sábado, 8 de setembro de 2018

Não fui eu, Hélio Schwartsman, FSP

Nos últimos dias, li talvez meia dúzia de artigos que sugeriam que somos todos responsáveis pela tragédia com o Museu Nacional. Alguns autores foram bastante diretos, como meu amigo Jairo Marques, outros se cercaram de circunlóquios, mas também acabavam fazendo apelo a uma noção algo abstrata de culpa coletiva. Discordo de todos.
Não sou nem me sinto responsável nem pelo incêndio nem pelas péssimas condições de segurança do prédio. Minha obrigação como cidadão, que é a de pagar corretamente os tributos devidos, eu cumpro. Até fui milimetricamente além do dever estrito ao utilizar repetidas vezes minha voz na imprensa para apoiar a ciência e a cultura em geral.
Não vejo, porém, por que eu precisaria visitar assiduamente museus brasileiros ou militar contra uma suposta indiferença da população para com a coisa pública antes de cobrar das autoridades que deem conta de suas incumbências, que incluem zelar pelo patrimônio que administram, precaver-se contra riscos muito óbvios e, num plano um pouco mais geral, evitar desastres econômicos autoinfligidos.
É claro que, num sentido meio metafísico, podemos afirmar que somos todos responsáveis pelo lamentável estado da política nacional. Nossos representantes, afinal, não vieram de Marte, mas foram eleitos pelo povo. Só que também isso é relativo e comporta individualizações. Eu, por exemplo, nunca dei voto nominal a nenhum desses parlamentares mais picaretas que abundam no Congresso Nacional. Não sou nem me sinto responsável pelo centrão.
O perigo que vejo nesse discurso que coletiviza a culpa é que ele acaba escondendo e diluindo as responsabilidades individuais. Na verdade, precisamos é fazer cada vez mais com que cada um, das mais altas autoridades aos mais humildes cidadãos, assuma os ônus e os bônus de suas ações e escolhas. É o que os americanos chamam de “accountability”. É a melhor vacina contra a tragédia dos comuns.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

SUS SALVA BOLSONARO POR R$ 367,06, Piaui


Pago pelo sistema público brasileiro, cirurgião de veias e artérias de Juiz de Fora é tirado de almoço de família para achar e conter hemorragia no candidato

CONSUELO DIEGUEZ
07set2018_14h47
O candidato é transferido de Juiz de Fora para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, nesta sexta-feira, 7 de setembro
O candidato é transferido de Juiz de Fora para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, nesta sexta-feira, 7 de setembro REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Antes do Einstein veio o SUS. Antes dos médicos de grife vieram os que recebem pela tabela do Sistema Único de Saúde. Foram eles que salvaram a vida de um Jair Bolsonaro esfaqueado e exangue. Esta é a história de um deles.

Por volta das 16 horas desta quinta-feira, o cirurgião vascular Paulo Gonçalves de Oliveira Junior participava de um almoço de família em Juiz de Fora quando seu celular tocou. Era um chamado da Santa Casa de Misericórdia da cidade para que fosse com urgência para o hospital: Bolsonaro havia sido esfaqueado e os médicos não conseguiam conter a hemorragia e nem identificar de onde vinha. O candidato a presidente pelo PSL chegara ao hospital com muita dor. Os médicos fizeram uma ultrassonografia e verificaram um hematoma na barriga, sem saber se era na parede na região epigástrica ou no fígado. Pelo quadro, resolveram iniciar imediatamente a cirurgia. Ao abrirem o abdômen, se depararam com um sangramento abundante e incontrolável. Chegaram a acreditar que o fígado havia sido atingido. Foi então que Oliveira Junior foi acionado, às pressas. O papel do cirurgião vascular seria tentar identificar onde era a hemorragia.

Quando o médico entrou na sala de cirurgia, encontrou um quadro dramático: Bolsonaro, por causa da perda de sangue, estava em choque. A pressão havia caído para 7 por 4, apesar de ter tomado um litro de soro. Com a lesão na veia do intestino, não havia nada que contivesse a hemorragia. Após exame em condições adversas, Oliveira Junior concluiu que a veia afetada fora a mesentérica, uma das mais importantes do intestino, além de um ramo dessa veia, chamada cólica média. Se a facada tivesse sido alguns centímetros acima, poderia ter atingido, segundo os médicos, a veia porta e, nesse caso, o risco de morte seria maior. Oliveira Junior imediatamente iniciou o processo de sutura das veias para conter o sangramento. O agravante é que havia uma grande lesão no cólon, o que poderia resultar em contaminação. A preocupação dos médicos era com o risco de infecção generalizada.

Os procedimentos de sutura deram resultado, e o quadro clínico do candidato se estabilizou. Na medicina o trabalho é sempre feito em equipe, e os outros cirurgiões, anestesistas e enfermeiros foram vitais. Mas, sem a intervenção do especialista em cirurgia de veias e artérias, provavelmente, a sucessão de eventos seria outra.

No começo da noite, Oliveira Junior mandou uma mensagem para um grupo de WhatsApp de cirurgiões vasculares amigos. Ali, ele agradece os cumprimentos dos colegas pelo trabalho e revela a tensão daquela cirurgia. “Meus amigos, muito obrigado pelos cumprimentos. Estou muito aliviado. Foi muito tenso. Quando cheguei, estava chocado, a lesão venosa estava destamponada, com muito sangue na cavidade tributária calibrosa da mesentérica superior. Talvez a cólica média junto a mesentérica superior. Lesão grande de cólon transverso com fezes livres na cavidade, quatro lesões de delgado, várias lesões linfáticas. Está estável e entubado no CTI da Santa Casa.”


Pelo procedimento, Oliveira Junior será remunerado pelo Sistema Único de Saúde em 367 reais e seis centavos, preço pago pelo sistema público por esse tipo de cirurgia – na tabela do SUS, aparece como “tratamento cirúrgico de lesões vasculares traumáticas do abdômen”. O hospital será remunerado em 1.090 reais e 80 centavos. 

Nesta sexta-feira pela manhã, o candidato foi transferido para o Albert Einstein, em São Paulo, hospital que rivaliza com o Sírio-Libanês a preferência dos políticos e de quem pode pagar pelos seus serviços. Bolsonaro passou a noite na Santa Casa de Juiz de Fora, monitorado pelos médicos que, até o início da noite, pela gravidade do quadro, entendiam que o candidato ainda corria risco de morte. Na madrugada, com a estabilização da pressão do paciente, foi dada autorização para a transferência para São Paulo.

Quando a cirurgia em Juiz de Fora terminou, os médicos que participaram do procedimento deram uma entrevista coletiva. Discreto, Oliveira Junior se manteve em silêncio e saiu antes do fim da coletiva. Para um amigo médico, ele explicou, no grupo de WhatsApp: “Infelizmente não tenho o dom da palavra e prefiro não comentar. Prova disso é que, na entrevista coletiva, entrei mudo e saí calado. Mas, o ocorrido foi o que postei no grupo do vascular.”

Oliveira Junior é descrito como bom profissional por colegas dos seminários médicos dos quais participa. Um deles disse que o cirurgião é uma pessoa “extremamente discreta”. No site Doctoralia, o médico é elogiado por dois pacientes pela pontualidade, atenção e instalações. Um dos comentários diz tratar-se de “um excelente médico! Muito competente. O melhor especialista em angiologia e cirurgia vascular e endovascular da região.” O site informa que o consultório fica no Centro de Juiz de Fora e que Oliveira Junior atende pacientes particulares (sem convênio) e Unimed. E sugere entrar em contato, para confirmar se atende o seu plano de saúde.

CONSUELO DIEGUEZ

Consuelo Dieguez, repórter da piauí desde 2007, é autora da coletânea de perfis Bilhões e Lágrimas, da Companhia das Letras

Assassinato cultural, FSP

O mercado talvez consiga silenciar Woody Allen, mas o cinema nunca poderá fingir que ele não existiu

O novo filme de Woody Allen, “A Rainy Day in New York”, pronto há um ano, continua engavetado. Seu lançamento, previsto para este mês, foi suspenso “provisoriamente”. A Amazon, que o produziu, não quer se indispor com os exibidores, os quais temem manifestações contra o diretor na porta de seus cinemas e possíveis depredações. O filme, talvez o derradeiro de Woody, trata do relacionamento de um homem de 44 anos com uma jovem de 15.
Allen, um dos cineastas mais queridos do século 20, pode ser obrigado a encerrar a carreira, por ter sido acusado de abusar sexualmente de sua filha Dylan em 1992, quando ela tinha sete anos. A acusação foi feita por Mia Farrow, algum tempo depois de Allen romper seu relacionamento com Mia para ficar com outra filha dela, Soon-Yi, com quem está até hoje. Allen foi julgado duas vezes, em ações diferentes, e nunca se encontraram provas contra ele. Nos últimos anos, sem novas provas, passou a ser acusado pela própria Dylan e, agora, pelo irmão dela, Ronan, colaborador da revista The New Yorker e especialista em reportagens sobre assédio sexual. 
Se Woody Allen não puder lançar este filme e nunca mais voltar a filmar, estaremos diante de um assassinato cultural. Ele terá sido profissionalmente linchado por uma acusação nunca provada. Aos 83 anos, já poderia estar há muito aposentado. E por que continua a fazer filmes? Porque esta é a sua vida. 
Desde sua estreia, em 1969, com “Um Assaltante Bem Trapalhão”, há 49 anos, ele lançou exatamente 49 filmes como diretor. Todos tiveram grandes mulheres no elenco. Nenhuma delas jamais o acusou de nada 
—incluindo Mariel Hemingway, que tinha de 16 para 17 anos quando fez com ele “Manhattan”, lançado em 1979. Allen não é HarveyWeinstein, acusado de assédio por 80 mulheres. 
O mercado talvez consiga silenciar Woody Allen. Mas o cinema nunca poderá fingir que ele não existiu.