domingo, 1 de dezembro de 2024

Conversas citam repasses de até R$ 250 mil em esquema de venda de sentenças no STJ, FSP

 


BRASÍLIA

Trocas de mensagens por celular entre lobistas e advogados, obtidas pela Polícia Federal, mostram supostos repasses de até R$ 250 mil a servidores do Judiciário com o objetivo de obter informações sobre processos sigilosos e conseguir decisões favoráveis no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e em outros tribunais.

Os diálogos estão na decisão sigilosa do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Cristiano Zanin, que autorizou operação da PF na terça-feira (26) sobre venda de sentenças. A polícia prendeu um lobista e realizou buscas em endereços de dois chefes de gabinetes do STJ, além de um terceiro servidor.

Imagem do Supremo Tribunal de Justiça, mostrando a fachada do edifício com um grande letreiro na frente. O céu está nublado e há algumas árvores e gramado na área externa.
Sede do STJ em Brasília, no Distrito Federal - Pedro Ladeira - 28.ago.23/Folhapress

De acordo com Zanin, o material descortinou um suposto esquema em que lobistas estabeleceram uma rede de contatos com magistrados e assessores de ministros do STJ para benefícios derivados de decisões judiciais e informações privilegiadas.

As conversas usadas na representação são entre o advogado Roberto Zampieri, vítima de homicídio em dezembro do ano passado em Mato Grosso, e o empresário Andreson de Oliveira Gonçalves, que foi preso durante a operação.

Os diálogos, no dia 2 de janeiro de 2020, citam cobranças de dinheiro que estariam sendo feitas por Daimler Alberto de Campos, que exercia o cargo de chefe de gabinete da ministra Isabel Galotti na ocasião.

"Zamp, o Daimler me ligou agora perguntando dos R$ 50.000,00 que faltam daquele caso da Cátia lá né... e se tá tudo certo pra no dia 14 o cara pagar os outros 150. Como que tá isso aí? E no final do mês aqueles outros 250 seu hein, não esquece também não", diz.

Folha apurou que os investigadores entendem que as citações 150 e 250 se referiam aos valores de R$ 150 mil e R$ 250 mil.

As cobranças se repetiram no dia 8 daquele mês e em 7 de fevereiro, quando o nome de Daimler foi citado novamente em outro diálogo, também sobre cobranças de dinheiro.

Zanin ressaltou que as movimentações processuais, conferidas pela presidência do STJ, confirmaram que, de fato, Daimler participou ativamente da tramitação interna de uma ação de reintegração de posse de Mato Grosso, de relatoria de Galotti e de interesse dos investigados.

Ele foi citado no contexto de outra ação, também oriunda de Mato Grosso, em que se contestava a negociação feita por um banco.

Na conversa, Andreson diz em três mensagens seguidas: "Pessoal mando essa petição no e-mail do gabinete". "O amigo me falou agora". "Damiller".

Segundo as investigações, o arquivo enviado nessa ocasião correspondeu à decisão da ministra Isabel Gallotti, cujo resultado satisfez os interesses de Zampieri, o que teria sido observado pelos interlocutores.

Andreson diz: "Feito zamp". "Pelo amor de Deus." "Veja o dinheiro." "Aqui resolve Zamp."

Zampieri afirma: "Acabei de ler tudo". "Parabéns, meu amigo." "Isso não é o qualquer um." "Parabéns."

Em seguida, Andreson diz: "Até a vírgula é igual". Andreson: "kkkk".

O nome de Daimler ainda surgiu durante tratativas entre Andreson e Roberto Zampieri em outra ação, também da relatoria da ministra Isabel Gallotti.

Zampieri diz: "Você consegue a decisão da Noirumbá até sexta? Abraços".

Andreson responde: "Já te ligo aí". "Tô falando com DM."

Zampieri, então, afirma: "Amanhã te transfiro mais uma parte". "Já estou cansado de ficar sem fazer a nossa correria".

Em seguida, Andreson completa: "Eu também amigo". "Hoje falei ao damalir. Tô agoniado".

Em diálogo no dia 12 de fevereiro de 2021, Andreson encaminhou a Zampieri o julgamento do recurso desse caso, movido por uma das partes do processo. A PF destacou que a consulta do andamento processual mostrou que a decisão alcançou o resultado previsto por Andreson.

"Entendo que os indícios revelados até aqui se qualificam como suficientes para permitir o aprofundamento das investigações quanto ao narrado envolvimento de Daimler Alberto de Campos na empreitada criminosa", afirmou Zanin.

A decisão de Zanin também citou Rodrigo Falcão de Oliveira Andrade, então chefe de gabinete do ministro Og Fernandes, como em diálogo entre Andreson e Zampieri no dia 24 de março de 2020.

Segundo a representação, os dois pareciam conversar sobre a deflagração de uma operação da PF que atingia um suposto esquema de venda de sentenças no Tribunal de Justiça da Bahia, investigado na Operação Faroeste.

Andreson informou no diálogo que a busca e apreensão realizada teria sido noticiada pelo "amigo do og", possível alusão a um contato de influência no gabinete do ministro Og Fernandes, do STJ.

Na mesma data, ele encaminhou para o advogado decisão proferida pelo ministro no pedido de busca e apreensão do caso, embora o procedimento estivesse sob segredo de justiça.

Segundo a PF, Andreson estabelecia uma relação consideravelmente próxima com um "amigo" lotado naquele gabinete e que estaria repassando informações sigilosas do processo.

Andreson diz: "O amigo vai me passar, são 3 procedimentos. Um INQ (inquérito) Uma PET (petição) e um PBAC (pedido de busca e apreensão criminal)". "O pedido de bloqueio de bens e a prisão dele está em um expediente avulso. Uma QBSING. Quando fechar o amigo lá vai manda da forma que temos que fazer".

Zanin afirmou que há indícios de que se trata de Rodrigo Falcão de Oliveira Andrade.

A PF também solicitou à presidência do STJ informações sobre o acesso interno à movimentação processual do caso, e foi constatado registro de Oliveira Andrade, sobretudo em 23 de março de 2020, véspera do encaminhamento por Andreson da decisão de Og Fernandes com a medida pleiteada.

"Entendo que os indícios revelados até aqui se qualificam como suficientes para permitir o aprofundamento das investigações quanto ao narrado no envolvimento do investigado Rodrigo Falcão de Oliveira Andrade na empreitada criminosa", disse Zanin.

Os funcionários foram procurados por meio da assessoria do STJ para falar sobre o caso, mas o órgão respondeu que não irá se manifestar, "pois se trata de uma investigação que tramita sob sigilo no STF". Todos já foram afastados de suas funções no tribunal.

Rubens Paiva, retratado em 'Ainda Estou Aqui', fez discurso pela democracia no dia do golpe; ouça, FSP

 Ana Gabriela Oliveira Lima

SÃO PAULO

Retratado no sucesso de bilheteria "Ainda Estou Aqui", Rubens Paiva teve uma atuação como deputado federal mais focada nos bastidores, mas fez um discurso histórico na madrugada em que se desenrolou o golpe de 1964.

A história de sua vida e morte, em 1971, é símbolo de necessária proteção à democracia e mostra como a arbitrariedade da ditadura militar impactou pessoas que não se envolveram diretamente com a luta armada, dizem historiadores ouvidos pela Folha.

Da ala mais à esquerda do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), Paiva era reformista e nacionalista, na interpretação de Jason Tércio, escritor e biógrafo do político.

Em sua fala no 1º de abril de 1964, conclamou a população brasileira a se colocar a favor da legalidade do governo do então presidente João Goulart e condenou o assanhamento golpista.

Rubens Paiva participa de sessão da CPI do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), na Câmara dos Deputados, em 1963
Rubens Paiva participa de sessão da CPI do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), na Câmara dos Deputados, em 1963 - Reprodução

"Meus patrícios, me dirijo especialmente a todos os trabalhadores, a todos os estudantes e a todo o povo de São Paulo tão infelicitado por este governo fascista e golpista que neste momento vem traindo seu mandato e se pondo ao lado das forças da reação", começou.

Ele defendeu as reformas de base e pediu que a população se manifestasse a favor de Goulart de maneira ordeira e pacífica.

Paiva foi torturado e morto pela ditadura militar em 1971, depois de ter o cargo de deputado federal cassado assim que ocorreu o golpe. O reconhecimento do óbito por parte do governo brasileiro veio apenas 25 anos depois, em 1996, na gestão de Fernando Henrique Cardoso.

Nascido em 1929 em Santos, no litoral de São Paulo, formou-se engenheiro e teve atuação no movimento estudantil. Foi eleito deputado em 1962 e se exilou no exterior em 1964, mas depois de poucos meses voltou para o Brasil. Passou a viver com a família no Rio de Janeiro, onde foi sequestrado pelos militares.

O regime o ligou ao recebimento de correspondências vindas de exilados. "Viram nele um intermediário e superestimaram seu papel, em um momento marcado pelo sequestro do embaixador suíço [Giovanni Bucher, raptado por integrantes da Vanguarda Popular Revolucionária]", afirma Tércio.

A trajetória do deputado voltou à tona com o sucesso de bilheteria de "Ainda Estou Aqui", filme que narra seu desaparecimento e morte. A obra, que busca representar o Brasil na disputa pelo Oscar de 2025, aborda também a luta da esposa de Rubens, Eunice Paiva, para que o Estado reconhecesse o óbito do marido. Foi baseada em livro homônimo de um dos filhos do político, Marcelo Rubens Paiva.

Para Tércio e historiadores ouvidos pela Folha, a divulgação do filme de Walter Salles ocorre em momento oportuno, uma vez que o Brasil retoma a discussão sobre ataques à democracia, desta vez em contexto protagonizado por militares próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

No dia 21 de novembro, a Polícia Federal encerrou o inquérito sobre uma tentativa de golpe em 2022 e indiciou Bolsonaro e mais 36 pessoas, a maior parte delas militares. Segundo a PF, o plano envolvia o assassinato do então presidente eleito, Lula (PT), de seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), e do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes.

Segundo Rodrigo Patto Sá Motta, professor de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a trajetória de Paiva serve como chance de repensar o risco de vivências antidemocráticas.

Ele afirma que o contexto ditatorial da morte do deputado precisa ser relembrado e rechaçado. Diz também que o assassinato de Paiva joga por terra a argumentação de que apenas aqueles que participaram da luta armada foram impactados.

"Ele não era um comunista, talvez nem socialista fosse. Defendia as riquezas nacionais, bandeira muito cara na época", afirma Jason Tércio, que corrobora a interpretação do historiador.

Apesar da fala simbólica no 1º de abril, Paiva era um político mais dos bastidores, afirma Tércio. Segundo a Câmara dos Deputados, o parlamentar participou de sete comissões permanentes. Foi titular em duas delas, uma sobre relações exteriores e outra de transportes, comunicações e obras públicas.

Também foi titular em duas comissões parlamentares de inquérito e vice-presidente na CPI que apurou a atuação política do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e do Ipes (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais).

A participação mais marcante foi nesta última, afirma Matheus Augusto Sampaio, mestre em história pela Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto). Na época, o parlamentar se envolveu de forma atuante e questionadora na comissão, segundo consta em sua biografia.

"Houve a CPI porque veio à tona que esses institutos financiaram várias campanhas para as eleições de 1962. Eles tinham como função desestabilizar o governo Goulart e, depois, passaram a apoiar abertamente o que se tornou conhecido como golpe de 1964", diz Sampaio.

De acordo com Samantha Quadrat, professora de história da UFF (Universidade Federal Fluminense), o ano em que Paiva foi torturado e morto marca a escalada da violência no Rio de Janeiro, com alta concentração de mortos e desaparecidos.

O caso do político trouxe impacto para a repressão, que começou a "estabelecer outros métodos" e pensar na necessidade de ter espaços mais privativos para as torturas e mortes, diz Quadrat.

"Isso foi consolidado tanto na ‘Casa da Morte’ [centro clandestino em Petrópolis, no Rio de Janeiro], como na Usina de Cambahyba, onde os corpos de alguns mortos e desaparecidos brasileiros teriam sido queimados", afirma a professora.

Depois de sequestrado em casa, torturado e morto em 1971, Rubens foi considerado desaparecido por anos. Ele teve a morte confirmada com os trabalhos da CNV (Comissão Nacional da Verdade), finalizada em 2014.

Ainda há processos abertos sobre o caso. Na quinta-feira (21), o procurador-geral da República, Paulo Gonetmanifestou-se pelo encerramento de um deles, mas disse que a discussão deve seguir em outra ação, mais ampla e que questiona a anistia dos acusados do assassinato do ex-deputado.