quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Na prisão, lavar roupa e cozinhar


Personagem central do mensalão, José Dirceu diz a pessoas próximas que vê regime fechado como inevitável e já calcula como reduzir seu drama

04 de setembro de 2013 | 2h 21

FELIPE RECONDO / BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo
José Dirceu já fez e refez mentalmente os cálculos de quanto tempo passará trancado caso o Supremo Tribunal Federal rejeite os recursos de seus advogados.
10 anos e 10 meses é o total da pena de José Dirceu no mensalão - Daniel Teixeira/AE
Daniel Teixeira/AE
10 anos e 10 meses é o total da pena de José Dirceu no mensalão
A matemática do primeiro ministro da Casa Civil do governo Lula, personagem-símbolo do mensalão, condenado a 10 anos e 10 meses de detenção por comandar o esquema, é a seguinte: ele tem direito a pedir progressão de regime para o semiaberto - em que é obrigado a apenas dormir na cadeia - após um sexto da pena, mas quer cozinhar e lavar roupa na prisão para adiantar em seis meses esse benefício.
Assim, chega ao seu tempo de cárcere: 1 ano e 4 meses.
O petista tem dito aos mais próximos que não acredita num novo julgamento pelo Supremo, algo que lhe daria a chance de diminuir sua pena.
Diz, segundo relatos, que gostaria de ficar preso nas proximidades de Vinhedo, cidade onde mora, como no Centro de Ressocialização de Limeira, a 151 km da capital paulista.
Mas afirma que outra alternativa seria cumprir a pena no presídio de Tremembé, a 147 km de São Paulo, onde diz que a presença de integrantes da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) reduz o risco de rebeliões.
Nos últimos dias, Dirceu passou a se preparar para a prisão e a pensar como fará para se comunicar, para escrever e continuar a fazer política. Tem dito que já imaginava um resultado ruim quando o Supremo, seis anos atrás, recebeu a denúncia do Ministério Público Federal e abriu a ação penal contra 40 pessoas - 25 acabaram condenadas.
O ex-ministro tem afirmado ainda que desconfia que o tribunal possa decretar as prisões imediatamente, logo após o julgamento dos primeiros embargos de declaração, que devem ser concluídos hoje - normalmente, os ministros do STF mandam prender os condenados após uma segunda leva de recursos.
Entrevista. Nesse cenário de prisão imediata, Dirceu diz que concederá uma entrevista coletiva, apresentará documentos que mostrariam não ter havido desvio de dinheiro público do Banco do Brasil para o mensalão, tese que contraria o entendimento do STF, se autodeclararia preso político e aguardaria, em casa, a prisão pela Polícia Federal.
Os próximos passos seriam o pedido de revisão criminal no Supremo, quando ministros podem corrigir eventuais erros no julgamento e reduzir as penas, e um recurso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Dirceu aposta que o julgamento televisionado, sob pressão da opinião pública e em única instância, será visto como de exceção no plano internacional. Nos dois casos, não há perspectiva, porém, de reverter a prisão. O objetivo seria uma "anistia política", um plano para "5 ou 10 anos", como afirma a pessoas próximas a ele.
Carta. Dirceu confidenciou a amigos que pretende publicar uma carta aberta ao ministro Celso de Mello, buscando rebater as acusações que diz ter sofrido.
Na semana passada, em seu voto, Celso de Mello afirmou que o ex-ministro não soube exercer a política com honestidade e integridade e que cometeu crimes para obter vantagens para si.
"O STF, longe do que se buscou afirmar, não incriminou a atividade política. É importante enfatizar que não se está a incriminar a atividade política, mas isto sim a punir aqueles, como o ora embargante (José Dirceu), que não se mostraram capazes de exercê-la com honestidade, com integridade e elevado interesse público, preferindo, ao contrário, longe de atuar com dignidade, transgredir as leis penais com o objetivo espúrio de conseguir vantagens indevidas e de controlar de maneira absolutamente ilegítima e criminosa o próprio funcionamento do aparelho de Estado", disse Celso de Mello em seu voto ao julgar o recurso de Dirceu na semana passada.
A relação entre Dirceu e Celso de Mello remonta ao tempo em que moraram na mesma pensão, quando eram estudantes universitários. Os dois, no entanto, nunca foram próximos.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Economia do Brasil não está tão ruim como pensam, diz criador do BRIC

O futuro econômico do Brasil é melhor do que o clima atual indica e o crescimento pode voltar ao patamar de 4% ao ano, opina o economista britânico Jim O'Neill, ex-executivo do banco de investimentos Goldman Sachs e conhecido por ter criado a sigla BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) para englobar as principais economias emergentes.
O tom otimista da palestra de O'Neill, nesta sexta-feira, em um congresso da BM&FBovespa em Campos do Jordão (SP), contrastou com a percepção predominante entre analistas brasileiros de que o crescimento do PIB – de 1,5% no segundo trimestre – não resultará em uma retomada econômica mais robusta.
"Suspeito que o futuro (do Brasil) não seja tão sombrio quanto o que tenho ouvido aqui", disse o economista, alegando que a média de crescimento do país é hoje superior à do início da década passada, quando criou o acrônimo BRIC. "O Brasil está melhor, e não pior."
Ele diz que o país tem apresentado indicadores melhores no que chama de "nota de ambiente de crescimento" - como estabilidade política, expectativa de vida, índices de corrupção e até uso de computadores e smartphones.
O economista diz ainda que o comércio sul-sul (realizado sobretudo entre países emergentes) está próximo de alcançar o comércio norte-norte (entre os países desenvolvidos).
"(Mas) para o Brasil melhorar precisa de mais investimentos do setor privado. É preciso aumentar a oferta (econômica), mas não com mais gastos do governo, e sim com o governo saindo do caminho e facilitando a iniciativa privada", declarou.
'E o país precisa ser parte maior da economia global – o país ainda é visto como muito fechado e precisa se relacionar mais com os demais 7 bilhões de pessoas do mundo."

China

A fala de O'Neill ocorre no momento em que países ricos, como os EUA, apresentam sinais de recuperação, enquanto emergentes – até recentemente fortes motores da economia global – vivem uma desaceleração.
A China, em especial, deixou de crescer a taxas de dois dígitos e tem como meta para 2013 crescer 7,5%.
O'Neill, porém, diz acreditar que o governo chinês escolheu crescer a taxas mais baixas para se manter sustentável.
"E esses 7,5% são equivalentes a um crescimento de 3,75% na economia dos EUA, porque seu impacto econômico está cada vez maior."
O'Neill ressalva que não adianta países emergentes como o Brasil tentarem repetir as taxas de crescimento econômico chinesas – algo, segundo ele, só permitido pela situação demográfica da China, país mais populoso do mundo.

BRIC e câmbio

Questionado a respeito do anúncio do Ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que os BRICS (incluindo a África do Sul) trabalham na criação de um banco de desenvolvimento conjunto, O'Neill disse que até agora o grupo de emergentes "falou muito mas não fez nada juntos politicamente".
"Não é fácil fazer coisas juntos quando se é tão diferente entre si. O fato de terem concordado nisso é muito interessante".
Quanto à desvalorização do real – que ocorre ao mesmo tempo em que outras moedas internacionais perdem força perante o dólar -, O'Neill vê a flutuação como natural e até positiva para o Brasil.
"Mas se querem reduzir sua volatilidade (à moeda americana), têm de aumentar o uso de sua própria moeda no comércio mundial."

domingo, 1 de setembro de 2013

Quando imagens falam alto - DORRIT HARAZIM


O GLOBO - 01/09

Por mera associação visual de imagem, o flagrante de Fortaleza trouxe à mente uma foto — essa sim, icônica — captada em Little Rock, no estado do Arkansas, 56 anos atrás



É sempre imprevisível o desdobramento que pode ter na vida de uma pessoa até então desconhecida o fato de ter sido fotografada, por acaso, no lugar errado e na hora errada. Ou no lugar certo e na hora certa. A História está coalhada desse tipo de instantâneo que transforma o protagonista em símbolo de algo maior do que ele.

Nesta linha, vale esmiuçar uma foto estampada na primeira página da “Folha de S.Paulo” desta terça-feira. Ela mostrava, em primeiríssimo plano, um homem de estatura forte e fisionomia tensa. Sua linguagem corporal era defensiva. Mantinha o olhar fixo em algum ponto morto, talvez para evitar contato visual com a hostilidade à sua volta. Sua alegre camisa xadrez amarela parecia destoar do ambiente carregado.

Era negro, cubano e médico.

No flagrante captado pelo fotógrafo, ele recebia apupos de duas mulheres que estreitavam sua passagem. Brancas, ainda jovens e de fino trato, destacavam-se pelos jalecos. Faziam parte de um grupo de médicos cearenses. Com as mãos em torno da boca para ampliar o eco das ofensas, xingavam o cubano em coro com outros só parcialmente enquadrados. Eram o retrato da intolerância.

Como foi fartamente noticiado, o episódio ocorreu em Fortaleza, no fim do primeiro dia de treinamento dos 96 recém-desembarcados estrangeiros (79 dos quais cubanos) do programa Mais Médicos. No Ceará, onde 701 dos municípios foram preteridos por profissionais brasileiros, o Sindicato dos Médicos estadual decidira protestar contra a contratação de cubanos e cercara a Escola de Saúde Pública da cidade, onde se realizava o curso. Houve tumulto, empurra-empurra, ovo voando.

Ao fim da aula inaugural, os cubanos, assustados, se viram cercados e obrigados a passar por um corredor humano de colegas de profissão brasileiros que os vaiavam e chamavam de “escravos”, “incompetentes”. Palavras de ordem como “Voltem para a senzala” foram entoadas contra os estranhos ao ninho.

Por mera associação visual de imagem, o flagrante de Fortaleza trouxe à mente uma foto — essa sim, icônica — captada em Little Rock, no estado do Arkansas, 56 anos atrás. Ela transformou o rosto de uma adolescente de 15 anos na imagem do ódio racial nos Estados Unidos e fez da fisionomia da outra adolescente retratada a face da tenacidade negra. À época, nenhuma das duas jovens americanas sequer notou o instante em que o fotógrafo do “Arkansas Democrat” virou suas vidas pelo avesso.

Foi no dia 4 de setembro de 1957, seis anos antes de o pastor Martin Luther King levar para Washington seu célebre discurso-sonho de uma América menos desigual. Elizabeth Eckford era uma adolescente reservada. Estava entre os nove alunos negros de Little Rock selecionados para cumprir a ordem judicial de integração racial na cidade. Mas se perdeu do seu grupo e precisou marchar sozinha em direção ao portão principal da melhor escola local, até então reservada a alunos brancos.

À sua frente, teve a passagem barrada por soldados armados da Guarda Nacional. Às suas costas, uma pequena multidão começou a lhe lançar xingamentos. “”Vamos linchá-la”, “Dá o fora, macaca”. Uma senhorinha branca a quem pediu ajuda lhe cuspiu no rosto.

Ao tentar sair dali sem correr, como lhe ensinara a mãe, teve um séquito de jovens no seu encalço, além de três adolescentes coladas no calcanhar.

Quando o flash do fotógrafo disparou, uma das três entoava o bordão “Vai pra casa, nigger. Volta para a Africa”. Era Hazel Bryan, de 15 anos, esbelta, coquete e popular aluna do colégio segregado. A foto captou-a de olhos e sobrancelhas franzidos e de boca aberta contorcida pela raiva. E, em primeiro plano, via-se a estudante negra Elizabeth, de vestido de algodão branco, apertando um fichário e um livro contra o peito. Prosseguia sua caminhada de cabeça erguida, com o medo escondido atrás de óculos escuros.

Por mero acaso e apesar da pouca idade, ambas foram assim catapultadas para a História — Hazel como o retrato do ódio racial, Elizabeth, o da determinação — e tiveram o resto de suas vidas marcado por aquele instantâneo.

O flagrante do episódio cearense difere em quase tudo do caso que entrou para a história dos direitos civis americanos como “Os Nove de Little Rock” — na natureza, no significado, na dimensão, na consequência. Aproximam-se apenas por humanizarem de forma indelével, para o bem ou para o mal, um noticiário até então sem rosto.

No caso de Little Rock, as duas protagonistas eram meninas que repetiram em público o que aprenderam em casa. No caso de Fortaleza, são todos adultos — o cubano negro, assustado, mais tarde identificado como Juan Delgado, de 49 anos, que já trabalhou quatro anos no Haiti — e as duas médicas brasileiras retratadas aos apupos. Olhando pelo retrovisor, talvez preferissem ter ficado fora da foto. Ou do foco.

Em tempo: segundo dados do Censo de 2010, somente 1,5% dos médicos brasileiros se autodenomina negro e 13,4% se autoclassificam como pardos. Já no cômputo geral dos agora mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros, contudo, 50,7% se autodeclaram pretos ou pardos.