quarta-feira, 15 de junho de 2022

Um certo tédio à controvérsia - José Benjamim de Lima, do site da APMP

 Há pessoas que adoram uma discussão. O debate presencial ou virtual de ideias as empolga e motiva. Parecem ter absoluta convicção da verdade do que falam. São naturalmente polemistas. Os mais hábeis colecionam vitórias. Reconheço a importância e a necessidade da discussão. É ela que abre caminho para uma melhor compreensão do mundo, para a busca da verdade, para uma visão plural e mais equilibrada das coisas. Mas confesso que à semelhança de um personagem de Machado de Assis, cujo nome não me lembro (talvez Brás Cubas), tenho um certo tédio à controvérsia. Não tenho muito gosto pela polêmica, especialmente quando o interlocutor se mostra um fanático intolerante, fechado a qualquer alteração no seu modo de pensar. Não tenho a paciência nem a habilidade socrática de extrair a verdade de quem tenha alto grau de cegueira. Ademais, diante das verdades alheias, num primeiro momento, comportome mais ou menos, como o personagem da anedota do velho rabino. Procurado por dois homens para resolver uma desavença, o religioso ouve os argumentos do primeiro e conclui: “Você tem razão”. O segundo homem, entretanto, insiste em falar. O rabino escuta-o e, ao final, diz-lhe: “Você também tem razão”. A mulher do rabino, que ouvia tudo de outro aposento, grita: “Mas não podem ter razão os dois!” Seu marido pensou, pensou, e se rendeu: “Sabe que você também tem razão?” Apesar da tentação relativista do rabino, entendo que ela só é válida num primeiro momento, quando devemos assumir a posição pluralista de ouvir com atenção as razões, argumentos e motivos alheios. Mas num segundo momento, aquele sugerido pela lógica implacável da mulher do rabino, é preciso proceder a uma análise rigorosa de adequação dessas razões e argumentos à realidade. Não se pode aceitar que no mundo dos valores, dos princípios e da verdade tanto faz, tudo se equivale, todos os gatos são pardos. Esse relativismo radical merece combate. Verdades, princípios e valores corretos e autênticos existem e devem ser buscados. A verdade é a adequação do intelecto à coisa, dizia São Tomás de Aquino. Pessoas cujas convicções sejam mais produto de cegueira do que de lucidez, sem o menor espírito crítico para filtrar o que pode ser verdadeiro do que é claramente mentiroso e sem qualquer base fática, são, em princípio, irredutíveis e inacessíveis à mudança. Por isso, acho cansativo e inútil darme ao trabalho de discutir com esse tipo de pessoas. É perda de tempo: “não guies quem já tem estrada / não gastes o fôlego, já quase nada”. Prefiro discutir com pessoas que, como eu, têm mais dúvidas do que respostas, e sejam abertas suficientemente para ouvirem com tolerância pontos de vista que não sejam os seus. Senão, é melhor falar aos peixes, como Santo Antônio no sermão do Padre Vieira. A troca de ideias e opiniões entre pessoas que pensam diferente e estejam abertas a ouvir o outro é muito importante na vida social. Para o filósofo Stuart Mill, em seu livro “Sobre a Liberdade”: “Negar-se a ouvir uma opinião, porque se está seguro de que é falsa, equivale a afirmar que a verdade que se professa é a verdade absoluta. Toda negativa a uma discussão implica uma presunção de infalibilidade”. Mas o diálogo com quem só escuta a si mesmo não é diálogo, é monólogo. Ouvir os pontos de vista do outro exige atenção, respeito, amor à verdade e controle das paixões. Em suma, abertura de espírito, coisa difícil numa sociedade tão polarizada como a nossa. Se não há essa predisposição, melhor seguir o conselho de Schopenhauer: deixem que digam o que quiserem, porque ser idiota é um dos direitos do homem. (limajb@gmail.com)

Quando morrem os imortais, Carlos Heitor Cony, Folha de S. Paulo (RJ), 29/07/2014

 Quando Machado de Assis fundou a Academia Brasileira de Letras, nos moldes da Academia Francesa, o lema adotado foi "Ad immortalitatem" daí que seus membros começaram a ser chamados de "imortais". Perguntaram a Olavo Bilac a razão da classificação, meio cabotina. O poeta que ouvia estrelas foi rápido na resposta: "É porque não temos onde cair mortos".

Anos depois, na gestão de Austregésilo de Athayde, foi construído o mausoléu num dos cemitérios da cidade, para guardar os ossos imortais do próprio Machado, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e pasmem do próprio Olavo Bilac.

Em pouco menos de um mês, morreram três imortais que não deviam morrer; Ivan Junqueira, João Ubaldo e Ariano Suassuna. Um dia, talvez próximo, meus desolados ossos irão para lá.

O pior momento da imortalidade é justamente essa ida ao mausoléu. Já disse que a Academia é uma espécie de jardim de infância às avessas, onde todos têm um futuro. Na Academia, todos têm um passado. O remédio é seguir Horácio: "Carpe diem, quam minimum credula postero".

De repente, o telefone toca, muitas vezes de madrugada: um imortal morreu. É duro enfrentar a poltrona vazia, onde durante anos sentava um amigo que todos gostavam e que gostava de todos. Sentimos que perdemos alguma coisa importante e querida. A mídia procura os sobreviventes para declarações. Umas pela outras são mais ou menos iguais, louvamos a obra do colega, mas não dizemos tudo.

Junqueira traduziu T.S. Eliot, foi presidente e, durante o seu mandato, nenhuma poltrona ficou desocupada. João Ubaldo tinha uma voz de trovão, quando falava parecia um "Berta", aquele formidável canhão da Alemanha da Primeira Guerra Mundial que fazia os aliados se borrarem.

Sobre Suassuna, escrevi sobre ele no último domingo. Era meu irmão.

Folha de S. Paulo (RJ), 29/07/201

Machado, cultura e política, Marco Maciel, Zero Hora (RS) 12/12/2008

 O transcurso do centenário da morte de Machado de Assis parece unir o sentimento de toda a nação ao fazer memória da vida e obra do escritor, fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL). Pela densa contribuição ao enriquecimento cultural do país, à vertebração da identidade de nosso povo nas diversas áreas da literatura e das artes, o criador e a criatura, o homem e a instituição, constituem efemérides que não podem deixar de ser festejadas.


Joaquim Maria Machado de Assis, no seu primeiro discurso na ABL, afirma que o desejo da Casa é “conservar, no meio da federação política, a unidade literária” e que “o batismo de suas cadeiras [...] é indício de que a tradição é o seu primeiro voto”. Em fins de 1897, Machado anuncia que a “Academia [...] buscará ser, com o tempo, a guarda da nossa língua. Caber-lhe-á, então, defendê-la daquilo que não provinha das fontes legítimas – o povo e os escritores, – não confundindo a moda que perece, com o moderno, que vivifica”. “Guardar” – salienta – “não é impor; nenhum [...] tem para si que a Academia decrete fórmulas. E, depois, para guardar uma língua, é preciso que ela se guarde também a si mesma, e o melhor dos processos é ainda a composição e a conservação de obras clássicas”.


Joaquim Nabuco, então secretário-geral da ABL, observa: “A pátria e a religião são, em certo sentido, cativeiros irresgatáveis para a imaginação, condições do fiat intelectual”. E acrescenta: “A política, isto é, o sentimento do perigo e da glória, da grandeza ou queda do país, é uma fonte de inspiração de que se ressente em cada povo a literatura toda de uma época, mas para a política pertencer à literatura e entrar na Academia é preciso que ela não seja o seu próprio objeto; que desapareça na criação que produziu, como o mercúrio nos amálgamas de ouro e prata”.


A “cultura une e a política divide”, disse com o seu habitual ceticismo o filósofo italiano Norberto Bobbio. Sem desejar infirmar tal sentença, cabe recordar que o culto que prestamos a Machado de Assis propicia uma reflexão sobre pontos de interseção entre o mundo da cultura e o da política.


Conquanto tivesse Machado de Assis “tédio à controvérsia”, como certa feita revelara, sempre demonstrou, ao contrário do que alguns asseveram, seu interesse pelas grandes questões nacionais e expendia, com freqüência, suas opiniões. Era abolicionista e apreciava o sistema semiparlamentarista que se adotara no Segundo Reinado. Embora não fosse contra a República, temia que sua implantação afetasse a estabilidade política que o país desfrutava.


A vastíssima obra de Machado e a concisão do seu estilo o consagraram como escritor que perpassou novas fronteiras, tornando-o admirado universalmente como um clássico. Não por outra razão, Augusto Meyer afirma: “Machado de Assis continua a ser o ‘único’ na história da literatura brasileira [...] Cresceu em variedade relativa, dentro da mesma profundidade”.