domingo, 3 de novembro de 2013

Escaninho errado


03 de novembro de 2013 | 2h 21

JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, , PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE , FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, , DE A SOCIOLOGIA COMO AVENTURA (CONTEXTO) - O Estado de S.Paulo
A suspeita de fraude em licitação para obras de expansão do metrô de São Paulo e pagamento de propina pela empresa francesa Alstom ficou mais ampla e complicada do que poderia ser. Em 2011, um pedido de diligência suplementar feito pela Suíça não foi atendido. A Procuradoria da República em São Paulo explica em nota que não houve atendimento devido a uma "falha administrativa". "Foi arquivado erroneamente numa pasta de documentos auxiliares", quando deveria ter sido juntado ao "processo de cooperação internacional principal." Sempre se poderá considerar estranho que um órgão com o poder e a importância do Ministério Público, compreensivelmente inflexível e exigente em relação aos supostos desvios que apura, seja ao mesmo tempo tão benevolente em relação a seu próprio confessado erro. Que garantia tem o cidadão de que se trata de uma falha administrativa? A refuncionalização do Ministério Público, pela Constituição de 1988, para dele fazer um órgão abrangente do direito e da Justiça, verdadeira ponte entre os cidadãos sempre desconfiados e o Estado sempre suspeito de lesá-los, acarretou-lhe imenso respeito. Deu a muitos a íntima confiança de que mesmo que o direito de todos, especialmente dos frágeis, esteja permanentemente ameaçado em vários âmbitos, há uma instituição vigilante e destemida que exige esclarecimentos, investiga e, finalmente, acusa e leva a julgamento quem se atreveu a sobrepor-se ao direito. Mas essa "falha administrativa" pode corroer nossas incontornáveis ilusões.
Não há como deixar de ver essa falha no cenário de outras notícias da semana e suas eventuais repercussões no entendimento popular do que é a política. Especialmente neste preâmbulo de uma eleição presidencial que poderá remover do trono os que ali já ficaram tempo suficiente para fazer o que deles se esperava. O desgaste do discurso polarizado dos supostamente insubstituíveis é muito claro e a demanda popular de novos horizontes políticos também o é. São fatos que podem contribuir para o advento de reorientações na docilidade eleitoral dos brasileiros. As manifestações de rua iniciadas há alguns meses são apenas indícios do efeito detonador dos muitos e reiterados abusos e desvios de conduta, de pessoas e instituições. Se havia plácidas certezas de alguns há dois anos, elas já não existem. Veremos o que acontece, como dizia com graça Miriam Muniz, na apresentação de uma peça de Molière no Teatro de Arena, em São Paulo, nos anos 1960.
Vários tópicos do mesmo gênero do mencionado no início ocuparam o noticiário nestes dias, aumentando as dúvidas dos cidadãos quanto a que país é este. Um deles, apontado também pelo MP, é relativo a fraude na Prefeitura de São Paulo, envolvendo quatro fiscais municipais que atenuavam tributos de grandes empresas em troca de dinheiro grosso, causando feios prejuízos ao lindamente chamado erário público. Muita grana deixando de entrar nos cofres da Prefeitura para entrar nos bolsos de servidores públicos de interesses privados.
Sempre associamos esses casos a um figurão do poder, de que os peixinhos, como os mencionados no noticiário dos dois casos, seriam meros asseclas e cupinchas na arrecadação de benefícios fora dos bons costumes. No entanto, o caso Alstom é outra coisa, é caso de formação de cartel, isto é, de um acordo entre empresas para impor preços para obter ganhos extraordinários. Claro que o tesouro público é sugado em mais do que seria se pagasse preços concorrenciais pelos produtos que consome e os serviços que utiliza. É, no fundo, fazer o povo pagar mais do que vale por aquilo que recebe. Na consciência coletiva isso é roubo porque, no fim das contas, lesa a maioria silenciosa dos contribuintes impotentes. A não ser os especialistas, ninguém está interessado em filigranas jurídicas. Roubo é roubo, diz o vulgo.
É inútil, portanto, tentar tirar vantagens eleitorais de anomalias que de fato podem não ter nada a ver com governadores e prefeitos, provavelmente também eles vítimas da função que personificam. O fato relativo aos fiscais da Prefeitura de São Paulo diz respeito a funcionários concursados e não a funcionários apadrinhados. Gente, portanto, que, sem mandato, descobriu a enorme fração de poder de sua função num setor vital da administração pública e, aparentemente, resolveu utilizá-la em benefício próprio. Provavelmente, o serviço público brasileiro ainda está minado por milhares de focos de pequena corrupção, que se avantaja quando a clientela é poderosa e desonesta o suficiente para propor negociatas e tentadoras vantagens pessoais a servidores com dificuldade para resistir à tentação. A principal importância do Ministério Público é, pois, mais moral que judicial. Lembrete permanente de que há um olho invisível que tudo vê, mesmo que demore. Dadas as enormes e crescentes facilidades de corrupção que há na estrutura do Estado brasileiro, o MP não pode comportar falhas de Sancho Pança nem exageros de Dom Quixote.

Polícia de lei


03 de novembro de 2013 | 2h 17

OSCAR VILHENA VIEIRA, OSCAR VILHENA VIEIRA É JURISTA, PROFESSOR DA DIREITO GV, AUTOR DE ESTADO DE DIREITO, O DESAFIO DO DESENVOLVIMENTO (SARAIVA) - O Estado de S.Paulo
Na segunda-feira, protestos contra a morte do estudante Douglas Rodrigues, de 17 anos, bloquearam com ônibus e caminhões incendiados a Rodovia Fernão Dias. O jovem foi morto por um PM durante uma abordagem no domingo. O acusado diz que o disparo foi acidental.
A segurança pública é certamente o campo de ação estatal mais negligenciado pelas diversas forças políticas que ocuparam o poder nestas últimas duas décadas de democracia. Estabilizou-se a economia, modernizou-se o Estado, políticas sociais mais consistentes de redução da pobreza foram criadas. Mesmo o Judiciário sofreu uma importante reforma. No entanto, a mais direta e cotidiana relação do cidadão com o Estado - que se dá por intermédio dos órgãos de segurança pública - não sofreu grande alteração.
Os dados da violência no Brasil nestas duas décadas são alarmantes. Oficialmente, mais de 900 mil pessoas foram vítimas de homicídio doloso entre 1990 e 2011. Se somarmos as cerca de 130 mil mortes não contabilizadas, conforme detectado por pesquisa do Ipea, mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de homicídio nessa nossa guerra cotidiana. Número, aliás, muito superior às baixas americanas na Guerra do Vietnã, ou mesmo as mortes provocadas na Guerra do Golfo, ou no conflito Israel/Palestina, que já dura mais de seis décadas.
As deficiências de nossas instituições de aplicação da lei se explicitam não só pela incapacidade de combater a violência e o crime, como pelo próprio envolvimento de muitos de seus agentes com a prática criminal. Casos como o desaparecimento de Amarildo no Rio de Janeiro e a morte do jovem Douglas em São Paulo demonstram que as agências de segurança não se conformaram a sua função precípua de assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos, em especial o direito à segurança das populações vulneráveis, tal como plasmado no caput do artigo 5º da Constituição. Os dados são alarmantes. Na cidade de São Paulo a letalidade policial é responsável por cerca de 20% das mortes. Destaque-se que nem sequer há números sobre as mortes em confronto com a polícia para a maior parte do País. Por outro lado, o número de policiais mortos, dentro e especialmente fora de serviço, é dramático. A agressão vil a um coronel da PM no dia 25 demonstra quanto a autoridade da polícia se encontra esgarçada.
A ambiguidade com que as forças de segurança têm enfrentado as múltiplas rebeliões originadas em junho, agindo ora de forma truculenta, ora de maneira surpreendentemente passiva, demonstra a falta de preparação técnica, e mesmo de liderança política, para lidar com situações de tensão que são inerentes à democracia. A confiança nas polícias, conforme mensurado periodicamente pelo ICJ/Direito GV, sofreu um fortíssimo abalo a partir de junho. Isso apenas amplia o temor de que não estaremos preparados para os grandes eventos que se aproximam, assim como não estamos preparados para garantir segurança dos cidadãos brasileiros no seu dia a dia.
Não se deve negligenciar melhorias incrementais importantes. São Paulo foi capaz de reduzir os homicídios de forma acentuada (cerca de 70%) ao longo da década passada. A simples mudança do secretário de Segurança Pública, no final de 2011, provocou uma redução de 64% no índice de letalidade. O mesmo ocorreu logo após o massacre do Carandiru, quando, à época, a polícia matava quatro pessoas por dia. Novas formas de policiamento comunitário têm sido implementadas com sucesso. Para não ficar restrito a São Paulo, no Estado do Rio de Janeiro o número de mortes provocadas pela ação policial caiu de 1.330 em 2007 para 415 em 2012, fruto da implementação de uma política mínima de segurança. É importantíssimo destacar, nesse sentido, que São Paulo e Rio foram capazes de, ao mesmo tempo, reduzir a violência policial e os homicídios. Deixando claro que a eficiência da polícia está diretamente ligada ao respeito que esta tenha pela população. Esses importantes avanços, no entanto, não foram capazes de gerar um círculo virtuoso, que impulsionasse a mudança do modelo das instituições de segurança pública.
A adoção de um modelo de polícia bipartida, no qual a corporação militar cumpre o policiamento ostensivo e preventivo e à polícia civil compete a apuração dos delitos, é um obstáculo de ordem estrutural. Interesses e conflitos corporativistas impedem que as duas polícias cooperem. A que está presente na rua não contribui para que a polícia investigue. Por outro lado, as informações coletadas pela polícia civil nem sempre são disponibilizadas para que se realize uma boa prevenção. Além desse problema estrutural, o poder público não se preocupou em qualificar profissionalmente as polícias. A formação de delegados e oficiais é profundamente bacharelesca. Os cargos de comando são concentrados nas mãos de pessoas letradas em direito, mas que não têm profundo conhecimento técnico nas áreas de sociologia e psicologia criminal. Isso para não mencionar questões triviais como recursos humanos, tecnologia da informação, gestão, etc.
A presidente Dilma manifestou sua "tristeza" com a "morte do jovem Douglas Rodrigues, de apenas 17 anos, na zona norte de São Paulo. Nessa hora de dor, presto minha solidariedade a sua família e amigos". Isso é política e simbolicamente muito importante. Esperamos que essa indignação sirva para impulsionar inúmeras propostas hoje pendentes no Congresso, como a construção de uma polícia de ciclo único, submetida a um maior controle social, composta por uma gama mais diversificada de profissionais - mais bem treinados e remunerados -, que tenha por missão clara a defesa dos direitos dos cidadãos. Também seria muito positivo que não mais ocorresse contingenciamento de recursos do Pronasci, de forma a incentivar boas práticas policiais nos Estados. Por último, a presidente poderia incentivar que seu governo liderasse uma discussão mais progressista sobre as drogas que, como sabemos, têm um papel devastador sobre a população jovem deste país.

Nem black nem bloc


Muitos dos que quebram e destroem são jovens revoltados com a vida infame da periferia, ou outros que procuram algum futuro além do shopping center

02 de novembro de 2013 | 16h 04

Marco Aurélio Nogueira*
Bloco. Efeito colateral de uma vida bloqueada, sem esperança, nem utopia - Marcos de Paula/Estadão
Marcos de Paula/Estadão
Bloco. Efeito colateral de uma vida bloqueada, sem esperança, nem utopia
A ação é tão caótica e contundente que é como se somente eles estivessem nas ruas. Além da polícia, claro, seu alter ego. São tão performáticos e agressivos, tão sem agenda e voz coletiva que geram a sensação de que as massas não existem. A violência que praticam não gera comunidade ou democracia, mas seu oposto. Ataca o sistema e seus ícones, mas não os põe em xeque, antes os reforça. Empurra as pessoas de volta para casa, longe das ruas politizadas por junho de 2013.

Nunca se falou tanto em black bloc, essa “tática” clonada da Europa que parece tomar conta das grandes metrópoles brasileiras de uns meses para cá. Não sabemos quase nada do fenômeno. Há duas versões típicas na praça. Uma faz a crítica do movimento como hostil à democracia, desmobilizador e desagregador. Outra faz seu elogio, escancarado ou dissimulado. Afirma que a violência black bloc é fundamental para tirar as massas da letargia, chamar às falas os partidos de esquerda e revelar a face brutal do Estado, ou que é expressão da iniquidade social, uma reação defensiva que protege as massas.

A estética black bloc adere na vida que temos. Seus seguidores querem ser vistos como vanguarda da luta contra o capital, a ala mais intransigente da contestação, aqueles que tirarão as massas do pacifismo que não perturba a ordem nem abala as instituições. A ação não traz consigo direitos, causas ou utopias, somente o fim dos tempos. Não leva rigorosamente a lugar nenhum. Reforça o sistema, em vez de miná-lo. É, na verdade, o efeito colateral de uma vida bloqueada, sem esperança, sem utopia, individualizada e fragmentada, de uma sociedade em que a violência entrou na corrente sanguínea, de um Estado pouco eficiente, de uma cultura que homenageia o espetáculo, mas não se complementa com uma ética pública consistente. Produto das contradições de um capitalismo sem freios e do descontrole que afeta a vida coletiva.

Mas nem tudo que verte sangue nas ruas é ação black bloc. Nem todos os que batem e quebram seguem a eventual filosofia de vida que lhe é típica. Muitos são revoltados, gente que quer dar um basta à vida infame que leva na periferia ou que deseja visualizar algum futuro além dos shopping centers. Podem até existir alguns “riquinhos” que aproveitam o pique para descarregar hormônios reprimidos ou mal utilizados.

Não havia black blocs na rodovia Fernão Dias, em São Paulo. Mas havia muita revolta, indignação, ressentimento e medo. Adrenalina de sobra para enfrentar a polícia, pois a polícia é um dos piores pesadelos das periferias urbanas, onde entra sem pedir licença, sem dialogar, matando com espantosa facilidade. 

Não se precisa de black blocs para que se extravase o que está armazenado nos porões das periferias, carências e sofrimentos que se misturam com criminalidade, drogas e miséria. A desesperança alimenta desejos de vingança, protestos imprecisos contra tudo que representa ordem e autoridade. Porque a ordem e a autoridade que se apresentam ali não nasceram de nenhuma construção, não são de modo algum “amigáveis”.

É uma situação que afeta a todos, mas fere sobretudo os mais jovens. Mata-lhes o futuro, convida-os a fazer cálculos existenciais negativos. É por isso que são eles que se jogam contra a polícia, que queimam e destroem. Encontram assim formas de lutar por reconhecimento, de aparecer, de adquirir uma identidade que a vida lhes rouba, de exigir uma atenção que lhes é negada. Ou será que há alguma política para eles, algum braço do Estado que não seja o da polícia? A democracia política não lhes faz muito sentido, pois seus resultados não são palpáveis, não são decodificados. Quem atua nas periferias como agente democrático? Agem ali operadores e associações de outro tipo, algumas delas especializadas em fomentar violência.

A violência explode sempre que a política soluça, a democracia não encorpa como valor e os governos não produzem resultados. Anda junto com a exclusão, o crime, a exploração. Não há como sumariamente suspendê-la. Em épocas de má política e muito espetáculo, a necessidade de dizer “não aguento mais” conflui para a busca de um lugar que dê visibilidade. É uma via torta, contraproducente. Mas há um tipo de política nela, que precisa ser compreendida. Até para que não se ative uma espiral de violência que a ninguém beneficiará.

Como apagar o rastilho? Certamente não com mais polícia. Pactos e entendimentos são recursos cívicos eficazes, atos que celebram a cooperação para a conquista de coisas comuns, no caso, políticas públicas e direitos. Se forem sérios, generosos e tiverem qualidade, vencem. Temos deficiências nessa área, mas sempre se pode tentar superá-las. Poder-se-ia começar, por exemplo, com um pacto intraestatal: situação e oposição, União, Estados e municípios trabalhando juntos, em nome de um plano de recuperação das periferias, de desmilitarização da polícia, de valorização das escolas, gestos que deixem claro que se quer de fato fazer alguma coisa. Sem isso, será difícil que se avance.

*MARCO AURÉLIO NOGUEIRA É CIENTISTA SOCIAL, DIRETOR DO INSTITUTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNESP E ACABA DE LANÇAR AS RUAS E A DEMOCRACIA - ENSAIOS SOBRE O BRASIL CONTEMPORÂNEO (CONTRAPONTO)