domingo, 5 de janeiro de 2014

A destruição do sonho americano de Detroit


Antiga capital do carro vê mazelas sociais se multiplicarem

04 de janeiro de 2014 | 22h 23

Cláudia Trevisan, enviada especial de O Estado de S.Paulo
 

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Das inúmeras ruínas do Século 20 que revelam a decadência de Detroit, a mais grandiosa é a antiga fábrica da Packard, a marca que foi símbolo máximo dos carros de luxo americanos até a Segunda Guerra Mundial e que desligou suas linhas de montagem em 1958. A estrutura de 325 mil metros quadrados é um monumento involuntário ao período áureo da industrialização dos Estados Unidos, quando a cidade era conhecida como a capital mundial do carro.
Nos anos 50, Detroit produzia metade dos veículos vendidos no planeta e tinha 1,85 milhão de habitantes, o que fazia dela a quarta maior cidade americana. Desde então, sua população caiu de maneira constante e hoje está em 685 mil pessoas - redução de 65%.
Glórias do passado. A indústria automobilística enfrentou a concorrência dos japoneses e coreanos, passou por uma dolorosa reestruturação e se globalizou, espalhando linhas de produção por todas as partes do planeta, o que reduziu Detroit a uma posição coadjuvante.
Dos cerca de 2,7 milhões de veículos que a General Motors vendeu nos Estados Unidos em 2013, apenas 4% foram produzidos em Detroit. A maior montadora americana mantém sua sede na cidade, no Renaissance Center, um conjunto de sete torres às margens do rio Detroit. Mas apenas uma de suas 11 fábricas americanas permanece na antiga capital do automóvel.
Indústrias de outros setores também desapareceram, no processo que tirou dos EUA o posto de maior nação manufatureira do mundo. Mas em Detroit o movimento foi especialmente perverso. Entre 1970 e 2007, a cidade perdeu 80% de suas fábricas e 78% das lojas de varejo. O êxodo deixou para trás casas desabitadas, edifícios vazios, escritórios desertos, escolas obsoletas e levou à redução cada vez maior da receita de uma prefeitura obrigada a administrar uma área geográfica que não encolheu com a população.
Concordata. O desequilíbrio financeiro foi agravado por alguns governos desastrosos e outros corruptos, que contribuíram para empurrar Detroit à insolvência, com uma dívida de US$ 18 bilhões. No dia 3 de dezembro de 2013, ela se tornou a maior cidade americana a entrar em concordata, dando início a um processo de negociação com credores que será acompanhado de perto por municípios como Chicago e Los Angeles, que enfrentam problemas semelhantes em seus deficitários fundos de pensão.
As estatísticas apresentadas no pedido de concordata revelam uma cidade incapaz de prover serviços básicos aos moradores, imersos em alguns dos piores indicadores sociais dos Estados Unidos. O porcentual de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza é de 36%, mais que o dobro da média de 15,7% do Estado de Michigan. Apenas 12,2% da população concluiu a faculdade, comparado a 25,3% no Estado. O índice de desemprego é de 16,2%, quase dez pontos porcentuais acima dos 7% registrados nacionalmente.
Mas é na estrutura urbana que a decadência se revela a olho nu. O governo estima que há pelo menos 78 mil casas e edifícios vazios na cidade. Números oficiais mostram que 40% dos postes de iluminação não funcionam.
Lembranças. Carl Miller, de 40 anos, mora em um bairro que é o retrato da desolação. Do outro lado de sua calçada, estão os restos mortais de duas casas incendiadas depois de terem sido abandonas. Logo serão demolidas, mesmo destino das que existiam no passado ao seu redor.
"Esse bairro era lindo", lembra Miller, que vive na casa onde sua mãe passou grande parte de sua vida. Na rua, não há nenhum poste de luz público. "À noite não dá para ver nada por aqui." A escuridão e os espaços vazios acobertam usuários de drogas e delinquentes e contribuem para que Detroit seja a mais violenta cidade do país entre as que possuem mais de 200 mil habitantes. A ocorrência de crimes violentos é cinco vezes maior que a média nacional.
A casa ao lado da de Donald Mitchell, de 34 anos, está abandonada. Depois dela, há dois terrenos vazios e mais casas abandonadas. Mitchell vive no mesmo lugar há 25 anos e diz que a situação melhorou um pouco com a destruição de muitas das casas que estavam desocupadas. Mas esse é só o começo do que deve ser um longo processo de recuperação. "As coisas estão melhorando lentamente. Acho que vai demorar de cinco a dez anos para Detroit voltar a ser a grande cidade americana que foi no passado."

Detroit: mais de 78 mil casas e prédios serão postos abaixo

04 de janeiro de 2014 | 22h 29
Cláudia Trevisan, enviada especial de O Estado de S.Paulo
DETROIT - Por um breve período na década de 20, o edifício Book foi o mais alto de Detroit, cidade que tem uma das mais importantes mostras de arquitetura pré-Depressão de 1929 dos Estados Unidos. Hoje, seus 38 andares estão vazios. A alguns quilômetros de distância, fica a estação de trem de Michigan, que serviu a cidade de 1913 até 1988, e atualmente é uma de suas milhares de estruturas abandonadas.

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Por seu porte e relevância histórica, é provável que os dois prédios sobrevivam e encontrem uma nova vocação na onda de recuperação que se esboça na região central de Detroit. Mas dezenas de milhares de casas e edifícios vão desaparecer. A demolição em massa é considerada uma medida necessária para o renascimento da cidade, que deve passar por um processo de downsizing (termo em inglês que define redução de estrutura) para se adequar ao tamanho atual de sua população.
Mas destruir 78 mil locais abandonadas custa dinheiro e demanda tempo. Se cada uma tivesse uma média de quatro moradores, elas seriam suficientes para abrigar toda a população do Guarujá, no litoral de São Paulo. O preço da operação é estimado em US$ 1 bilhão por Matthew Cullen, presidente da Rock Ventures - holding que congrega várias empresas com sede em Detroit, entre as quais a líder americana na concessão de financiamentos imobiliários online.
Metade desse valor poderá vir do orçamento da cidade, nos termos do plano de reestruturação apresentado aos credores pelo interventor Kevin Orr. Outros US$ 150 milhões estão no pacote federal de socorro anunciado em setembro, que tem o valor total de US$ 300 milhões. O restante terá de vir de fundações e da iniciativa privada, que se movimenta para participar do processo, diz Cullen.
A Rock Ventures trabalha no mapeamento de todas as propriedades da cidade, que deverá mostrar quais são irrecuperáveis. Na avaliação do executivo, o ritmo atual de demolições de 3 mil estruturas por ano é demasiado lento. "O problema é que surgem novas a cada ano. É como um câncer que cresce mais rápido do que nós podemos demolir." Cullen e outros empresários de Detroit propõem uma ofensiva que leve à destruição de todas as estruturas irrecuperáveis em três anos.
A Pulte Capital Partners dedica-se a investimentos no setor imobiliário e diz ter sido responsável pela construção de 1 milhão de residências em vários locais do mundo. Mas em Detroit, o presidente da empresa, Bill Pulte, capta recursos para financiar as demolições, estimadas em US$ 10 mil por estrutura.
Pulte levantou US$ 750 mil em doações privadas e está usando os recursos para financiar a destruição de 700 unidades. "Estamos fazendo isso sem fins lucrativos, para nos livrarmos da criminalidade, do entulho e melhorar a qualidade de vida das comunidades", diz ele.
Mas as demolições criam outro problema: o que fazer com os poucos habitantes que permanecem nas casas sobreviventes, para os quais a cidade dificilmente conseguirá prover serviços públicos de maneira eficiente. O ideal seria que a população se concentrasse em áreas viáveis. A questão é como fazer isso, observa o demógrafo Kurt Metzger: "Não há como forçar as pessoas a deixarem suas casas." E desapropriá-las exigiria algo de que a cidade não dispõe: dinheiro.

O renascimento da cidade fantasma

Detroit, berço da indústria automobilística americana, vê suas fábricas abandonadas serem ocupadas por artistas e até pequenos agricultores

21 de janeiro de 2012 | 22h 59
Cleide Silva, enviada especial de O Estado de S. Paulo

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DETROIT - Ao som de uma música frenética, quatro jovens se revezam com agilidade na tarefa de coletar matéria-prima, levá-la ao forno para fundir em um canudo de aço, modelar uma bola incandescente e, enfim, obter uma peça de vidro.
A artista de vidros Kristine Rumman, de 27 anos, é uma das 150 locatárias de um dos ateliês do Centro Industrial Russell, complexo instalado no centro de Detroit, em Michigan, até há algum tempo um dos milhares de prédios abandonados na cidade, castigada pela decadência da indústria automobilística local ao longo das últimas décadas.
O complexo de 2,2 milhões de metros quadrados abrigou uma fábrica de autopeças que montava carros para a Ford e a Chrysler. Foi desativado no fim dos anos 50, quando a empresa faliu. Prestes a ser demolido, foi resgatado em 2003 por US$ 1,5 milhão pelo empresário Dennis Kefallinos, de 57 anos. Ele migrou da Grécia ainda adolescente e seu primeiro emprego foi de lavador de pratos. Hoje, é um grande investidor do setor imobiliário, especializado em comprar prédios abandonados, reformar, dividir em compartimentos e alugá-los a baixo custo.
Conhecida como a cidade dos automóveis, Detroit já foi chamada de cidade fantasma por causa do elevado número de imóveis vazios. Recentemente, um movimento de revitalização, sustentado em parte pela recuperação das montadoras nos últimos dois anos, transforma prédios e casas abandonadas em ateliês de artistas, escritórios, lojas e até hortas comunitárias.
O resultado do movimento que envolve empresários, organizações não governamentais, moradores e governo ainda não é suficiente para reverter a degradação sofrida pela cidade nas últimas décadas. Caminha, porém, para ser impactante na economia local, que segue dependente da indústria de carros.
O mais recente golpe no setor, com corte de produção e empregos, ocorreu na reestruturação promovida por grupos tradicionais como a gigante General Motors para evitar a falência durante a crise internacional de 2008. Com a recente recuperação das vendas, algumas montadoras estão reabrindo fábricas e recontratando. "Vai levar tempo para uma recuperação consistente, mas Detroit ainda é uma cidade de oportunidades", diz Kefallinos.
"Meu trabalho é adquirir prédios mortos e trazê-los de volta à vida", explica o sorridente Kefallinos. Desde os anos 90, ele adquiriu 40 imóveis degradados e os transformou em restaurantes, hotéis, prédios comerciais e residenciais.
"Quando compramos o Russell, não sabíamos o que fazer - até recebermos consultas de interessados em alugar pequenos estúdios", conta Chris Mihailovich, administrador do complexo. Parte do prédio abriga os 150 ateliês de variados artistas, marceneiros, arquitetos, costureiras e designers, que pagam em média US$ 400 a US$ 500 por mês por cem metros quadrados de área, valor que inclui infraestrutura e segurança. "Em dois anos, vamos dobrar o número de ateliês", informa Kefallinos.
Com ajuda de três funcionários, Kristine prepara peças em vidro fundido para uma exposição que fará em junho. "Aluguei o espaço porque é muito flexível", diz a artesã. O acesso às salas do edifício está liberado durante 24 horas, todos os dias da semana.
Outra parte do centro Russell abriga um shopping de pequenos boxes onde são vendidas mercadorias variadas como bolsas, bijuterias, roupas e bebidas. No local ocorre um bazar às sextas-feiras e aos sábados. "Temos 70 lojas no momento, mas o número às vezes é maior", diz Shantell Jackson, gerente da área comercial há um mês e meio.
Sabrina Stovall, ex-bancária de 29 anos e dona da Minas Handbags, fechou uma loja de rua e foi para o shopping há três semanas vender acessórios. "O local é seguro", justifica. O aposentado Larry Thomas, de 57 anos, complementa a renda operando uma franquia de produtos orgânicos da Organo Gold. "Também estamos no Brasil", afirma.
‘Viva em Detroit’. Ao lado do centro Russell está outro prédio ícone de Detroit, onde funcionou a montadora Packard. Em ruínas, continua abandonado.
Um grupo de empresas criou em 2011 o programa "Viva em Detroit" e subsidia para os funcionários a locação ou compra de residências na cidade.
Lideradas pela Quicken Loans, do ramo de hipotecas, as empresas Bleu Cross (seguros), Compuware (tecnologia), DTE Energy (energia), Strategic Staffing Solutions e Urban Science (consultoria) patrocinam a mudança com oferta de US$ 2,5 mil no primeiro ano de locação e US$ 1 mil no segundo. Para a compra da casa, o valor sobe para US$ 20 mil. O empréstimo é perdoado se o funcionário permanecer dois anos no imóvel alugado e cinco no comprado.
Segundo Jennifer Rass, gerente de comunicação da Quicken, o grupo vai investir US$ 4 milhões em cinco anos. O consórcio já adquiriu sete imóveis e tem como alvo seus 16 mil trabalhadores. Só a Quicken tem 119 propostas de interessados em mudar-se.

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