domingo, 1 de outubro de 2017

Se a renda do pobre cresceu, não estou nem aí para o rico, diz Paes de Barros,FSP


RESUMO Referência em estudos sobre pobreza no Brasil, o economista Ricardo Paes de Barros afirma que trabalhos como o de Marc Morgan não contestam os avanços do país nos últimos anos. Na entrevista, ele fala sobre critérios para medir desigualdade e debate o sistema tributário e os gastos sociais do governo.
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Responsável por alguns dos principais estudos publicados sobre pobreza e desigualdade no Brasil, o economista Ricardo Paes de Barros afirma que trabalhos como o do irlandês Marc Morgan estão longe de negar os avanços feitos pelo país nos últimos anos.
Os dados de Morgan indicam maior concentração de renda no topo da pirâmide social, mas confirmam que também houve ganhos significativos para as camadas mais pobres da população, diz Paes de Barros, que é economista-chefe do Instituto Ayrton Senna, doutor em economia pela Universidade de Chicago e professor do Insper.
Para ele, seria importante rediscutir o sistema tributário brasileiro, para torná-lo mais justo e eficiente, mas o debate sobre os impostos dos ricos não deveria deixar em segundo plano esforços para aprimorar as políticas sociais do governo e tornar mais produtiva a economia brasileira.
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Folha - Os novos estudos sobre renda e desigualdade mudam o que sabíamos do problema?
Ricardo Paes de Barros - O que esse pessoal está mostrando é que tem mais renda por aí do que a gente estava contando. Renda a mais é sempre bom, seja lá para quem for. Se a renda dos mais ricos aumentou e isso não piorou a vida de ninguém, é uma boa coisa. Pode até melhorar a vida de algumas pessoas, se eles pagarem mais impostos e contribuírem mais com o país.
Eu ficaria bem preocupado se as pessoas tivessem ficado mais ricas porque os pobres ficaram mais pobres. Mas não é o que esses estudos mostram. O pobre melhorou tanto quanto sempre dissemos que melhorou, mas o rico também melhorou. Ótimo. O Brasil melhorou mais do que achávamos, a renda de todo mundo melhorou e a pobreza caiu.
A vida do pobre melhorou muito nos últimos anos, e nenhum desses estudos contesta isso. O nível de subnutrição do Nordeste, que era estupidamente elevado, hoje é similar ao da região Sul. As condições básicas de vida da população melhoraram de forma espetacular, e temos que continuar fazendo isso.
E a desigualdade, que parecia estar caindo aceleradamente?
Não podemos dizer que a desigualdade aumentou. Se a proporção da renda apropriada pelos mais pobres cresceu, e a proporção da renda apropriada pelos mais ricos subiu, quem está no meio caiu, e nesse caso a gente não sabe direito o que aconteceu com a desigualdade. Depende da medida escolhida e dos critérios que você definir.
Se a proporção da renda apropriada pelos 50% mais pobres aumentou, não estou nem aí para o que aconteceu com a metade mais rica da população. A variação da renda afeta muito mais o bem-estar do pobre do que o do rico. Um real a mais para o pobre vale muito mais do que um real a mais para o rico. Isso é o que importa.
Se você olhar pela janela, vai ver lá embaixo um cara com uma casa melhor, outro que tem uma casa pior. Estamos num bairro rico. Mas não é essa a desigualdade que me interessa, é aquela que você vê quando vai à periferia, ou ao interior do Piauí. São lugares onde o nível de qualidade de vida melhorou muito, mas ainda é ridículo.
A concentração de renda nos estratos mais ricos não preocupa?
Já viu como o capital é concentrado na Suécia? Uma única família, os Wallenberg, é a principal acionista de algumas das maiores empresas do país. É tudo do mesmo dono. Qual o problema? A Suécia é um país democrático. Você pode taxar esses caras.
Não é questão de justiça social?
A princípio, não existe concentração de riqueza justa ou injusta. Depende de como ela foi acumulada. Se você me disser que essa riqueza no Brasil foi acumulada por causa das capitanias hereditárias, vou concordar que é injusta. Mas se o conde Francisco Matarazzo chegou pobre da Itália, trabalhou e acumulou capital, pode ser que essa concentração não seja injusta.
O que sabemos sobre a maneira como a riqueza tem sido acumulada no Brasil?
Podemos levantar hipóteses. A gente tem uma taxa de juros muito alta. Fico impressionado quando olho a poupança e vejo como ganho dinheiro sem fazer nada. Vivemos num país endividado, em que o governo toma dinheiro emprestado loucamente e paga juros altos.
Nesse mundo, naturalmente quem tem dinheiro vai ficando mais rico, cada vez mais. Mas o que há de justo ou injusto nisso? Depende de como essas pessoas conseguiram o dinheiro que emprestaram para a gente. Eles podiam não emprestar.
E se esse mesmo grupo também receber subsídios, altas aposentadorias e outros benefícios do governo?
Como a metade mais pobre da população ganhou, não é ela que está pagando essa conta. Ocorreu uma transferência da classe média para os ricos. Estranha sociedade essa, que fica transferindo renda entre grupos que formam a metade mais rica do país.
Estou preocupado com a metade mais pobre, com as políticas que podem fazer a renda dos mais pobres continuar aumentando.
Se o Brasil congelar o que arrecada e começar a gastar mais com os 50% mais pobres, para mim está ótimo. Se os 50% mais pobres têm pouco mais de 10% da renda nacional e o governo arrecada 30%, é possível duplicar a renda desses caras com um terço da arrecadação.
Taxar os mais ricos é solução?
É fundamental rediscutir os impostos, mas simplesmente taxar não vai resolver. Temos que discutir se queremos arrecadar mais ou menos, e a resposta não é muito óbvia. Precisamos discutir quanto queremos que o governo gaste. Depois, como fazer isso da maneira mais justa e eficiente. Nosso sistema tributário é uma loucura. Temos que torná-lo mais redistributivo e mais eficiente. Mas essa discussão não vai decolar antes que a gente decida quanto a gente quer.
Para fazer o quê?
Seria o segundo passo. A questão é como aumentar a renda do pobre de maneira que ele não receba apenas uma transferência de renda, mas tenha crédito para o negócio dele, a gente melhore o ambiente de negócios e faça milhões de coisas que podemos fazer para aumentar a renda desses caras.
Não tem nenhuma política pública que exista no mundo que não exista no Brasil. Nosso problema é que a gente foca pouco essas políticas em quem realmente precisa. Remédios comprados por ordem da Justiça para quem não precisa que o remédio seja pago pelo governo. Universidade pública gratuita para quem pode pagar. Bolsa Família que não vai necessariamente para as famílias mais pobres.
Se alguém disser que sabe o que é mais eficaz, não sei como sabe. Embora a avaliação e o monitoramento das políticas tenham melhorado, ninguém até hoje avaliou direito a maioria delas. Nosso esforço no combate à pobreza é fantástico, mas a gente aloca os recursos meio às cegas, e muitas vezes ele não vai para quem realmente precisa.
Discutir os impostos dos ricos seria desviar o foco do principal, ou é possível fazer as duas coisas?
Devíamos sentar todo mundo e estabelecer algumas coisas. Olha, gente, nós somos solidários. Vamos gastar tanto, mas vamos combinar que vamos gastar isso bem. Não vai ser do dia para a noite. Mas só vai acontecer se criarmos um sistema de governança em que cada real só pode ser gasto se você demonstrar que será bem gasto e comprovar depois com os resultados.
Se tivesse que definir uma prioridade, qual seria?
O Brasil precisa ganhar produtividade, porque estamos chegando ao limite do que a política social é capaz de fazer. É impossível aumentar salário sem aumentar a produtividade. Sem ganho de renda do trabalho, você não tem redução sustentável da pobreza. Num país em que a produtividade cresce rápido, dá para fazer muita coisa. Com produtividade estagnada, crescendo lentamente, fica muito difícil.
Uma das maneiras mais fáceis é criar um ambiente em que as pessoas consigam aproveitar oportunidades de negócio. Se é muito complicado abrir uma empresa e fazê-la funcionar, o país não consegue aproveitar as oportunidades.
Precisamos descobrir por que o Brasil inova pouco e copia pouco. Produtividade tem a ver com o ambiente de negócios e a adoção de novas tecnologias. A educação precisa melhorar, para você ter uma força de trabalho preparada pra isso. E temos que aprender a valorizar o que se produz aqui, vendendo melhor lá fora.
RICARDO BALTHAZAR, 48, é repórter especial da Folha

Um país engessado por boas intenções - ROLF KUNTZ, OESP


ESTADÃO - 01/10

Reativação melhora receita, mas reformas são essenciais para frear deterioração das contas

Campeão da dívida pública entre os maiores emergentes, o Brasil caminha para o desastre, se o governo continuar sem meios legais e políticos para conter a degradação de suas contas. A dívida bruta do governo geral bateu em R$ 4,77 trilhões em agosto. Isso equivale a quase um quarto (73,7%) do produto interno bruto (PIB), o valor dos bens e serviços finais produzidos em um ano. Os brasileiros teriam de trabalhar quase nove meses, sem nada consumir, se fosse preciso pagar de uma vez o estoque de papagaios emitidos pelo setor público. A expressão governo geral indica as administrações da União, dos Estados e dos municípios, mas a maior parte do problema é do poder central. Na média, a dívida bruta dos governos, no mundo emergente, continua na vizinhança de 50% do PIB. No mundo rico há Tesouros muito mais endividados, mas sua classificação de risco é muito melhor que a do Brasil e a rolagem de seus compromissos é feita com juros muito baixos – até negativos, em alguns casos.

Conter o endividamento público é um dos objetivos centrais da estratégia econômica inaugurada em Brasília no ano passado. Mas o peso da dívida crescerá ainda por alguns anos, pelo menos até 2022, se o esforço de ajustes e reformas continuar mais ou menos de acordo com os planos. A recuperação da economia, iniciada neste ano, também ajudará, proporcionando maior arrecadação de impostos e contribuições. Isso já ocorre. Todos os tributos federais baseados em produção, consumo, importação e renda geraram em agosto receita maior que a de um ano antes, descontada a inflação. Reforçada também por alguns itens extraordinários, essa arrecadação superou por 17,7% a de agosto de 2016.

Mas seria imprudente depender apenas da arrecadação e do controle das chamadas despesas discricionárias para consertar as contas federais. O Orçamento é pouco flexível e tornou-se mais engessado com a expansão dos gastos obrigatórios, como a folha salarial dos servidores. A irracionalidade do Orçamento é conhecida há muito tempo e resulta em grande parte das boas intenções dos constituintes de 1988.

A essas boas intenções outras se acrescentaram nos anos seguintes, graças ao trabalho de legisladores pouco preocupados com a aritmética, com a limitação física de recursos e, afinal, com a eficácia das políticas públicas.

O excesso de vinculações é uma consequência dessa farra legislativa. Se vinculações funcionassem, educação e saúde seriam muito melhores, no Brasil, do que têm sido nos últimos anos. Mas verbas carimbadas normalmente produzem efeitos muito diferentes: dispensam os ministérios de produzir bons planos e projetos, facilitam a corrupção e resultam, com frequência, em ações improvisadas para o mero cumprimento, no fim de cada ano, da obrigação de gastar. Se é preciso fechar a conta, pintem-se muros de escola, mesmo sem necessidade, ou se comprem ambulâncias, talvez com a ajuda de um superfaturamento. Não são exemplos fictícios.

Vinculações impedem ou dificultam a revisão periódica de prioridades, desestimulam o bom planejamento e ocasionam enormes desperdícios. No limite, a boa administração dependeria de uma revisão frequente de todas as contas e de todas as linhas de ação, mas o orçamento de base zero tem sido, na prática, apenas um ideal. Sem poder alcançá-lo, as administrações deveriam pelo menos operar com flexibilidade suficiente para se adaptar a novos objetivos, enfrentar com eficiência problemas conjunturais e obter um alto retorno de cada real aplicado. Mas a rigidez orçamentária provém também de outras causas.

No Brasil, a maior parte dos gastos obrigatórios é formada por dois grandes itens, os benefícios previdenciários e a folha de salários e encargos. Neste ano, a despesa do governo central, a preços de agosto, chegou a R$ 819,20 bilhões. A soma daqueles dois itens correspondeu a R$ 536,58 bilhões, quase dois terços do total. A Previdência pagou R$ 349,71 bilhões e a folha de pessoal e encargos consumiu R$ 186,87 bilhões. Os demais gastos obrigatórios totalizaram R$ 131,86 bilhões.

Mesmo com a economia em crescimento, as despesas incontornáveis cresceram mais velozmente que a receita líquida até 2014, quando a relação entre as duas grandezas chegou a 85,4%. A situação piorou nos anos seguintes. Em 2016 aqueles gastos corresponderam a 101,3% da receita. Nos 12 meses até agosto deste ano a proporção atingiu 104%.

Mesmo com a recuperação econômica e uma expansão mais veloz dos negócios, o quadro deverá piorar nos próximos anos. O PIB deve aumentar 0,7% em 2017 e 2,6% em 2018, segundo as novas projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pouco mais otimistas que as do mercado. As despesas obrigatórias, principalmente da Previdência, continuarão sufocando as finanças públicas e, como consequência, dificultando o avanço da produção e da criação de empregos.

Ao lado de um esforço continuado para ajustar o Orçamento, reformas serão indispensáveis para a reconstrução da economia nacional. A da Previdência é a mais urgente, como indicam as projeções de especialistas em finanças públicas – ignoradas ou menosprezadas por boa parte dos congressistas. Mas outras mudanças também serão necessárias tanto para a melhora das condições fiscais quanto para o aumento da eficiência econômica. É preciso cuidar de uma ampla revisão tributária e pensar na reestruturação do Orçamento.

Num país aberto a debates sérios e consequentes, esse conjunto de temas teria destaque na campanha eleitoral do próximo ano. Mas é difícil, neste momento, admitir essa possibilidade. Parece mais provável a predominância de candidatos prometendo gastança, protecionismo comercial, juros baixos e criação de empregos a partir do nada. Se o Brasil, em seguida, recair na crise, a culpa terá sido de quem tentou promover o ajuste. 

Encontro marcado - MARCOS LISBOA, FSP


FOLHA DE SP - 01/10

A nossa história é repleta de tentativas criativas para evitar enfrentar os problemas. Quem sabe o reconhecimento dos fracassos recentes permita que, desta vez, seja diferente.

O aumento do gasto público pode ser eficaz quando há desemprego e deflação. Por aqui, entretanto, achamos que havia outro caminho. Desde meados do segundo governo Lula, tínhamos inflação elevada e, no entanto, optamos por expandir o gasto público. Entre 2008 e 2014, passamos de um superavit de 2,7% do PIB para um deficit de 1%. Conseguimos, apenas, maior inflação.

O mesmo ocorreu com diversas medidas criativas do governo Dilma, como a redução açodada da taxa de juros em 2012, a intervenção no setor elétrico e o resgate das políticas típicas do nacional desenvolvimentismo. Pois bem, mais uma vez a realidade discordou da nossa criatividade. O resultado foi o impressionante desperdício de recursos em projetos fracassados, e não desenvolvimento.

O atual governo desistiu da criatividade e iniciou uma agenda para estabilizar a dívida pública. O resultado não deveria surpreender: queda das taxas de juros e da inflação. Como ocorreu com o ajuste de 2003, a economia começa a se recuperar, com redução do desemprego.

Entretanto, ainda estamos distantes do ajuste das contas públicas. O crescimento dos gastos obrigatórios tem sido compensado pela redução das despesas discricionárias, como o investimento público e programas em ciência e tecnologia, além das atividades comezinhas que permitem o funcionamento da máquina pública.

A boa notícia é que a regra de ouro, como é conhecido o artigo 167 da Constituição, impede a saída populista de aumentar o endividamento para pagar despesas correntes, algo como pagar o aluguel todo mês tomando dinheiro emprestado do banco. Uma hora quebra.

Em 2018, o governo precisará de R$ 184 bilhões emprestados a mais do que o permitido pela regra de ouro para continuar a funcionar. Medidas extraordinárias, como a devolução dos recursos emprestados ao BNDES, podem permitir fechar as contas no ano que vem.

Essas medidas, porém, têm vida curta. Como faremos nos anos seguintes, com o agravante de que os gastos obrigatórios, sobretudo da Previdência, vão continuar a aumentar? Reformas adicionais serão necessárias para equilibrar as contas. Caso contrário, o resultado será a paralisia do setor público.

A campanha de 2018 será um bom teste do que nos espera. Vamos continuar com as reformas necessárias para preservar a rota? Ou repetiremos o hábito de deixá-las de lado quando as coisas se acalmam, optando pela criatividade? Nesse caso, teremos uma encontro marcado com a volta da crise.