segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Sorria, seu carro está sendo seguido


TÚLIO VIANNA É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG, AUTOR DE TRANSPARÊNCIA PÚBLICA, OPACIDADE PRIVADA (ED. REVAN) - O Estado de S.Paulo
TÚLIO VIANNA
O governo federal anunciou que vai implantar chips em todos os veículos do País a partir de janeiro. O Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos (Siniav) pretende substituir os atuais radares por antenas capazes de se comunicar com os chips de uso obrigatório que deverão ser instalados nos para-brisas dos veículos. Um veículo em excesso de velocidade, em lugar de ter sua placa fotografada por um radar, teria então os dados de seu chip registrados em um sistema informático que o autuaria pela infração. Além disso, o sistema também poderá ser usado na cobrança de pedágio, no controle do tráfego, na identificação de veículos com multas ou impostos atrasados e na localização de veículos furtados ou roubados.
Ainda que a propaganda oficial procure dar destaque à suposta capacidade de inibir os ladrões de veículos, é pouco provável que, na prática, o sistema alcance esse objetivo. Isso porque o chip pode ser arrancado do para-brisa e inutilizado e a multa por trafegar sem o chip obrigatório decididamente será a menor das preocupações do ladrão. E é até melhor que o chip possa ser facilmente encontrado e inutilizado, pois sua instalação em um local de difícil acesso acabaria incentivando o sequestro do motorista, já que, enquanto o roubo não for comunicado, o ladrão conseguiria passar com o veículo pelas antenas sem desencadear uma perseguição policial.
Não se trata, pois, de um sistema criado para proteger motoristas de furtos ou roubos, mas sim para aumentar a arrecadação de multas, impostos e pedágios. E o mais grave: o preço a se pagar pelo aumento dessa arrecadação é uma significativa restrição ao direito à privacidade dos motoristas, pois os computadores do Estado passarão a ter armazenados os locais por onde os veículos passaram ao longo dos últimos meses.
Ainda que tais dados sejam resguardados oficialmente pela tecnologia da criptografia e pelo direito à privacidade, na prática qualquer policial com acesso ao sistema poderá saber por onde um veículo circulou nos últimos meses, com os horários exatos de quando passou pelas antenas, sem necessidade sequer de mandado judicial. Haverá um excesso de informações de interesse exclusivamente privado nas mãos da polícia, que poderá vigiar os percursos de cidadãos de acordo com sua livre conveniência.
Se considerarmos que essas informações só serão utilizadas nos estritos limites da legalidade, a medida já se mostra excessivamente invasiva; mas se imaginarmos que os dados possam vazar para criminosos, o cenário se torna ainda mais inquietante: sequestradores e ladrões poderiam ter acesso a uma lista detalhada dos hábitos de deslocamento de todos os motoristas brasileiros.
Um projeto como esse, que pretende impor a todos os motoristas brasileiros graves restrições a seu direito à privacidade, não deveria ser decidido pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), até porque seus membros não foram eleitos pelo voto popular e não têm legitimidade para impor tamanha restrição a um direito constitucional. Cabe ao Congresso Nacional apreciar a matéria, abrindo um amplo debate público sobre a necessidade ou não da implantação do sistema.
O projeto prevê gastos de aproximadamente R$ 5 milhões e não tem precedentes em outros países do mundo, o que tornaria o Brasil o pioneiro ou, dependendo do ponto de vista, a cobaia do sistema. Se é certo que os avanços tecnológicos podem trazer grandes melhorias na administração pública, é preciso, porém, bastante cautela antes de realizar esse tipo de investimento.
O Brasil é um país em desenvolvimento e não se pode prestar ao papel de laboratório de novas tecnologias que limitem direitos fundamentais de seus cidadãos. Nos EUA, na Europa e em outros países desenvolvidos e com a democracia já consolidada nenhum sistema como esse foi implantado em escala massiva e com uso obrigatório.
O governo não pode nem deve se deixar seduzir pela propaganda das empresas privadas interessadas em vender a nova tecnologia, pois os eventuais benefícios sociais que ela pode trazer têm, como efeito colateral, uma grave limitação ao direito constitucional à privacidade. É preciso que haja um amplo debate público sob a necessidade e a conveniência de se monitorar veículos.
Já colocaram câmeras de vigilância nas ruas sem que o Congresso Nacional aprovasse sequer uma lei regulamentando-as. Agora querem monitorar por onde os veículos brasileiros passam, sem de novo submeter a questão ao Legislativo. O que virá em seguida? Câmeras de vigilância nas casas? Gravação de todas as conversas telefônicas? Chips implantados em recém-nascidos?
O Big Brother, que no passado foi tema de livro e hoje é programa de TV, a cada dia que passa está se tornando uma aterradora realidade. É preciso impedi-lo de crescer enquanto há tempo.

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