Com algum atraso meto a colher na discussão sobre a violência policial em São Paulo. De modo geral, concordo com Maria Rita Kehl, que, num bom artigo para a Ilustríssima, desancou o governador Geraldo Alckmin (PSDB), que justifica as mortes provocadas por seus subordinados com frases como "quem não reagiu está vivo".
Não se trata aqui de demonizar as chamadas forças da ordem, como fazem inadvertidamente alguns representantes da esquerda. Já escrevi neste espaço que a criação da polícia foi uma das melhores coisas que aconteceu na história da humanidade. A evidência para tal afirmação vem de Steven Pinker, que, em "The Better Angels of Our Nature" (os melhores anjos de nossa natureza), mostra que o surgimento de Estados fortes na Europa do século 16, com suas milícias e o monopólio do uso da força, fez com que as taxas de homicídio, que eram assustadoramente altas, ficassem de 10 a 50 vezes menores. O advento da polícia foi, assim, um dos fatores que, isoladamente, mais contribuiu para preservar vidas humanas.
Essa, contudo, é apenas uma parte da história. Depois que o Estado está instalado e operante, com seu aparato policial e todas as demais engrenagens, ele tem a irresistível tendência de tornar-se uma força opressora. Nos casos mais extremos, torna-se o principal polo de violência, como se verifica nas ditaduras. Não se trata, é claro, de voltar atrás. Em termos líquidos, o benefício de contarmos com uma estrutura de contenção de conflitos entre as pessoas em geral supera o malefício dos abusos perpetrados por forças de segurança. Só que não estamos aqui diante de uma disjuntiva exclusiva, isto é, de um ou... ou do qual só podemos escolher um. Nós podemos perfeitamente ficar com as vantagens de ter um Estado e cuidar para que ele não incorra no arbítrio. A isso se chama civilização.
E eu receio que os governantes que comandam o aparato de segurança paulista não estejam se esforçando como deveriam para civilizar os policiais e a própria sociedade.
Acredito que meu amigo Marcio Aith, subsecretário de Comunicação do governo, no artigo em que responde a Kehl, presta uma valiosa contribuição ao informar que existem no Brasil polícias mais violentas do que a paulista. Estou certo de que o mesmo vale para as milícias que atuam na Síria. Não creio, contudo, que devamos nos comparar com o pior, mas sim apresentar metas em princípio alcançáveis.
Reportagem da Folha publicada em julho mostrou que, em cinco anos, a PM paulista matou quase nove vezes mais do que todas as polícias norte-americanas. De 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com policiais militares. Nos EUA, de acordo com o FBI, o total de óbitos nos chamados homicídios justificados foi de 1.963. Ajustando os números para a população, temos que a taxa de mortos por 100 mil habitantes, foi de 5,51 em São Paulo, contra 0,63 nos EUA. Isso significa que nossa polícia é 8,75 vezes mais letal que a norte-americana.
Vale observar que os EUA são a mais violenta das nações industrializadas e que lá é espantosamente grande o número de pessoas que andam armadas, o que em tese faz com que os policiais ali sejam mais apreensivos.
Outro dado que chama a atenção é que, no quinquênio analisado, a PM paulista matou 34% mais do que feriu. Dado que é em princípio mais difícil atirar para matar do que para ferir, é razoável supor que há algo de errado no treinamento que os policiais recebem.
Seria injusto afirmar que o governo paulista não fez absolutamente nada para reverter essa situação. Porém, está mais do que claro que, o que quer que tenha feito, ainda é insuficiente. Os números anuais de mortos, afinal, têm se mantido mais ou menos constantes em torno dos 320 desde 2008.
Se as autoridades estivessem verdadeiramente empenhadas em seguir a letra e o espírito da lei, que veda qualquer tipo de execução extrajudicial e determina que os policiais façam tudo o que é possível para preservar a vida e a integridade física dos cidadãos, incluindo aqueles que são suspeitos de crimes, o governador não poderia descansar até que as cifras baixassem significativamente.
O que vemos, porém, é que Alckmin não apenas não colocou o respeito aos direitos humanos no alto de sua agenda como ainda, através de declarações estabanadas, contribui para a cultura de violência e impunidade que reina nas fileiras policiais.
O caso assume proporções ainda mais inquietantes quando se considera que, se há algo que não falta na literatura especializada, são estudos e propostas de rotinas e treinamento para reduzir a brutalidade policial.
Em "Blink", um livrinho estimulante sobre como as pessoas agem no piloto automático, Malcolm Gladwell revela que vários departamentos de polícia dos EUA baniram as perseguições motorizadas. Policiais não estão mais autorizados a dirigir em alta velocidade atrás de suspeitos. E a razão para isso, além do risco de acidentes, é que, quando a adrenalina do agente vai às alturas e seus batimentos cardíacos ultrapassam os 175 por minuto, aumenta enormemente a probabilidade de ele agir de forma intempestiva. Nessas condições, uma carteira ou um celular na mão do suspeito são facilmente confundidos com uma arma e o desfecho tende a ser trágico. Faz bem mais sentido lançar um alerta para que outras unidades abordem o veículo duvidoso.
De modo análogo, algumas policiais, em especial as da Austrália, têm apostado em patrulhas conduzidas por um único policial, em oposição às duplas. Aqui, além do óbvio ganho em efetivos, temos uma redução na propensão do agente a reagir impensadamente. Somos mais cautelosos quando estamos sozinhos do que quando fazemos parte de um grupo. É claro que há situações de maior periculosidade em que não dá para colocar policiais sozinhos, mas há muitas outras em que o risco para o agente é relativamente pequeno.
Nem tudo o que é feito lá fora pode ser transplantado para o Brasil e é preciso ainda considerar que cada caso é único. Mesmo polícias bem preparadas e pouco violentas por vezes cometem erros graves, como ocorreu com Jean Charles de Menezes, em 2005 no Reino Unido, e, mais recentemente, com Roberto Laudisio Curti, na Austrália. Estamos lidando com seres humanos que são inapelavelmente falíveis.
Mas, se os policiais que agem a quente e sempre sob o temor de perder a própria vida merecem uma consideração especial nas situações de confronto, o mesmo não se pode afirmar daqueles que os comandam em gabinetes confortáveis. Os tucanos estão no poder em São Paulo já há duas décadas. Nesse período, observamos a uma importante redução no total de homicídios. Em 1999, registrávamos 35 assassinatos por 100 mil habitantes. Hoje, essa taxa está ligeiramente acima dos 10 por 100 mil. É um avanço civilizatório digno de elogios e comemoração. Mais uma razão para cobrar das autoridades que algo semelhante ocorra nas ações da própria polícia.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.
Nenhum comentário:
Postar um comentário