entrevistas com diversos especialistas. Na sexta-feira, 15, feriado da Proclamação da República, o filme deve ser exibido pela TV Cultura, às 22h.
Um dos entrevistados é o trineto do imperador d. Pedro II, o fotógrafo João de Orleans e Bragança. "Pedro II tinha a correta visão de que o Brasil, mesmo longe da Europa, não podia perder o trem da história", afirma ele, em trecho do documentário de Barros Freire.
A opinião é corroborada pelo historiador Maurício Vicente Ferreira Júnior, diretor do Museu Imperial de Petrópolis. "O imperador foi um grande incentivador da ferrovia e estimulou o desenvolvimento ferroviário do País", diz o pesquisador.
"Agora vamos liberar os direitos de exibição do filme para o conteúdo ser usado como ferramenta de aula dos professores", diz Barros Freire. "O documentário estará disponível aos jovens, com apoio de escolas, museus e TVs educativas e comunitárias."
Divulgação. A disseminação desse conteúdo já se iniciou. Em setembro, Trem Republicano 1873 foi exibido pela Câmara de Itu e pela Secretaria da Cultura de Salto. Na próxima terça-feira, 12, o filme será projetado no Museu Republicano de Itu, às 17h. No Museu Paulo Setúbal, de Tatuí, o documentário está programado para quarta-feira, 13, às 20h. "A luta continua. Como diria (o antropólogo) Darcy Ribeiro: história no Brasil tem muita. Falta é gente para contar", diz Barros Freire.

Cidade dos extremos ( elite e favela donas da cidade)

Para historiador, os verdadeiros donos do espaço urbano são a elite e a favela: uma, pela economia; outra, pela ocupação

09 de novembro de 2013 | 15h 55

Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
Retrato novo de mazelas antigas: dia 6 de novembro saiu o estudo Aglomerados Subnormais - Informações Territoriais, do IBGE, mostrando que 11.425.644 brasileiros vivem em construções alheias às regras do planejamento urbano. Além de aterros, mocambos, loteamentos irregulares e outros rincões improvisados e informais, há 6.329 favelas, onde se empoleiram 3.224.529 casas, principalmente no eixo Rio-SP. Nesse país favela, onde champanhe é "statis" para uns e outros, as cidades retratam o abismo social do Brasil.
Nireu Cavalcanti é arquiteto, urbanista e historiador e professor da UFF - ARQUIVO PESSOAL
ARQUIVO PESSOAL
Nireu Cavalcanti é arquiteto, urbanista e historiador e professor da UFF
Outras questões essencialmente urbanas voltaram à pauta paulistana nos últimos dias. Hussain Aref Saab, ex-diretor do Aprov que adquiriu 106 imóveis entre 2005 e 2012, tornou-se alvo de ação de improbidade administrativa. Ronilson Rodrigues, chefe da máfia do ISS, disse que o ex-prefeito Gilberto Kassab sabia do esquema que pode ter custado R$ 500 milhões aos cofres da cidade. Marcos Costa, presidente da Alstom, passou mal e escapou da CPI em que seria ouvido sobre a formação de cartel nos trilhos de Geraldo Alckmin. "As cidades brasileiras estão sendo administradas de uma forma profundamente desvirtuada do interesse público. Isso não é restrito a São Paulo. E não é ‘privilégio’ de um ou outro partido", critica o urbanista Nireu Cavalcanti, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Alagoano de Olivença, radicado no Rio, Cavalcanti vê nesses acontecimentos se delinear o retrato de um país "Serra Pelada", em que políticos e lobistas com interesses imobiliários exploram a terra e "vão deixar para trás um deserto e uma miséria de cidade". Aos 69 anos, o historiador discute esses e outros elefantes brancos espalhados por nosso território. Desiludido com o Fla-Flu partidário, prefere independência política para alicerçar suas críticas. "Na política só há uma troca de moscas - e o povo continua comendo no prato podre", critica o autor de Histórias de Conflitos no Rio de Janeiro Colonial (Civilização Brasileira) e O Rio de Janeiro Setecentista (Zahar). "Sou um homem do século 19, um tempo antes dessa podridão", diz Cavalcanti ao Aliás. E a quem pertencem as cidades brasileiras hoje, professor? "Aos extremos, a elite e a favela."
Diversos escândalos marcaram São Paulo nas últimas semanas. Como uma cidade pode ser moldada segundo interesses econômicos, regras burladas e brechas no sistema?
NIREU CAVALCANTI - Isso não é restrito a São Paulo. As cidades brasileiras estão sendo administradas de uma forma profundamente desvirtuada do interesse público e da função pública. As cidades perderam a continuidade administrativa - e assim, fortunas são jogadas fora. Temos 5.600 municípios no Brasil. Entra um prefeito novo e interrompe o projeto do prefeito anterior, para atender aos interesses de seus aliados e de quem financiou sua campanha. Exemplo: César Maia fez a Cidade da Música, um projeto caríssimo e criticado. A obra parou, faltando detalhes para a inauguração. Agora Eduardo Paes inaugurou a tal Cidade das Artes, o mesmo projeto repaginado. Maia também fez o Engenhão, por R$ 370 milhões. Para reformar o Maracanã foi R$ 1,5 bilhão, isto é, dava para fazer uns três Engenhões e construir campos de futebol na periferia. E vão mexer no Maracanã?
O que está acontecendo?
NIREU CAVALCANTI - As cidades continuam crescendo sem planejamento nem responsabilidade. Há apenas ações pontuais. "Vamos fazer uma estação de metrô no bairro tal, pois a pressão popular está forte". Mas e um projeto para promover mobilidade urbana para todos? Isso não é discutido. Lembra de Curitiba? Agora todo mundo comenta que os projetos pararam, as favelas estouraram, o transporte já não é eficaz, etc. Mas eles fizeram um bom plano diretor, com equipe preparada. Jaime Lerner era um jovem arquiteto e político. Depois, vários governos mantiveram e adaptaram esse plano. São Paulo fez isso até certo ponto, mas parou no caminho. Nós andamos de metrô, ônibus, trem, conhecemos a cidade - mas quem manda não a conhece. Não temos estrutura administrativa séria. Temos marqueteiros dizendo para a sociedade que aquela obra é uma maravilha, mas, na verdade, não traz benefício nenhum à cidade. Assim, não é surpresa ver essas quadrilhas instaladas no poder público. E isso não é "privilégio" do PSDB e do PT.
Historicamente, qual foi o momento-chave para transformarmos nossas cidades assim?
NIREU CAVALCANTI - Primeiro, a proliferação de municípios, a partir da década de 1970. Temos uma quantidade imensa e inadministrável de municípios atualmente, pois o custo da máquina ultrapassa muito as possibilidades. Na época colonial e no Império, os vereadores administravam as cidades, com compromisso. Na República, o poder foi dividido entre Executivo e Legislativo - e os vereadores perderam o antigo papel. Em 1842/1843, o engenheiro Beaurepaire Rohan foi convidado para fazer o primeiro "plano diretor" do Rio - nem se chamava assim na época, era algo como "melhoramentos da cidade". Rohan conhecia o Rio, sabia como propor um plano possível. Essa elite administrativa percorria o país inteiro - Rohan ainda governou Paraíba, Pará e Paraná, fez a carta cadastral do Brasil e morreu numa casa simples em Laranjeiras. Era um tempo diferente, em que o poder público não se voltava assim para enriquecimento ilícito e interesses particulares. Infelizmente, perdemos isso.
O que mudou?
NIREU CAVALCANTI - A partir de 1964, os militares passaram a implantar planos diretores para diversas cidades - mas planos fora da realidade, logo engavetados. Com a Constituição de 1988, a questão urbana é discutida pela primeira vez. Reconhecemos: somos um país urbano. Mas tínhamos políticas totalmente isoladas. O eixo Rio-SP se desenvolveu; Nordeste e Norte ficaram esquecidos. Vieram as migrações, do campo e das cidades menores, por falta de oportunidade, para as capitais. Cidades incharam, periferias cresceram, favelas nasceram. Não há uma proposta nacional para resolver isso. Voltamos à antiga política "bica d’água": ao visitar a periferia, os políticos viam que não tinha água, esgoto, nada. Aí puxavam um gato para pôr torneira no loteamento clandestino. É a inauguração da bica, onde cada um enche sua lata d’água e sobe o morro equilibrando a lata na cabeça.
Nessa semana saiu o estudo Aglomerados Subnormais. Como o sr. analisa esse retrato?
NIREU CAVALCANTI - A única saída para esse quadro estaria num plano nacional, no Estatuto das Cidades, dedicado à questão habitacional. Senão, continuaremos nesse empobrecimento urbano. E não há uma "nova" classe média, isso é golpe de marketing. Há uma "nova" classe média jogada nas favelas. Deveríamos ter direito a morar numa unidade habitacional com condições, pagando luz e IPTU, dentro da legalidade. Não é o quadro. O país espera as cidades crescerem tortas. Segundo a Constituição, apenas cidades a partir de 20 mil habitantes precisam de um plano diretor. Mas há milhares de cidades com menos de 20 mil que crescerão tortas e entupidas de favelas, e só depois pensaremos num plano diretor. Que país é esse? Não quero saber da intriga PSDB x PT, mas de um projeto que realmente distribua a renda e ofereça cidades democráticas para vivermos. Após a ditadura, pensávamos que PT e PSDB trariam novas formas de governar. Na verdade, não. Digo isso com muita tristeza. Sou um cara de esquerda, levei muita porrada para essa gente chegar ao poder. E para ver agora que tudo foi só uma troca de moscas - e o povo continua comendo no prato podre. Apenas determinados setores da sociedade recebem restos desse banquete. Há uma minoria realmente que se dedica à função pública. Diria que sou um homem do século 19, um tempo diferente, um tempo antes dessa podridão.
O mercado imobiliário tem um caráter próprio no Brasil?
NIREU CAVALCANTI - A propriedade da terra urbana é muito diluída. A especulação imobiliária domina o quadro técnico das prefeituras, com profissionais fazendo um código de obras e construções pensado para ser economicamente viável. Vi uma discussão na câmara técnica do carioca Israel Klabin - que queria o diálogo entre os bairros e os técnicos, engenheiros e arquitetos. Estávamos discutindo o gabarito da Rua das Laranjeiras. Defendíamos, digamos, prédios de 15 andares no máximo. Os outros queriam 25, argumentando: professor, 15 não é economicamente viável. Engenheiros da prefeitura para defender os interesses do mercado! Outro exemplo: antes, tínhamos o conjugado. Depois, foi estabelecido que a unidade mínima habitacional deveria ter 36 m² e dois cômodos, uma sala e um quarto. Era o mínimo. De lá para cá, a especulação imobiliária inventou o "loft" - e parte da sociedade adorou, a prefeitura aprovou. O loft é um conjugado, um cubículo num cortiço metido. O segredo? Os especuladores encontram condições de, a partir da legislação, aumentar o gabarito ou a possibilidade de uso de uma rua. Assim, onde antes não podia ter restaurante ou prédio, agora, do dia para a noite, pode. O sujeito que tem sua casinha ou seu apartamento aplaude quando num passe de mágica a rua passa a valorizar o imóvel. O mercado imobiliário e a indústria da construção civil são predadores. É um retrato de Serra Pelada, sabe? Vão deixar para trás um deserto e uma miséria de cidade.
Que impacto urbano terão as construções relacionadas à Copa e à Olimpíada?
NIREU CAVALCANTI - João Figueiredo, embora detestado, recusou a copa oferecida por João Havelange. Disse algo como: "João, você já foi numa favela? Já viu um hospital, uma rua? Você acha que vou gastar dinheiro público, dar dinheiro para a Fifa?". Fifa e COI são empresas promotoras de eventos que querem estabelecer um padrão. Para cumprir o tal padrão, decidimos reformar o Maracanã, por R$ 1,5 bilhão. No fim dos jogos, a Fifa quer receber uns R$ 4 bilhões de lucro. E quem pagará por isso? Quer dizer, impuseram uma falsa reforma urbana, dizendo ainda que não tínhamos profissionais para isso. Nossas instituições, de cócoras, aceitaram profissionais de fora para essas obras, que não trarão benefício nem para Rio, nem Recife, nem Salvador. Depois, eles vão embora. O que restará? Esses elefantes brancos nas cidades.
Minhocão (SP) e Perimetral (Rio) foram pensados para o carro. Disputar espaço urbano com carro é algo ‘normal’ nas metrópoles?
NIREU CAVALCANTI - Não. Basta ver Tóquio, Paris, Cidade do México, Amsterdã. Isso deve ser uma característica nossa: a partir de Getúlio Vargas e depois com Juscelino Kubitschek, a industrialização e o incentivo ao carro acabaram com o investimento no transporte público. Estamos muito atrasados. No final do século 19, um grupo inglês se propôs a construir um metrô ligando o Rio a Niterói. Mas a companhia dos bondes barrou o projeto e disse: "Mas vamos fazer o metrô, um dia". Nunca fizeram. Agora o governo continua a incentivar o carro - e a frota continua aumentando. Minhocão e Perimetral são supérfluos, feios? E a política para trazer montadoras, para produzir carros caros e com alto consumo de gasolina, com potência para 350 km/h - mas você anda a 40 km/h? É o auge do supérfluo.
No fim, a quem pertence a cidade?
NIREU CAVALCANTI - A cidade virou uma mercadoria. Está nas mãos de grupos econômicos e políticos. Direi algo agressivo, mas real: a cidade pertence aos extremos, a elite e a favela. Eles podem tudo. Uns moldam como querem o espaço urbano com o poder econômico. Outros ocupam a cidade irregularmente, como podem, como querem, com a birosca, o gato, o negócio - e, ao mesmo tempo, são alvo demagógico preferencial dos políticos. Nós, a cidade, as classes médias, os trabalhadores com endereço fixo e carteira assinada, ficamos achatados entre eles. Os políticos querem agradar aos extremos, os muito ricos e os muito pobres. Quem está no meio, fica no meio.

A marca do dono


O estupro é um ato de demarcação nas entranhas feministas feito patriarcado para assinalar o território do corpo submetido à sua disciplina

09 de novembro de 2013 | 16h 33

Debora Diniz - O Estado de S. Paulo
A nova campanha da Organização das Nações Unidas de combate à discriminação contra as mulheres esconde nossas bocas e faz do Google o texto de nossas vidas(http://www.unwomen.org/en/news/stories/2013/10/women-should-ads). Os olhos das mulheres da campanha são variados, mas todos miram os autores das buscas eletrônicas infames. Eles são sujeitos anônimos sem geografia definida. As bocas congelam as expressões mais comuns lançadas no buscador que tudo sabe: "mulheres na cozinha", "mulheres como escravas", "mulheres em casa", "mulheres disciplinadas". Uma pesquisa global, que recuperou o mais secreto sobre a discriminação de gênero. O escândalo não foi só saber que há multidões em busca de informações sobre como ter uma escrava sexual ou como proibir as mulheres de votar. O inquietante foi retirar o véu e conhecer os segredos do oráculo sobre a desigualdade de gênero. Ela é íntima, cotidiana e persistente. E o pior: global.
No Google. Site registra a discriminação simbólica e real contra as mulheres - Memac Ogilvy e Mather Dubai
Memac Ogilvy e Mather Dubai
No Google. Site registra a discriminação simbólica e real contra as mulheres
A violência doméstica é uma das maneiras de governar os corpos da casa pelo regime do medo. Ela pode se expressar pela disciplina do castigo físico, pela humilhação ou pelo confinamento. Ou ainda por uma das formas mais perversas de expressão do patriarcado – o estupro. O estupro ofende as mulheres, não só no corpo possuído pelo prazer e ímpeto de tortura do agressor, mas principalmente porque nos aliena da única existência possível: a do próprio corpo. Uma mulher vitimada pelo estupro não é só alguém manchada na honra, como pensavam os legisladores do início do século 20 ao despenalizar o aborto por estupro, mas alguém temporariamente alienada da existência. Honra, dignidade, autonomia são ignoradas pelo estuprador, é verdade. Mas o estupro vai além: é um ato violento de demarcação do patriarcado nas entranhas das mulheres. É real e simbólico. Age em cada mulher vitimada, mas em todas as mulheres submetidas ao regime de dominação.
A moral patriarcal que oprime não se contenta em demarcar espaços ou vozes. Ela necessita das entranhas, ou melhor, das vaginas, para demarcar o território do corpo feminino sob sua disciplina. A magnitude do estupro no Brasil é um dos territórios da dominação patriarcal e da consequente desigualdade de gênero. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 50.617 estupros em 2012, um crescimento de 18,17% em relação a 2011. Sim, há vários problemas nesse dado – houve mudanças no sistema de classificação do estupro, alguns Estados são mais confiáveis que outros na alimentação de dados administrativos, e somente em 2011 o registro de estupro se tornou obrigatório pelos sistemas de saúde público e privado. Talvez não seja um crescimento na taxa, mas uma notificação mais rigorosa. Pouco importa: o escândalo não está no crescimento em milhares de vítimas, mas na persistência do abuso. As mulheres ainda são objeto de alienação pelo poder patriarcal, que tem no estupro um de seus indicadores mais perversos.
E aqui está nosso desafio. Não são mulheres abstratas que se verão traduzidas em números pela estatística do estupro. Há biografias; e nelas há cor, classe, geração e espaço predeterminado pela cartografia da opressão de gênero. Ela é jovem, filha, negra e pobre. A casa é o reduto da violência, mas também do segredo. Por isso, os novos registros dos sistemas de saúde podem ter alterado o cenário nacional da magnitude – talvez não seja a delegacia a porta de entrada do desamparo dessas mulheres, mas os hospitais. Essa menina, além de abusada, abandonou a escola, sofre de outras doenças, tem medo de morrer se voltar para perto do abusador. Por isso o oráculo Google é tão inquietante para entender os milhares de estupros da sociedade brasileira – as perguntas secretas são também práticas cotidianas e domésticas. O estupro é uma forma de violência doméstica. Se o estupro de rua foi já chamado de cruento, o abuso intrafamiliar é o estupro doméstico. É dele que falam as estatísticas.
As manchetes sobre a pesquisa brasileira compararam o número de estupros ao de homicídios dolosos, isto é, aqueles com intenção de matar. Se a comparação tinha por interesse analisar duas infrações penais em que o agressor tem intenção no ato violento, há algum sentido em dizer que o País tem uma taxa mais alta de estupros que homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Há um animus de gênero no estupro. Apesar de a legislação brasileira considerar que estupro é qualquer ato sexual não consentido, as mulheres são as principais vítimas. Mas essa não me parece ter sido a lógica argumentativa. O ímpeto é punitivo – comparar estupro e homicídio é escandalizar a opressão de gênero por um caminho enviesado e frágil para as vítimas. O estupro é um crime contra a integridade física e moral das mulheres. O homicídio é um crime contra a vida. Proteger as mulheres exige uma leitura cuidadosa das frases escondidas do Google, do desmembramento dos tentáculos do poder patriarcal que alimentam as religiões, as escolas e as famílias. A mudança não está no atalho da mão punitiva, mas na longa jornada de transformação dos padrões de sociabilidade de gênero. As mulheres não são escravas, devem ter o direito ao voto e são felizes fora da cozinha.
*Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.