Valor Econômico - 13/01
O futuro depende de uma mobilidade estudantil intensa
Todo empresário interessado em ter mão de obra de nível universitário deveria saber o que é o processo de Bolonha. Todo professor universitário, igualmente. Mas não é o caso: poucos brasileiros o conhecem.
A União Europeia nasceu, em 1957, como Mercado Comum Europeu, unindo seis países. Seu objetivo mínimo era ampliar o comércio entre os membros e, assim, a produção em cada um deles. Já seu objetivo maior era impedir guerras: se para fazer aço era preciso carvão alemão e ferro francês, então ou um país roubava do outro o insumo que lhe faltava, ou os dois se aliariam. Aliaram-se. Com o tempo, o Mercado Europeu foi muito além de sua cópia sul-americana, o Mercosul. Autorizou seus cidadãos a viver e a trabalhar em qualquer dos países-membros, padronizou produtos, criou um Parlamento comum, cresceu. E em 1999 seus ministros da Educação assinaram a declaração de Bolonha, que depois seria endossada por outros países, hoje totalizando 47 - incluindo dezenove que não estão na União Europeia.
Seu ponto talvez central é promover uma enorme mobilidade estudantil. Um universitário pode começar seu curso num país, fazer matérias em outra universidade (ou país) e usar os créditos assim obtidos com certa facilidade. É o que se chama portabilidade de créditos. Imaginem isso aqui. Se um brasileiro for trabalhar dois anos na Argentina e levar os filhos crianças ou adolescentes, terá muito trabalho para revalidar os cursos que fizeram na escola básica. O que é de um absurdo total! É óbvio que, se meu filho passar dois anos em Buenos Aires, ele até poderá voltar ao Brasil cometendo alguns erros de português - mas dominando a língua, os costumes, a cultura de nosso principal aliado e parceiro. Em poucos meses, alcançará os colegas brasileiros no que lhe ficou faltando, e poderá repassar a eles muito do que aprendeu. Mas não temos previsão, em nosso sistema escolar, para um "fast track" nessa direção. Ao contrário, burocratizamos tudo isso. E no ensino superior ou na pós-graduação, a desconfiança é ainda maior.
Mas atenção. Bolonha não é um liberou geral. Não basta cursar uma disciplina qualquer, onde quer que seja, para ela valer. Aliás, o Brasil sabe dos problemas disso. Na Argentina, uma instituição de ensino superior - que não é reconhecida nem mesmo lá - se especializou em dar títulos de doutor a brasileiros. Nossos cursos de doutorado a conhecem e, com o apoio da Capes e do Conselho Nacional de Educação, se negaram a acolher seus títulos, que por sinal eram emitidos com a anotação de não valerem sequer na Argentina... Então, a necessidade suplementar do processo de Bolonha é: cada país precisa ter uma agência poderosa de avaliação e reconhecimento dos cursos de ensino superior. Ela pode ser estatal ou privada, conforme a lei local, mas tem de ser rigorosa. É ela que vai garantir que um crédito da USP valha um da UFRJ, e vice-versa, e vai descartar os cursos de má qualidade.
É preciso detalhar as vantagens desse sistema numa cultura globalizada? Formaremos alunos que conhecerão seu mundo para além das fronteiras. Acabará a atual exigência, sempre que faço uma disciplina fora da faculdade, de pedir seu reconhecimento a uma comissão de três professores, cujo parecer subirá ainda a mais uma ou duas instâncias superiores. A condição para tanto é rigor. Mas uma agência avaliadora sai da apreciação no varejo, no balcão, de cada pedido individual, e vai examinar a qualidade dos cursos mesmos. Todos os que trabalham bem ganham com isso; perde quem trabalha mal. O efeito educacional é enorme.
Quem leu os últimos rankings das universidades do mundo notou que, entre as primeiras 500, são raras as que não dão cursos regulares em inglês - como as nossas USP, Unicamp, UFRJ. Esse assunto é delicado porque, não tendo cursos regulares em inglês, atraímos menos alunos estrangeiros e pontuamos mal no item "mobilidade" - mas, se os dermos, poderemos chegar à esquisitice de professores brasileiros lecionando em inglês para alunos brasileiros, só para termos mais alguns estudantes de fora da América Latina. Esse é um desafio difícil para nossa educação, que precisará ser tratado nos próximos anos. Mas a questão crucial é que precisamos ter uma mobilidade intensa dos estudantes, com os nossos indo para outras instituições e mesmo países, e com nossas universidades recebendo jovens estrangeiros. Isso terá de ser feito, sob pena de nos atrasarmos na cooperação internacional. (Poderia acrescentar a competição internacional, mas na verdade necessitamos de ambas). Como fazer isso? Ninguém sabe ainda resolver a questão da língua, mas podemos começar a discutir a questão central, que é a mobilidade.
Um bom começo seria no âmbito do Mercosul - até para dar-lhe mais ambição porque, seis décadas depois do Tratado de Roma, é pouco nossos quatro países se limitarem a trocar mercadorias, sem uma intensa mobilidade humana, que deve principiar pelos jovens. Agências de avaliação educacional, como a Capes brasileira e congêneres, poderiam assegurar a qualidade pelo menos das melhores instituições de ensino superior desses países, tornando portáteis os seus créditos. Não deveria ser ainda em todas as habilitações, mas poderia começar com cem ou duzentos cursos, em uma ou duas dezenas de universidades de alta qualidade. Está na hora de termos a Universidade sem Fronteiras. Podemos iniciá-la pelas melhores. Isso não é fácil: cada iniciativa dessas abre lugar a ações duvidosas. Mas o desafio existe, e tem de ser enfrentado. Para o bem de nossa cultura, nossa economia e nossa política, não devemos perder tempo.
A União Europeia nasceu, em 1957, como Mercado Comum Europeu, unindo seis países. Seu objetivo mínimo era ampliar o comércio entre os membros e, assim, a produção em cada um deles. Já seu objetivo maior era impedir guerras: se para fazer aço era preciso carvão alemão e ferro francês, então ou um país roubava do outro o insumo que lhe faltava, ou os dois se aliariam. Aliaram-se. Com o tempo, o Mercado Europeu foi muito além de sua cópia sul-americana, o Mercosul. Autorizou seus cidadãos a viver e a trabalhar em qualquer dos países-membros, padronizou produtos, criou um Parlamento comum, cresceu. E em 1999 seus ministros da Educação assinaram a declaração de Bolonha, que depois seria endossada por outros países, hoje totalizando 47 - incluindo dezenove que não estão na União Europeia.
Seu ponto talvez central é promover uma enorme mobilidade estudantil. Um universitário pode começar seu curso num país, fazer matérias em outra universidade (ou país) e usar os créditos assim obtidos com certa facilidade. É o que se chama portabilidade de créditos. Imaginem isso aqui. Se um brasileiro for trabalhar dois anos na Argentina e levar os filhos crianças ou adolescentes, terá muito trabalho para revalidar os cursos que fizeram na escola básica. O que é de um absurdo total! É óbvio que, se meu filho passar dois anos em Buenos Aires, ele até poderá voltar ao Brasil cometendo alguns erros de português - mas dominando a língua, os costumes, a cultura de nosso principal aliado e parceiro. Em poucos meses, alcançará os colegas brasileiros no que lhe ficou faltando, e poderá repassar a eles muito do que aprendeu. Mas não temos previsão, em nosso sistema escolar, para um "fast track" nessa direção. Ao contrário, burocratizamos tudo isso. E no ensino superior ou na pós-graduação, a desconfiança é ainda maior.
Mas atenção. Bolonha não é um liberou geral. Não basta cursar uma disciplina qualquer, onde quer que seja, para ela valer. Aliás, o Brasil sabe dos problemas disso. Na Argentina, uma instituição de ensino superior - que não é reconhecida nem mesmo lá - se especializou em dar títulos de doutor a brasileiros. Nossos cursos de doutorado a conhecem e, com o apoio da Capes e do Conselho Nacional de Educação, se negaram a acolher seus títulos, que por sinal eram emitidos com a anotação de não valerem sequer na Argentina... Então, a necessidade suplementar do processo de Bolonha é: cada país precisa ter uma agência poderosa de avaliação e reconhecimento dos cursos de ensino superior. Ela pode ser estatal ou privada, conforme a lei local, mas tem de ser rigorosa. É ela que vai garantir que um crédito da USP valha um da UFRJ, e vice-versa, e vai descartar os cursos de má qualidade.
É preciso detalhar as vantagens desse sistema numa cultura globalizada? Formaremos alunos que conhecerão seu mundo para além das fronteiras. Acabará a atual exigência, sempre que faço uma disciplina fora da faculdade, de pedir seu reconhecimento a uma comissão de três professores, cujo parecer subirá ainda a mais uma ou duas instâncias superiores. A condição para tanto é rigor. Mas uma agência avaliadora sai da apreciação no varejo, no balcão, de cada pedido individual, e vai examinar a qualidade dos cursos mesmos. Todos os que trabalham bem ganham com isso; perde quem trabalha mal. O efeito educacional é enorme.
Quem leu os últimos rankings das universidades do mundo notou que, entre as primeiras 500, são raras as que não dão cursos regulares em inglês - como as nossas USP, Unicamp, UFRJ. Esse assunto é delicado porque, não tendo cursos regulares em inglês, atraímos menos alunos estrangeiros e pontuamos mal no item "mobilidade" - mas, se os dermos, poderemos chegar à esquisitice de professores brasileiros lecionando em inglês para alunos brasileiros, só para termos mais alguns estudantes de fora da América Latina. Esse é um desafio difícil para nossa educação, que precisará ser tratado nos próximos anos. Mas a questão crucial é que precisamos ter uma mobilidade intensa dos estudantes, com os nossos indo para outras instituições e mesmo países, e com nossas universidades recebendo jovens estrangeiros. Isso terá de ser feito, sob pena de nos atrasarmos na cooperação internacional. (Poderia acrescentar a competição internacional, mas na verdade necessitamos de ambas). Como fazer isso? Ninguém sabe ainda resolver a questão da língua, mas podemos começar a discutir a questão central, que é a mobilidade.
Um bom começo seria no âmbito do Mercosul - até para dar-lhe mais ambição porque, seis décadas depois do Tratado de Roma, é pouco nossos quatro países se limitarem a trocar mercadorias, sem uma intensa mobilidade humana, que deve principiar pelos jovens. Agências de avaliação educacional, como a Capes brasileira e congêneres, poderiam assegurar a qualidade pelo menos das melhores instituições de ensino superior desses países, tornando portáteis os seus créditos. Não deveria ser ainda em todas as habilitações, mas poderia começar com cem ou duzentos cursos, em uma ou duas dezenas de universidades de alta qualidade. Está na hora de termos a Universidade sem Fronteiras. Podemos iniciá-la pelas melhores. Isso não é fácil: cada iniciativa dessas abre lugar a ações duvidosas. Mas o desafio existe, e tem de ser enfrentado. Para o bem de nossa cultura, nossa economia e nossa política, não devemos perder tempo.
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