quinta-feira, 19 de maio de 2011

A Fapesp no limiar dos seus 50 anos


15 de maio de 2011 | 0h 00
Celso Lafer - O Estado de S.Paulo
São Paulo foi pioneiro, no nosso país, no reconhecimento da importância do respaldo à pesquisa, vale dizer, das atividades voltadas para a descoberta de novos conhecimentos que ampliam o entendimento e o poder de uma sociedade sobre seu destino. A Constituição paulista de 1947, no seu artigo 123, estipulou que "o amparo à pesquisa científica será propiciado pelo Estado" e previu o modo de efetivá-lo por meio de uma fundação que teria anualmente uma renda especial de sua privativa administração não inferior a 0,5% do total da receita ordinária estadual.
O artigo teve sua origem em documento preparado pela comunidade científica paulista. Encontrou guarida na constituinte estadual. Seus paladinos foram os deputados Lincoln Feliciano, do PSD, e Caio Prado Jr., do PCB, que deixaram de lado divergências partidárias para patrocinar o interesse público. A "ideia a realizar" do amparo à pesquisa consagrada na Constituição paulista de 1947 precede, assim, a criação de órgãos federais com intento similar, na década de 1950.
A maturação da fundação prevista na Constituição estadual levou seu tempo. Foi obra do governador Carvalho Pinto, que a incluiu no seu Plano de Ação. Foi ele que teve a iniciativa do projeto que se transformou na Lei 5.918, de 18/10/1960, a qual autorizou o Executivo a instituir a Fapesp, e a instituiu efetivamente pelo Decreto 40.132, de 23/5/1962, consagrando a diretriz de que o amparo à pesquisa é uma política pública de Estado de longo prazo, e não de governos, que requer a sustentabilidade de recursos regulares e autonomia administrativa.
Na concepção da Fapesp que o governo Carvalho Pinto pôs em marcha, em interação com a comunidade acadêmica e o Poder Legislativo, cabe realçar a precisão conferida ao "amparo à pesquisa", preconizado pela Constituição. Destaco: a de que a Fapesp deveria apoiar a pesquisa, e não fazer pesquisa; a de que deveria fornecer elementos de orientação e auxílio financeiro, sem interferir com a personalidade do investigador ou da instituição; a de que o âmbito da sua ação deveria ser limitado apenas pela idoneidade dos projetos e pela extensão dos recursos disponíveis; a de que não cabia restrição quanto ao gênero da pesquisa realizada; a do reconhecimento da interdependência da pesquisa básica e da pesquisa aplicada; a da limitação das despesas administrativas a um teto de 5% do orçamento da fundação para assegurar que os recursos, provenientes do contribuinte paulista, fossem aplicados tendo em vista os fins; a da republicana prestação de contas - contrapartida da autonomia - não apenas aos órgãos de controle da administração pública paulista, mas também à comunidade mais ampla, mediante relatórios anuais de suas atividades; a do empenho na objetividade e imparcialidade na avaliação das solicitações apresentadas, pela análise dos pares, o que ensejou a integração da comunidade acadêmica ao processo decisório da Fapesp.
Essas diretrizes estão consubstanciadas nos estatutos da fundação, aprovados pelo Decreto 40.132, de 22/5/1962. Continuam em vigor e retêm plena atualidade graças ao mérito de sua concepção. Paulo Vanzolini, que teve papel decisivo na sua redação, declarou por ocasião dos 40 anos da instituição: "A Fapesp, para mim, se resume num nome, Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto" - explicando que o governador não cozinhou o assunto em banho-maria, teve cabeça, decisão, calma e competência no trato da matéria. É por isso que em sua homenagem, e com a presença do governador Geraldo Alckmin, o auditório da Fapesp receberá dia 23, no início das comemorações dos 50 anos da instituição, o seu nome. Homenagem merecidíssima, pois a Fapesp que se deve ao seu descortino público é um marco na institucionalização do apoio à pesquisa no Estado e no País, comparável à criação, em 1934, da USP, no âmbito da estruturação da universidade brasileira.
A sustentabilidade das atividades da Fapesp viu-se subsequentemente reforçada com a estipulação do pagamento em duodécimos da sua parte na receita anual do Estado e a elevação do seu porcentual para 1% na Constituição estadual de 1989 (artigo 271), que explicitamente adicionou à sua missão o desenvolvimento tecnológico (iniciativas dos deputados Fernando Leça e Aloysio Nunes Ferreira).
A Fapesp começou modestamente. Examinou, em seu primeiro ano de ação, 507 projetos e aprovou 57 bolsas e 265 auxílios à pesquisa. Entre elas, as da dra. Vitória Rossetti, que propiciaram o controle do cancro cítrico, que ameaçava a agroindústria do Estado. Com o tempo, o patamar da instituição foi se elevando para efetivar as finalidades previstas na sua concepção e contribuir para aprimorar os paradigmas da organização da pesquisa de instituições públicas e privadas que atuam no nosso Estado. Disso são exemplos os projetos temáticos e os programas de apoio a centros de excelência (Cepids) que respaldam a continuidade por prazos mais longos de pesquisas mais complexas. É o caso também de pesquisas abrangentes com estrutura organizacional complexa e em rede, como o Biota, voltado para o estudo da biodiversidade de São Paulo e seu uso sustentável.
Em 2010 a Fapesp desembolsou R$ 780,3 milhões no apoio à pesquisa - 36% na formação e no aprimoramento de recursos humanos (bolsas) e 64% para o apoio direto à pesquisa. Nesse mesmo ano foram contratados 11.555 novos projetos. Saúde, biologia, engenharia, ciências humanas e sociais, agronomia e veterinária foram as cinco áreas de conhecimento que receberam o maior volume de recursos.
O valor agregado do conhecimento individualiza o Estado de São Paulo no cenário nacional. É uma marca da presença paulista num mundo globalizado, que contou com a decisiva ação da Fapesp ao longo dos 49 anos de sua existência, na linha de uma visão estratégica constitucionalmente preconizada e superiormente institucionalizada, pelo governador Carvalho Pinto.
PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, PRESIDENTE DA FAPESP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC 


A revanche da tiririca, por Thomas Lewinsohn - O Estado de S.Paulo


Para professor, mudanças do novo Código Florestal podem trazer consequências ambientais graves

15 de maio de 2011 | 0h 15

O Código Florestal brasileiro, com quase meio século de existência e emendado por vários decretos e leis posteriores, precisa ser revisado para se adequar ao Brasil do século 21 e ampliar sua eficácia como principal instrumento de salvaguarda da integridade ambiental do País, consolidando essa salvaguarda no variado espectro de demandas presentes e futuras de ocupação e utilização de todos os ecossistemas brasileiros.
Não é essa a revisão, porém, que hoje está em curso no Congresso Nacional. O novo código está sendo concluído com o frenesi de carro alegórico que precisa entrar no sambódromo. Corre-se sob pressão de uma crise fantasiosa de produção de alimentos, a qual estaria na iminência de ser estrangulada pela impossibilidade de se expandir a área cultivável nas áreas protegidas pelo atual código. De onde surgiu tal crise? Tudo indica que o vencimento, dentro de poucos meses, do prazo para enquadramento de propriedades rurais na legislação vigente - prazo sabido desde muito e repetidamente postergado - fez o agrolobby mobilizar seus parlamentares para alterar a legislação a toque de caixa.
Como se engendrou a proposta de Código Florestal que está em pauta? Segundo a comissão do Congresso liderada pelo relator Aldo Rebelo, foram consultados centenas de representantes de todos os interesses e áreas de conhecimento. Foram, alegadamente, também ouvidos "cientistas" e "ambientalistas" - como se não existisse uma ciência ambiental séria no Brasil.
Os poucos cientistas que chegaram a ser ouvidos ou lidos foram cuidadosamente pré-selecionados pelo que teriam a dizer; além do mais, a proposta incorporou somente o que o relator houve por bem (ou mal) entender. Salvo exceções simbólicas, a ciência brasileira no todo, os cientistas mais experientes, mais capacitados, as instituições mais representativas, não foram engajados efetivamente nessa elaboração, canalizada desde o inicio para intenções tendenciosas e muito distantes do interesse público e do bem comum.
Desde quando versões preliminares vieram a público, sociedades científicas e grupos de pesquisadores realizaram reuniões e produziram documentos avaliando o atual projeto. A Abeco (Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação), com o Programa Biota-Fapesp, avaliou as consequências das alterações propostas para a biodiversidade brasileira. Um estudo mais extenso foi produzido pela Academia Brasileira de Ciências com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, as principais sociedades nacionais que congregam cientistas de todas as áreas.
Os documentos reúnem análises bem fundamentadas que evidenciam um amplo leque de consequências extremamente preocupantes das modificações que estão por ser introduzidas e, inevitavelmente, tornarão o código menos eficaz em assegurar a integridade ambiental brasileira.
Vão além. Estudos detalhados mostram que, no Brasil, há ampla margem para reordenar pastagens com maior aptidão agrícola para o cultivo e incorporar tecnologias para aumentar a eficiência da pecuária. Com isso, é viável incrementar a produção brasileira sem avançar sobre as paisagens naturais remanescentes nas propriedades rurais. Ironia que no Brasil, talvez o último grande país no mundo que ainda detém a possibilidade de conciliar um vigoroso desenvolvimento agrícola com a manutenção efetiva de sua integridade ambiental, essa opção possa ser barrada por obra de um segmento míope e inconsequente do agronegócio.
Nada mais arcaico que uma visão agrodesenvolvimentista que persiste em enxergar as áreas de proteção permanente e as reservas legais do CFB tão somente como terrenos roubados à produção. Uma visão incapaz de reconhecer que, antes até de contribuir para a conservação da biodiversidade, essas áreas subtendem sua produção, preservam a qualidade ambiental de sua propriedade e a saúde de seus habitantes; em suma, asseguram serviços ambientais indispensáveis à qualidade de vida e a um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
Outra ironia: o pequeno proprietário rural, o alegado beneficiário maior das drásticas reduções de APPs e reservas legais embutidas na atual proposta, é quem mais terá a perder - privado que será da proteção contra erosão e degradação de água e solo, da polinização nativa de suas culturas e tantos outros serviços ambientais prestados pelos remanescentes de ecossistemas naturais que serão eliminados ou deixarão de ser recompostos. É esse proprietário que estará mais exposto aos efeitos da degradação ambiental acelerada, sem recursos e capital para se defender.
O Brasil precisa, sim, de um novo CFB; mas um código que alicerce firmemente uma política ambiental brasileira. Uma política unificada, respaldada e implementada não apenas pelo Ministério do Meio Ambiente, mas por todos os segmentos do governo. Um código, e uma política, assentados sobre o melhor conhecimento disponível, que reflitam escolhas lúcidas e sensatas, norteadas pelos maiores interesses da nação.
Esse novo código só poderá resultar de um processo maduro de elaboração conjunta que envolva as melhores lideranças e competências técnicas, científicas e políticas de que o Brasil dispõe. Que, mesmo quando discordem, não percam de vista o objetivo maior de assentar as atividades humanas numa matriz ambiental saudável, funcional e bem cuidada. Que não manipulem palavras para tornar inócua a legislação que têm o dever de aperfeiçoar. As sociedades científicas propuseram dois anos para elaborar um projeto de Código Florestal. Não é demais. A alegação de que quem queria se manifestar já teve sua chance e que acabou o tempo é pueril e talvez reflita um temor de participar de discussões substantivas e se defrontar com argumentos técnico-científicos reais. É difícil, mas não impossível, que ate 2014 o Brasil ainda consiga produzir uma boa Copa. Parece igualmente difícil, mas é muito mais importante, dar-se um tempo igual para produzir o novo Código Florestal para o Brasil.

THOMAS LEWINSOHN, DOUTOR EM CIÊNCIAS E PROFESSOR TITULAR DE ECOLOGIA DA UNICAMP, É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA ECOLÓGICA E CONSERVAÇÃO 


''Homo sapiens'' X celulose


19 de maio de 2011 | 0h 00

Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
Quem observa uma vaca pastando pode imaginar que as plantas são presas fáceis para os herbívoros. Afinal a planta fica lá quietinha, fixa ao solo, incapaz de reagir, enquanto a vaca abocanha o pedaço que melhor lhe apetece. Na verdade, os herbívoros enfrentam dificuldades enormes para conseguir se alimentar das plantas que devoram. Isso porque as plantas são capazes de tornar indisponível grande parte do alimento que produzem e estocam. Faz milhões de anos que os herbívoros tentam acessar esse alimento e até hoje seu sucesso foi pífio. Agora o homem, usando a ciência, resolveu entrar na briga pelo alimento oculto em cada planta.
Durante o dia, a planta usa energia solar, água e gás carbônico para produzir açúcar, o alimento preferido de todo animal. Mas ela é esperta e há milhões de anos descobriu como emendar uma unidade de açúcar na outra, produzindo um longo polímero chamado celulose. A celulose tem a estrutura de um colar de pérolas, no qual cada pérola corresponde a uma unidade de açúcar. O problema é que os animais não conseguem quebrar esse polímero e ter acesso às subunidades de açúcar capazes de fornecer a energia necessária para eles viverem.
Todos sabemos que as fibras (feixes de celulose "coladas" entre si por outra molécula, chamada lignina) são de difícil digestão. Mastigamos e engolimos as malditas, mas elas acabam saindo quase intactas nas fezes. No caso da cana-de-açúcar, somente utilizamos o açúcar dissolvido na garapa, seja para produzir álcool ou açúcar cristalizado. Mais da metade do açúcar produzido pela planta está na celulose que fica no bagaço. Hoje ele é queimado para produzir eletricidade. Por isso vacas e cavalos pastam o dia todo, sendo forçados a comer enormes volumes de plantas para extrair o alimento de que necessitam, enquanto os usineiros plantam muita cana para produzir relativamente pouco açúcar.
Durante os milhões de anos de evolução, somente alguns micro-organismos aprenderam a degradar celulose. São os fungos que degradam troncos das árvores nas florestas. Eles vivem do açúcar que obtêm da celulose. Mas esse processo é tão lento que a madeira leva anos para apodrecer. A celulose é tão resistente que produzimos casas e móveis com madeira, nada mais que um polímero de açúcar e lignina, muito bem compactado pelas espertas árvores.
Mas os ruminantes, há milhões de anos, uniram suas forças às dos micro-organismos capazes de degradar celulose. As vacas "convidaram" os fungos a viverem nos seus rumens. O rúmen de uma vaca é um saco onde vivem milhares de tipos de organismos capazes de degradar celulose. Parte do açúcar produzido alimenta os bichinhos, parte é absorvido pelas vacas. A vaca mastiga o capim (facilitando a ação dos micro-organismos) e ele vai para o rúmen, onde é digerido lentamente.
Para misturar de vez em quando esse caldo de micro-organismos e capim moído, a vaca regurgita o conteúdo do rúmen, que volta para a boca para ser mastigado mais um pouco e é engolido novamente. Esse ciclo se repete durante horas, enquanto os micro-organismos vão quebrando a celulose.
O resultado desse trabalho conjunto é pífio. No máximo 40% do açúcar presente na celulose é liberado, o resto sai nos excrementos.
Genética. Agora, um grupo de cientistas isolou os genes capazes de produzir enzimas que degradam a celulose nos micro-organismos que vivem no rúmen de uma vaca. A ideia é descobrir enzimas que liberem o açúcar desperdiçado no bagaço de cana e em outras fontes de biomassa. Os cientistas operaram algumas vacas e colocaram no rúmen delas um saco de nylon poroso contendo capim moído. Deixaram o saco lá por 72 horas, retiraram-no e isolaram o DNA de todo ser vivo aderido ao capim moído. De posse do DNA, sequenciaram-no em larga escala. No total foram 269 bilhões de pares de bases (o DNA humano tem um décimo disso). E foram analisar essas sequências.
Descobriram que o DNA pertencia a aproximadamente mil espécies diferentes de micro-organismos, cada uma com milhares de genes. Encontraram 27.755 genes que produziam proteínas que poderiam estar envolvidas na degradação da celulose. Selecionaram os 90 mais promissores, cujas proteínas foram produzidas e testadas para verificar se realmente degradavam a celulose presente em dez diferentes tipos de materiais vegetais.
Desses, 57% se mostraram capazes degradar celulose. De quebra, com os dados obtidos, foi possível descobrir o genoma completo de 15 micro-organismos presentes na biodiversidade do rúmen da vaca (sim, rúmen também tem sua biodiversidade) que ainda eram desconhecidos.
De posse dessas informações, coletadas e cultivadas pelas vacas e seus antepassados por milhões de anos, nós, os Homo sapiens, vamos tentar fazer um trabalho melhor que o feito pela evolução. A ideia é desenvolver um coquetel de enzimas capaz de ser mais eficiente que o existente no rúmen das vacas.
Será que seremos capazes de aproveitar rápida e economicamente mais que os 37% dos açúcares extraídos pelas vacas? Ou será que as plantas resistirão ao ataque de nossos cientistas e continuarão a esconder de nós grande parte do alimento que produzem através da fotossíntese?
Se triunfarmos, você vai adoçar seu cafezinho com açúcar produzido de bagaço e colocar no tanque etanol produzido a partir de celulose. Esse é mais um capítulo da saga do Homo sapiens, que há 100 mil anos tenta dominar e explorar os outro seres vivos com quem divide o planeta.
BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: METAGENOMIC DISCOVERY OF BIOMASS-DEGRADING GENES AND GENOMES FROM COW RUMEN. SCIENCE, VOL. 331, PÁG. 463, 2011