Leopold Nosek fala sobre a psicanálise atual e a dificuldade de encontrar tempo para reflexão., por Sonia Racy
Quando o antigo já não existe mais e o novo ainda não se estruturou é que se criam os monstros, segundo Leopold Nosek, da Federação Psicanalítica da América Latina. Os sintomas desse momento de transição– no qual se encontra a humanidade– estão na pauta dos principais desafios dos analistas contemporâneos. Desafios esses que serão tratados no Congresso Latino-Americano de Psicanálise (que começa terça-feira no Sheraton WTC), presidido por Nosek.
Cerca de dois mil psicanalistas se reunirão para debater o papel do analista na contemporaneidade: “O filme A Pele em que Habito, de Pedro Almodóvar, apresenta o monstro atual”, pondera. “O indivíduo pode trocar de sexo, de pele, fazer filhos de proveta, coisas antes inimagináveis”. Os temas do encontro serão tradição e invenção. “Veremos como esses dois dados se relacionam. Sem a tradição não se vive. No entanto, ficar paralisado na tradição também não é viver”, afirma.
A seguir, os melhores momentos da entrevista.
O mundo atual é muito fragmentado, a análise ajuda a dar unidade para pensamentos e sentimentos?
O paciente continua um ser humano. Só precisa ser lembrado disso. É um trabalho de recuperação. Não vivemos de construções velhas, portanto é impossível um analista estar ouvindo a mesma coisa. Nossos sentimentos pedem sempre novos versos.
Dê um exemplo.
As canções de ninar. São todas iguais. Falam de monstros, não de sossego. Porque a criança tem o medo e o horror dentro dela. E quando encontra uma representação, se sente entendida. Quando se adquirem palavras para o conflito e para a dor, aquilo se circunscreve. Deixa de ser infinito e adquire um tamanho. A partir daí, monta-se a equação e pode-se lidar com isso. Uma boa análise não resolve as equações, mas ajuda a montá-las. E, às vezes, isso é o mais difícil. “A cuca vem já já, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar”. É uma equação de desamparo.
O ser humano continuou igual, enquanto o mundo sofreu um avanço tecnológico imenso?
Em qualquer idade nos encontramos em transição. Sempre foi assim. Mas, agora, a velocidade é assombrosa. Outro dia, um adolescente me falou uma coisa interessante: que John Lennon nunca tinha visto um computador.
Quando um paciente tem alta, quem define isso: ele ou o analista?
Não creio em alta. A alta não faz parte da minha ideia analítica. A cura é uma ideia médica e se baseia em sintomas. O que existe são momentos de desenvolvimento que promovem emancipação. Tem muita gente que quer se aprofundar em si mesmo. Por outro lado, para quem faz análise, esse tipo de exercício reflexivo é vital. Não há como evitar.
Existe quem consiga fazer essa reflexão sozinho?
De fato não criamos nada em isolamento. Prefiro dizer que há pessoas que fecham a porta para esse tipo de prática. Muitas possuem uma dificuldade de olhar para sua interioridade. São pessoas que estão sempre em ação, impedindo o contato com o mundo onírico. Outros têm uma cegueira para o que é conflitivo, contraditório e escuro. O que sabemos sobre a análise é que aquele que a faz fica um pouquinho melhor na comparação com ele mesmo. E esse pouco melhor é inestimável. A família e as pessoas ao lado notam. Claro que, como tudo, análise depende de sorte. De achar a companhia certa para tanto. Nelson Rodrigues dizia que sem sorte você não chupa nem picolé porque vai cair no seu sapato.
A rapidez e a competição da atualidade contribui para o aumento da angústia?
Vivemos transformações importantes. Acostumamo-nos a lidar com um aparelho eletrônico e já temos que lidar com um novo. Existe hoje um paradoxo. Vamos viver mais de oitenta anos, mas ficaremos obsoletos profissionalmente, muitas vezes, com 40, 50 anos. Isso gera uma grande insegurança. Há uma enorme concentração de recursos materiais e de expediente para o trabalho para se produzir. Isto influencia nosso modo de viver. Por exemplo, os bancos vão se preocupar com suas ações e não com as hipotecas e o destino dos mutuários. Será que as grandes corporações farmacêuticas são diferentes?
E qual a consequência disso?
Falta tempo para o ser humano olhar para a própria humanidade. Não conseguimos construir um acervo onírico, uma personalidade. Sonhar e adquirir um repertório cultural, poético, requer tempo. É isso que necessitamos para dar conta da vida. É um desafio dos analistas de hoje, muito diferente da época do Freud. O sofrimento atual é de outra ordem. A do vazio. O indivíduo sofre, mas não articula um discurso. Quem tem pânico, por exemplo, sequer sabe diferenciar se o sofrimento é psíquico ou corporal. E crescem doenças como a anorexia, obesidade e a bulimia, que há 40 anos eram uma raridade.
O que é anorexia?
Ausência de desejo. Não se sente fome, não há vida sexual. Porque o desejo é visto pelo anoréxico como um perigo de destruição interna. Ele não tem acervo para dar conta. Isso é o desafio para o analista. Como trata-se de um discurso que não se organiza, é impossível realizar o que os analistas faziam antigamente – presente no imaginário popular –, de atribuir significados inconscientes ao que o paciente fala. É necessário a criação de novas narrativas, novos sonhos.
E como o analista reage em uma situação como essa?
É um dos temas do nosso congresso. Colocar o analista em questão. Estamos diante de um mundo novo. Que implica em novo corpo, sexualidade, ética e moralidade. Além de um sistema jurídico que terá que se adaptar a tudo isso. Em um mundo onde as coisas estão cada vez mais técnicas, o desafio para o analista é permanecer um humanista.
Com o avanço das drogas psiquiátricas, o paciente é o que ele toma?
Claro que não. Comemoramos as novas medicações, são um progresso. Entretanto, há um exagero. As pessoas não podem mais ficar tristes. Crises e os lutos são grandes oportunidades de transformação, de inventividade, desenvolvimento. Se você não tem tempo do luto, as pessoas tornam-se descartáveis. Como viver sem perdas? O importante é dar um destino criativo para elas.
Onde entra a análise?
As pesquisas mostram que uma terapia, de ordem verbal, aliada a medicação, funciona melhor do que só o remédio. Isso é consenso em psiquiatria também. No entanto, existe uma predileção por sucesso rápido. Costuma-se dizer que a psicanálise é demorada. O que ocorre é que entramos em um processo de desenvolvimento. Se a análise for boa você sente os benefícios desde o primeiro encontro.
Como se manter são ?
Eu nem pretendo isso. Não me apresento assim. Não tenho cara de são e não faço a menor questão de ser. E não sei mais do que a pessoa que está lá comigo. Só tenho um ouvido disciplinado para aquilo. Para ser analista, tem que ter problemas suficientes para não conseguir ficar quieto.
Como o senhor vê o crescimento dos fundamentalistas no mundo?
Quando eu comecei, a angústia dos pais era que os filhos estavam virando revolucionários. Hoje, se preocupam porque os filhos estão virando fanáticos. Com o a falta de tempo para construir um acervo que dê conta da sua humanidade, o indivíduo apela para as receitas prontas.
Em qualquer época?
Em tempos de transformação. Quando o velho não existe mais e o novo ainda não se estruturou, criam-se os monstros, dizia Antonio Gramsci. São momentos em que ainda não há um novo sonho, uma referência poética. Em épocas como essa, em que não existe tempo de esperar até que se organize um novo sonho, uma nova referência poética e cultural, é que as pessoas se socorrem de coisas estabelecidas.
Outra discussão é sobre a esfera do público e do privado. Mudou com a internet?
Sim. O Facebook e similares, por exemplo. As pessoas acreditam que estão expondo a intimidade ali. Mas, na verdade, não. Mudou o critério de intimidade. O que é íntimo, de verdade, as pessoas não mostram.
Por quê?
Porque quando é íntimo é conflituoso. O sexo pode ser íntimo para uma pessoa e não para outra. E parte da graça do sexo é que é tremendamente conflituoso e angustiante. Senão, seria como comer bife. O medo da perda, da invasão, do excesso, estão sempre aí. O número de fantasias, medos e expectativas que acompanham a sexualidade é enorme, e aí é que está a graça.
O que é a felicidade?
Essa felicidade da qual se fala é uma bobagem (risos). Uma coisa é viver criativamente, viver bem. Viver feliz é um sonho infantil. A ideia de não ter conflitos, problemas, é uma negação da realidade. Isso não é viver feliz, é ter uma anestesia para uma parte da vida. Uma pessoa que acredita nisso não vive as crises dos filhos, as questões amorosas, os lutos. Pensa em soluções. Chamo essas pessoas de “solucionáticas”.
Para resumir, qual o maior desafio para o analista hoje?
Cada vez mais o tratamento é bipessoal. Na sala de análise tudo pode acontecer virtualmente. O analista tem que ser corajoso e participativo. Ter audácia. Tem que ter o conhecimento. Esta é a sua ética. Estamos todos em questão, o paciente, o analista e a análise. Cabe a brincadeira “vamos olhar seus problemas de frente: pode se deitar”. /MARILIA NEUSTEIN E SR
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